O DIABO DO BARCO

...

O sol brilhava no convés exibindo-se orgulhoso por sobre a imensidão das águas. Uma ou duas nuvens, muito brancas, enfeitavam o céu discretamente. Apenas o som do mar e o lamento dos cordames disputavam o ambiente no contínuo balançar das ondas. Eram quase 14 horas e a jovem Catalin no seu maiô azul nem pensava em almoço, preferia espreguiçar-se mais na calmaria envolvente. Às vezes, sentia-se imersa em algodão apreciando o subir e descer do horizonte.

- Retornem antes de anoitecer - recomendara o pai - há previsão de tempestade.

- Claro - ela respondera sem nem ao menos ter ouvido.

No comando da embarcação, Andrei dividia sua atenção entre os aparelhos eletrônicos de navegação, mapas náuticos e sua paixão logo abaixo de si. Ele podia observar Catalin calmamente. Admirar cada curva do seu corpo totalmente entregue ao sol. A pele perfeita, sem marcas, rija, suave e sedosa, causava-lhe gotas de prazer apenas por olhar. Não encontraria alguém tão perfeita para si em mil vidas mais, se mil vidas tivesse. E como se lhe adivinhasse os pensamentos, Catalin arqueou a cabeça para trás de maneira a lhe encontrar os olhos e sorriu.

- Desça, Andrei - ela pediu - venha aproveitar o dia.

- Só um instante, meu amor, preciso definir a rota.

- Traga algo para bebermos - disse e enviou um beijo em forma de torpedo.

O barco seguia veloz e silenciosamente para seu destino. Ao longe, muito longe, um início de mudança de tonalidade indicava a possível ocorrência de chuvas. O casal não se preocupava com isso agora. A viagem mal havia começado. As marcas do caminho vistas da popa lembravam o traço da navalha no abdomen da caça partindo em dois o animal enquanto o sangue, ainda quente, espumava à medida que a carne se abria. Única diferença era a ausência do vermelho e do grito da presa ainda viva.

À medida que o tempo se esvaía e a noite principiava, uma friagem densa descia sobre o mar. Catalin trocou o traje de banho pelo agasalho e, após o lanche saboreado por ambos, enroscara-se em Andrei na cama ampla e confortável. Andrei, marujo experiente, programara o trajeto e velocidade para o modo automático.

- Meu amor - instigou Catalin- ainda falta muito ?

- De acordo com o GPS e sinalizador, devemos chegar em algumas poucas horas - respondeu - descanse, eu chamo você.

Assim que sua amada ressonava, o homem subiu os degraus para a parte superior da embarcação. Não conseguia dormir com tanta facilidade e aproveitava a solidão para meditar. Como de costume, desligou as luzes exteriores transformando o transporte em parte do oceano negro. Para onde se olhasse, era impossível vislumbrar algo. Até mesmo as estrelas estavam tímidas dessa vez, o que apenas aumentava a sensação de isolamento de Andrei. Ele gostava imensamente dessa fuga para o nada escuro. Estirado sobre a cadeira de corpo, Andrei adormeceu finalmente. Foi retirado dos sonhos conturbados pelo chamado incessante do alarme do relógio de pulso. Estavam perto. Recompôs-se, acendeu a iluminação, subiu à torre de comando, verificou os cálculos e, ao notar o conhecido ponto luminoso no radar de tela verde, abriu um largo sorriso. Desceu correndo para acordar Catalin. Os dois, agora, estavam no passadiço e já possuíam contato visual com o objeto que procuravam.

- Está tudo tão escuro e quieto lá dentro, Andrei, será que ... - o comentário foi interrompido.

- Calma, Catalin. Logo, saberemos.

