As Bruxas

Quando tudo terminou Gabriel vestiu sua roupa, deu a volta na cama e se jogou na poltrona perto da janela. Com um cigarro entre os lábios ele tragava e expelia a fumaça, com uma paciência quase didática, enquanto olhava o movimento na rua.

Passou as mãos nos cabelos louros encaracolados e inclinando-se em direção à cama perguntou: —Tudo bem gata? Mas ele sabia que não estava!

Beatriz estava sentada na cama de costas para ele. As mãos crispadas na face. Soluçava. Estava chorando. A cabeça baixa.

Entre arquejos ela falou: — Você prometeu! Prometeu que iria parar se eu pedisse.

Gabriel bateu a guimba do cigarro no braço da poltrona e languidamente tornou a olhar para rua. Houve alguns segundos de silencio. Com aquela acusação condensando no ar entre eles. Para logo após ele dizer:

—Pare com isso benzinho, foi gostoso....

Voltando o rosto para a garota questionou: —Não foi? Um sorriso insolente escancarou dentes simetricamente perfeitos. Ele tinha a beleza dos Deuses.

Ela levantou o rosto, mas não conseguiu fitá-lo diretamente nos olhos.

Sentiu nojo dele. Daquele sorriso cretino. Queria quebrar aqueles dentes e pintar de vermelho todo aquele rosto. "Como fui tola", pensou ela.

De repente os olhos dos dois se encontraram.

Ela fez menção que ia levantar, mas não saiu do lugar. Seus grandes olhos negros faiscaram ameaçadoramente, a boca rija comprimida em uma linha fina.

—Você prometeu Gabriel! A voz estranhamente mais grave, impositiva.

Era como se os músculos da face de Beatriz houvessem se alterado. Parecia outra pessoa. Gabriel sentiu medo. Não conseguiu olhá-la por muito tempo. Virou o rosto novamente para a janela e limitou-se a dizer:

—Todos aqueles gemidos, pensei que estava agradando...

E mais uma tragada no cigarro.

A porta se abriu violentamente, a figura colérica parou no umbral:

—Você irá se arrepender!

A porta se fechou com um estalido ensurdecedor.

O rapaz continuou a fumar tranquilamente.

—A mim foi muito agradável. Finalizou com um encrespar dos lábios em claro desdém.

Falou apenas para si. Estava sozinho no recinto.

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Num acampamento em algum lugar:

Estavam num total de seis moças e entre elas estava Beatriz. As meninas estavam sentadas em uma espécie de posição de lótus, formando um círculo perfeito na grama verde. Porém, mesmo de longe era possível notar, conversavam e soltavam risinhos. Descontraidamente.

Amigas relaxando numa manhã de sábado ensolarado? Talvez.

Um sol belo e imponente beijava com raios dourados a superfície da terra. Mas elas estavam quase debaixo de uma grande e frondosa mangueira.

De repente os risos e as conversas cessaram. Elas entreolharam-se. Expressões rígidas, de repente sombrias. Como se estivessem na iminência de uma guerra. Uma delas, a que estava sentada defronte de Beatriz, fixou na moça um olhar implacável e a questionou:

—Está certa de sua decisão? Como bem sabe, aqui não há como voltar atrás.

Todas as outras lançaram olhares ansiosos à Beatriz. Em expectativa.

Ela limitou-se a responder com um movimento de cabeça. Estava certa do que queria. E entregou a outra um colar dourado que foi posto no centro do círculo junto de uma vela vermelha que ali estava também.

—Muito bem, então que assim seja. Disse a que a questionou.

Todas deram-se as mãos fechando completamente o círculo. Encararam-se por alguns segundos e logo após cerraram os olhos. E algo se deu início.

De súbito, os lábios das jovens começaram a mover-se discretamente. Sussurravam algo. Estavam em sintonia. Os rostos, agora, lívidos, numa expressão de profunda concentração, quase de dor. O que proferiam era impossível de captar.

