50.000 ARMADEIRAS

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Já no final dos anos '80 do século passado, os cientistas da multinacional Vraxo haviam descoberto que o veneno da Phoneutria nigriventer, conhecida popularmente no Brasil com o nome de armadeira, apresentava interessantes propriedades farmacológicas que o tornava potencialmente útil no tratamento da disfunção eréctil, da dor crônica e até de certos tipos de câncer. Diante da perspectiva de faturar bilhões de dólares, a diretoria da Vraxo havia adquirido um antigo prédio do século XVIII situado quase no centro duma tranquila cidade italiana e o havia reformado para criar laboratórios oportunos para a reprodução das Phoneutrias (que em grego significa assassinas) e a extração da peçonha que, devidamente liofilizada, era enviada a uma fábrica na Alemanha para o beneficiamento e a transformação em lucrosos medicamentos.

Diante da ínfima quantidade de veneno obtida por cada aranha, os cientistas da multinacional, impulsionados pela cobiça, tomaram as devidas providências modificando o genoma dos aracnídeos para eles se tornarem mais prolíficos e com um veneno mais concentrado. Em breve, as quinhentas armadeiras iniciais se tornaram mais de dez mil e, uma vez, aconteceu que uma dúzia delas conseguiu fugir duma gaiola. Passando por um velho duto, o grupo se escondeu nas entranhas do antigo prédio, por sua vez erguido sobre os escombros dum castelo medieval. Esses subterrâneos, em boa parte inexplorados, se estendiam por vários quilômetros em todas as direções e, não faltando ratos, cobras, baratas e outras aranhas menores, representaram o habitat ideal para que as Phoneutrias se multiplicassem durante os anos até alcançar 50.000 exemplares.

Nos túneis sobrepovoados veio faltar o alimento e as armadeiras não tiveram outra opção se não sair em busca de sustento invadindo as habitações. Tudo aconteceu repentinamente numa noite de maio, quando as janelas das casas estavam abertas. As primeiras vítimas foram as crianças que, picadas durante o sono, acordavam de manhã com febre alta e forte mal-estar. Sendo a Phoneutria um predador eminentemente vespertino, elas voltavam a se esconder durante o dia e poucas foram localizadas pelos moradores. Devido os casos de envenenamento crescerem sem parar, e o hospital não possuir o soro específico, foi mister solicitar o antídoto ao Instituto Butantã em São Paulo, único produtor no mundo.

Enquanto isso, as aranhas se instalaram nos porões e nos sótãos das casas e dos prédios públicos, como escolas, hospitais, oficinas, etc. onde tiveram a possibilidade de se reproduzir ainda mais rapidamente. Dois meses depois elas estavam em todo o que é canto, debaixo das camas, nos armários, nos carros, nas gavetas: a cidade foi totalmente invadida pelas armadeiras e o terror se espalhou entre os habitantes.

Felizmente houve poucas mortes, mas ninguém se atrevia a entrar em casa e muitos tiveram que largar suas habitações procurando abrigo nas casas de amigos ou parentes em outras cidades. Enquanto isso, o governo nacional enviou tropas que, auxiliadas pelos bombeiros e a polícia municipal, dedetizaram os prédios um por um. Esse trabalho ficou caro e a Vraxo foi condenada a pagar toas as despesas, mais de 50 milhões de euros. Assim, antes do início do inverno, boa parte das famílias havia retornado a suas casas. Tudo parecia estar resolvido.

No entanto, não todas as Phoneutrias haviam morrido e as que sobreviveram, além de maiores e mais fortes, se tornaram imunes ao veneno. Além disso, muitas delas, escondidas em caminhões, trens e até aviões se espalharam em outras localidades colonizando as cidades da Europa como metástases de um gigantesco câncer. Elas ficaram escondidas em tubulações subterrâneas, devorando ratos e gias, prontas para atacar os seres humanos não apenas o seu alimento tivesse terminado. E foi isso que aconteceu.

Mais uma vez, os homens conseguiram exterminar 90% dos aracnídeos, mas os sobreviventes, provavelmente devido às modificações genéticas iniciais, não apenas aprenderam a lidar com as novas substâncias venéficas, mas evoluíram ulteriormente e agiam como se fossem comandados por um cérebro coletivo e inteligente. Agora atacavam em grupo, de forma inesperada, como se tivessem adquirido a propriedade de ler no pensamento dos humanos e prevenir suas ações.

Não havia mais lugar onde não estivessem presentes, invadindo até tanques de guerra, navios, refúgios, aviões de combate, cidades e fazendas onde exterminavam os rebanhos. Pior ainda, o antídoto se tornava cada vez menos eficaz.

Muitos se perguntaram se o fim da raça humana estivesse próximo e, realmente, não havia perspectivas de sobrevivência da nossa espécie.

Tudo isso havia sido gerado pela ganância de uma multinacional e, enquanto as pessoas sucumbiam, os ricos donos da empresa, junto com outros bilionários, se refugiaram nas Ilhas Hawaii, único lugar do mundo onde, pelo menos por enquanto, as armadeiras não haviam conseguido chegar.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 19/08/2021
Código do texto: T7324049
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