Dito isso, o homem acionou a buzina-corneta do barco, disparou os faróis giratórios instalados na proa e jogou o potente facho de luz diretamente sobre a balsa salva-vidas alaranjada em formato de cabana à sua frente em torno de cem metros, o que revelou duas sombras humanas que se agitavam. Quase de imediato, gritos de socorro irromperam na vastidão, enquanto os ocupantes do utensílio de sobrevivência tentavam baixar a cobertura de proteção.

Andrei e Catalin abraçaram-se sorridentes.

O primeiro braço a sair para o exterior era masculino. Estava ressequido e queimado. Uma aliança no dedo anelar balançava frouxamente como se pertencesse a alguém maior. Em seguida, outro braço surgiu e empurrou a lona laranja com prática, fazendo com que ela se dobrasse sobre e si e revelasse duas pessoas. Uma mulher e um homem muito magros, desgrenhados e com semblantes assustados. Eles levantaram as mãos para protegerem os olhos da luz forte. Não conseguiam enxergar muita coisa, mas sabiam-se salvos pelo barco ali perto. Rascunharam sorrisos de alegria e se deram as mãos. Quando a luz foi, finalmente, redirecionada e aos poucos eles acostumaram os olhos, a expressão de alívio em suas faces foi se alterando radicalmente. Incredulidade, desconfiança, e, por último, desespero genuíno. Tentaram se fazer ao mar, mas as algemas presas em seus pulsos e ligadas ao mastro-chefe da balsa salva-vidas os impediu mais uma vez. Cientes da vulnerabilidade, ajoelharam-se, sem forças para questionar alguma coisa.

Andrei e Catalin assistiram o espetáculo extasiados. Eles conseguiram identificar cada passo da tragédia nos rostos dos prisioneiros. Andrei foi o primeiro a falar:

- Pierre, Amanda. É assim que recebem seus amigos? Se eu fosse mais sensível me sentiria ofendido - disse e apertou o braço de Catalin num incentivo para que se pronunciasse.

- Amanda, querida - Catalin lutava para ser sincera - que bom te ver, por um momento suspeitei que você havia me traído e nos abandonado. Agora estamos aqui e tudo ficará bem - encerrou.

Superficialmente refeitos do choque, os prisioneiros libertaram gritos histéricos, xingamentos, cusparadas e tudo o mais que suas forças permitissem até desabarem num choro contínuo.

Alheios ao sofrimento e vozerio, Andrei e Catalin preparavam o convés do barco. Ao se darem por satisfeitos, voltaram sua atenção novamente aos pobres náufragos.

- Queridos amigos - disse Andrei - vamos tirá-los daqui e levá-los para casa.

- Não acreditamos em vocês, imundos - retornou Amanda.

- Por favor, nós lhes tratamos desse maneira em algum momento? Sejamos civilizados - retrucou Andrei um tanto contrariado - eu vou lhes jogar uma corda com boias, agarrem-se nela e nós os puxaremos.

- Há tubarões aqui, seu louco - foi a vez de Pierre se exasperar - eles tentam virar a balsa dia e noite, não dormimos mais que meia hora por dia e você quer que nós entremos na água?

Genuinamente surpreso, Andrei ficou sem reação por um instante.

- Ele tem razão, Andrei - interveio Catalin - não podemos arriscar perdê-los logo agora para peixes assassinos.

- Sim, meu amor, você tem razão. Pierre, amarre a corda na balsa e puxaremos tudo junto, aí vocês poderão subir no barco em segurança.

Diante do aparente movimento de bom senso, as defesas dos prisioneiros se abaixaram, esqueceram que foram sequestrados, sedados e abandonados em alto-mar por dez dias quase sem alimento e água.

Conforme proposto, foram rebocados, subiram a bordo ainda algemados e foram recebidos sob a mira da Glock G19 na mão de Catalin. "Por precaução", ela justificou.

- Por que vocês nos fizeram isso, Andrei? Por que?

- Não vamos estragar o momento com esse tipo de conversa, Pierre. Foi só uma brincadeira. Vocês brincaram conosco e nós devolvemos.

