Corte do Diabo

Ela ouvia passos, passos caminhando sobre o piso no andar de baixo da casa. Os mesmos passos que ouviu algumas noites atrás, os mesmos passos que ouviu por outras duas vezes. Aqueles passos lhe causavam frio na espinha. Tentou se acalmar e voltar a dormir. Nas outras vezes em que ouviu não era nada, por que dessa vez seria diferente?

Se aconchegou no travesseiro e respirou profundamente. "Margareth, você deve está ficando maluca, trabalhar demais está mexendo com o seu cérebro", pensou sorrindo ligeiramente.

Um barulho de vidro sendo estilhaçado preencheu cada centímetro da casa, fazendo-a levantar com um pulo. Olhou pela janela, a luz da lua deixava o cômodo mergulhado em uma ligeira penumbra. "Não está tão escuro assim e esse barulho não foi fruto da sua imaginação".

Fixou um olhar relutante na porta, "Vamos lá, coragem."

Envolveu a mão na maçaneta e esperou por alguns instantes, antes de abrir a porta vagarosamente. O corredor estava vazio. O piso estava frio sob seus pés. Apoiou a mão sobre o corrimão da escada. Era possível ver a luz da lua que penetrava pela janela da cozinha, iluminando alguns poucos pedaços de vidro no chão. Ela se lembrava de ter fechado as janelas antes de ir dormir. Seus músculos ficaram rígidos.

Desceu o pequeno lance de escadas e viu o que parecia ser uma sombra se projetando da cozinha. Um grunhido escapou de seus lábios e correu pelas escadas, no entanto uma mão forte a agarrou, jogando-a no chão. Sem que tivesse tempo de esboçar qualquer reação, um sujeito corpulento subiu sobre ela e tampou sua boca com a mão.

- Não se preocupe, você não vai sofrer como eu. - Encarando os olhos desesperados da sua vítima.

***

Estacionou o carro e sentiu quando o pneu deu uma leve roçada no meio fio. Duas viaturas da polícia já estavam na frente da casa e vários polícias se espalhavam ao redor. Desceu do carro.

Olhou ao redor e caminhou até a entrada da casa. Um rapaz alto com o distintivo batendo contra o peito se aproximou dela.

- Se prepare.

Foi tudo o que disse antes de entrarem.

O cheiro de sangue estava impregnado no ar.

- Mas que diabos aconteceu aqui! - Se aproximando da vítima.

O corpo estava próximo da parede, alguns metros da escada, sobre uma poça de sangue extensa. Um único corte dilacerava sua garganta de um lado para o outro.

- Dá uma olhada na parede.

Ela se levantou e chegou mais perto da parede.

O número quarenta e quatro estava desenhado com sangue. O último quatro era menor que o primeiro e o final estava mais claro.

- Você acha que é o mesmo? - Perguntou ela.

- Até agora é o que parece. A vítima foi morta com um único corte no pescoço, cacos de vidro espalhados, sem sinal de arrombamento. Só esse número que está diferente.

- É, eu notei isso também. Dessa vez foi desenhado com o dedo.

- É. Por que mudar o padrão agora? - Pausa. - Talvez seja um imitador.

- Acho difícil. A perícia já chegou?

- Está vindo. Eu fui o primeiro a chegar.

- Parece que aquele pesadelo vai começar de novo.

***

Elizabeth estava sentada atrás da sua mesa, olhando as fotos da cena do crime. Alguém bate na porta.

- Pode entrar.

Um rapaz de estatura mediana e cabelos castanhos se aproximou.

- O Corte do Diabo voltou? - Perguntou ele.

Ela o olhou sem entender o que estava falando.

- Alguns aqui apelidaram esse assassino de O Diabo. - Sentando-se. - Mas não achei muito original, então resolvi chamar ele de Corte do Diabo.

- Porque ele mata com apenas um corte.

- Exatamente. Bem melhor do que O Diabo.

Ela sorriu.

- Infelizmente o Corte do Diabo voltou.

- O Fred me contou que pode ser um imitador.

- Ele me falou isso também, mas acho que não é muito provável. O número quarenta e quatro está diferente dessa vez, foi escrito com o dedo.

- O dedo é dele?

- Ainda não sabemos.

***

O sol havia se posto fazia algumas horas. A clínica estava vazia, a não ser por Estevam, trabalhar quando todos haviam ido embora era quase o paraíso para ele. Sua atenção estava toda voltada para o tecido celular preso sob as lentes de seu microscópio. Sua audição era um sentido perdido.

Na casa dos sessenta anos, cabelos grisalhos, era completamente obcecado pelo seu trabalho. Sua vida social era praticamente inexistente e amorosa um tremendo fracasso. Após seu primeiro e único divórcio se dedicava exclusivamente às lentes de seu microscópio e as páginas de sua pesquisa.

Sentiu que alguém o observava e tirou os olhos do microscópio por um segundo. Voltou sua atenção para o tecido celular e deu de ombros. Não havia nada. Pelo menos era o que ele pensava. Escondido nas sombras estava seu pesadelo pronto para assombrá-lo.

Mais uma vez sentiu que alguém o observava. Dessa vez deu as costas para o microscópio, olhando ao seu redor, atentamente. Ninguém.

- Quem está ai?

Silêncio.

- Apareça. Eu sei que está atrás das minhas pesquisas.

- Suas pesquisas não me interessam. - O rapaz corpulento apareceu. Seu rosto estava oculto por um capuz preto e usava roupas inteiramente pretas e pesadas.

- Quem é você? O que quer aqui?

- Eu achei que você tivesse uma consideração maior por mim, doutor. - Seus lábios se alargaram em um sorriso.