- O que nós fizemos, Catalin? - Foi a vez de Amanda arguir.

Catalin que gostava de ser prática e direta respondeu:

- Amanda, você disse que eu jamais seria uma boa médica e o Pierre acusou Andrei de ser um louco metido a besta que vivia à custa da fortuna da família. Isso nos machucou muito. Andrei e Catalin se olharam embaraçados e ressentidos para estupefação de Amanda e Pierre.

- Mas isso acabou - emendou Catalin forçosamente - basta vocês não comentarem nada disso com ninguém e tudo está perdoado, certo, amigos?

Devido à fome, ao estresse sofrido, dias de agonia e tortura impensáveis, dor e angústia pelos filhos e família, o casal de prisioneiros não raciocinou plenamente e juraram, de modo explicitamente irônico, que jamais contariam para ninguém, "Claro que não", disseram eles.

Andrei e Catalin nem piscaram e se entenderam tamanha a cumplicidade desenvolvida.

- Ótimo, ótimo - respondeu Andrei - vamos jantar para comemorar, então.

A mesa foi servida com diversas iguarias e bebidas. Famintos como estavam, Pierre e Amanda jogaram-se sobre o banquete. Não demorou muito para, literalmente, desmaiarem de cansaço. Acordaram amarrados a mesas cirúrgicas dispostas próximas à proa da embarcação. O dia trazia os primeiros raios do sol muito brilhantes e atrevidos.

- Bom dia, querida Amanda. Bom dia, Pierre.

Como estavam amordaçados, não puderam retribuir o cumprimento, apenas forçavam os olhos em todas as direções e puxavam mãos e pés contra as amarras firmes. Estavam nus sobre as plataformas frias.

- Amanda, querida, vou lhe provar que serei excelente médica e Andrei provará a Pierre ser um caçador exímio - informou Catalin ao levantar o bisturi enquanto Andrei mostrava a faca de estripar animais.

Grunhidos, gemidos, soluços e gritos abafados se fizeram ouvir por muito tempo durante o trabalho nos corpos indefesos e eviscerados. Ao final, elogiaram-se mutuamente, orgulhosos do sucesso da façanha. Dispensaram os restos físicos no mar, limparam o convés do barco com esmero e passaram à higienização da balsa salva-vidas.

Assim que entrou no veículo de emergência, Catalin sentiu ânsia de vômito:

- Mas que fedentina horrível - ela reclamou - eles nem se deram ao trabalho de manter o local limpo. Por Deus, com tanta água e sal e esses preguiçosos na imundície.

- Esperar o quê de gente do tipo deles, meu amor? São imundos e ponto.

Após realizada a tarefa, voltaram ao barco para descansar e se alimentar. Estavam exaustos, mas radiantes. Era tarde novamente.

- Amor? - chamou Catalin após um intervalo considerável.

- Sim, meu amor.

- Está na hora de chamar nossos novos convidados, não acha? Ainda teremos uma longa viagem de volta.

- Sim, vou buscá-los - afirmou Andrei e desceu ao porão da embarcação.

Após alguns instantes, o homem surgiu puxando uma longa corrente de gomos dourados. Ao final dela, dois sujeitos algemados, vendados e amordaçados, usando roupas de festa. Aparentavam confusão em decorrência das drogas injetadas em seus organismos.

- Raul e Michel, não se preocupem, estão entre amigos - falou Catalin enquanto lhes retirava da boca e olhos os tecidos que lhes continham - já falei que vocês formam um lindo casal? - Andrei estatelou os olhos surpreso, mas a piscadela da parceira contendo um cílio de deboche o fez compreender a ironia e sorriu.

Algumas horas depois, Catalin e Andrei desfrutavam da companhia um do outro no silêncio do barco e da noite ao rumar para casa. Às suas costas um temporal poderoso desabava absorvendo gritos desesperados.

FIM.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 17/10/2021
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