- Saia daqui antes que eu chame a polícia.

- Você pode tentar, mas duvido que vai conseguir.

Estevam pegou o celular na bancada do microscópio. Sem sinal.

- Teimosia não lhe faz bem.

O doutor sentiu um frio percorrer toda a sua espinha.

- Não pode ser. - Sussurrou.

- Parece que você finalmente se lembrou. - Tirando o capuz. Seus cabelos eram tão negros como seus olhos.

Estevam correu para trás da bancada com uma agilidade que há muito havia desaparecido de seu corpo.

- Está com medo do seu passado, doutor?

- O que você quer comigo?

- Você vai ser minha sétima vítima, não está claro? Eu achei que você fosse mais esperto.

Estevam franziu a testa.

- Você ainda tem aquela velha banheira?

- Não. Dei um fim nela, logo após...

Silêncio.

- Vamos lá, doutor. Não vai continuar?

Silêncio.

- Logo após se livrar de mim? Era isso que ia falar? Vamos lá, responda! - Gritando.

Estevam se manteve calado.

- É melhor você se sentar. A gente tem muita coisa para conversar.

Ele não se mexeu.

- Vamos lá, doutor. Teimosia não lhe faz bem. Afinal ninguém vai aparecer para te ajudar.

- A polícia vai te achar.

- Vai. - Com um sorriso deturpado. - A única coisa que a polícia tem feito nesses últimos anos é correr atrás do próprio rabo.

- Então foi você quem matou todas aquelas pessoas. - Seus olhos se arregalaram.

- Por que toda essa surpresa? Foi você quem me criou. Tudo o que eu sou, o que sei, foi obra sua. - O ódio em seus olhos era quase palpável.

- Você fez suas escolhas. Não eu.

- Que escolhas? - Socando a bancada do microscópio. - Que escolhas que eu fiz? Eu não escolhi ser trancado aqui. Eu não escolhi conhecer apenas a dor. Você fez essas escolhas por mim.

- Era para o bem da ciência.

O rapaz urrou e o acertou no rosto com as costas da mão.

- O que eu vou fazer com você também será pelo bem da ciência.

Ele pegou um tubo de ensaio e o bateu contra a bancada do microscópio, transformando-o em uma arma.

- Eu planejei minuciosamente cada detalhe desse dia. - Encurralando o doutor contra a parede. - Vai ser um belo espetáculo. - Encostando o tubo de ensaio quebrado em sua bochecha e abrindo um rasgo em direção a sua boca.

- Seu doente. - Entre dentes.

- Você ainda não viu nada.

- Isso não vai ficar assim!

- Na verdade vai. - Sorrindo. - Deixa eu te contar o que eu planejei pra gente hoje. - Se afastando. - A polícia vai me encontrar. Depois ela vai encontrar a sua clínica, mas será tarde demais para você. Eles vão arrombar a entrada da clínica e vão encontrar a única luz acessa do prédio, a sua sala. Quer saber o que eles vão encontrar? Bom, vou falar do mesmo jeito. Tudo vai estar quebrado, seus precisos arquivos e pesquisas rasgados e espalhados pelo chão, manchados com o seu sangue. Talvez eu pendure um braço na porta para saudá-los ou a cabeça.

- Pare, pare. Está me dando enjoos. - Caindo sobre os joelhos com a mão no estômago.

- Isso tudo é culpa sua. - Ajoelhando ao seu lado e sussurrando em seu ouvido. - Você fez de mim um monstro, um demônio que não conhece nada além da dor.

- Se tudo o que você queria era acabar comigo, por que matou aquelas pessoas?

- Eu queria ver se era capaz. Depois que eu matei a primeira vez não consegui mais parar.

- As coisas ainda podem mudar, tudo ainda pode ser diferente para você.

- E quem disse que eu quero? - Olhando-o no fundo dos olhos. - Mas agora a conversa acabou, está na hora de trabalhar.

***

Elizabeth estacionou o carro as pressas e saltou. Fred a esperava próximo a uma porta.

- Esse é o lugar.

Os dois sacaram as armas e arrombaram a porta. Estava vazio. O cômodo era comprido e havia apenas uma cama e um pequeno guarda-roupa, uma cozinha minúscula, e um banheiro. Tudo era preto. Fred abriu o guarda-roupa. Havia apenas umas poucas peças, todas pretas.

Elizabeth olhou para um pequeno quadro na parede onde alguns papéis estavam presos com agulhinas. Pegou um recorte de jornal.

- Clinica Jacob Boehm, 1795. Esse não é o nome da clínica onde a irmã da sua esposa ganhou o bebê?

- É. - Pegando o pedaço de jornal nas mãos.

- Olha isso. - Mostrando um caderno aberto.

- Hora de acertar as contas.

- Ele queria que a gente encontrasse esse lugar.

- Maldito.

- A gente tem que ir para a clínica agora. - Jogando o caderno na cama e desaparecendo pela porta.

***

O rapaz corpulento estava em uma pequena mata alguns metros da clínica. Suas roupas queimavam na fogueira que havia feito em sua frente. Sirenes ecoavam próximas, fazendo-o sorrir. Em suas mãos, olhava para sua ficha. Tudo estava escrito ali, ao lado da foto de quando era apenas uma criança. No alto, o ano de 1978 estava destacado. Ele jogou a pasta no fogo e deu as costas para a fogueira.

- Quem será o próximo?

*** INSPIRADO EM UM RÓTULO DE WHISKY. SERÁ QUE VOCÊ CONSEGUE DESCOBRIR?

Alice Moraes
Enviado por Alice Moraes em 13/08/2021
Código do texto: T7320210
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.