Enquanto continuavam a entoar as misteriosas palavras o pavio da vela, cravada no centro do circulo, incendiou-se sozinha. Uma chama pulsante e alaranjada apareceu. Nesse instante uma lufada de ar fez farfalhar os galhos da grande arvore. O vento dançou entre as moças, esvoaçando os cabelos e as roupas, mas não apagou a vela. Elas não estavam sozinhas, havia, naquele momento, alguém ou algo ali. Era palpável que algo, de insidioso, deslizava por entre elas.

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A quilômetros daquela paisagem verdejante e convidativa, Gabriel assistia ao jornal da manhã. Tomando café confortavelmente no sofá da sala. Como era de seu costume.

Repentinamente, sentiu uma fisgada à altura do estômago. Grunhiu de dor e surpresa. Derrubou um pouquinho de café no chão. Apalpou o tórax inquisitivamente. —Hum, que estranho. Murmurou o rapaz.

Mas a dor se foi tão rapidamente como brotou.

Sua mãe, que estava a seu lado, entortou o canto dos lábios.

—Deve ser todo esse café que você toma, precisa cuidar melhor da saúde. disse, o repreendendo.

E depois voltou a atenção para a TV —E trate de limpar isso.

—Tudo bem, mãe.

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Uma das moças, a de longos cabelos ruivos, desfazendo a formação, levantou-se e foi até o tronco da arvore, havia ali alguns objetos. Voltou rapidamente com uma taça de bronze entre os dedos. A segurava com as duas mãos. Um líquido indistinto preenchia seus espaços. Ao que parecia, era corpulento e escuro. Viscoso.

A ruiva entrou em formação novamente. Sentou-se, voltou a fechar os olhos. Foi a primeira a beber da taça. Depois passou para a seguinte. A taça dançava de mão em mão. Entre goles e sussurros todas beberam. Os olhos ainda cerrados.

Começaram a entoar um canto baixinho, ritmado. Balançavam os corpos de um lado ao outro. Numa dança hipnótica e sincronizada, em transe. A vela ardendo imponentemente. A chama pulsava como se adquirisse força de alguma fonte de energia externa.

Abruptamente, os lábios pararam de sussurrar. Nesse momento o cenário ficou sinistro.

Permaneceram alguns segundos em completo silencio. Era possível ouvir uma pena cair na grama, se este fosse o caso.

As meninas estavam com os cenhos franzidos, as sobrancelhas angulosas. Os lábios, apenas uma linha fina. Expressões profundamente austeras. Todas elas.

Subitamente clamaram todas juntas: — Grande Mãe ardente, derrame em nós a tua graça! Ó majestosa!

E logo mais, como se respondessem a algo ou a alguém: — Que assim seja!

Nesse instante, a chama da vela dilatou suas proporções e agigantou-se. Ficou da altura de um humano médio de pé. As moças permaneceram de olhos fechados. Em posição.

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Muito distante dali:

Gabriel deu um grito. Jogou para o alto a xícara, que se espatifou no tapete da sala. As mãos nervosas pousaram sobre o estômago, pressionando-o. Inclinou o corpo para frente e caiu se dobrando no chão.

—Está queimando! está queimando! —Mãe! Implorou ele.

O rosto corou rapidamente ficando todo escarlate. A testa encharcada de suor. Conseguiu, ainda, suplicar uma última vez num berro esganiçado:

—Mãe, estou morrendo.

Ficou ali, se contorcendo e gemendo. Em posição fetal.

A mãe veio correndo da cozinha, se inclinou e agarrou o filho pelas axilas. Os olhos arregalados. Apavorada. O filho era pesado, mas conseguiu erguê-lo e sentá-lo novamente no sofá.

—Gabriel, fala comigo, o que houve meu filho?

Gabriel estava curvado. Da cor de um tomate maduro.

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O sol daquela linda manhã dourada timidamente deu lugar a nuvens calibrosas e delgadas. Que pareciam ameaçar liberar o conteúdo de seu interior a qualquer momento.

Abaixo das nuvens as moças voltaram a sussurrar, mãos entrelaçadas, indiferentes a metamorfose do tempo que ocorria à volta.

Pela primeira vez desde que começaram aquele ritual? elas abriram os olhos, todas ao mesmo tempo. Como um vampiro, que há muito dormia e de repente desperta para missão premente.

As pupilas dilatadas, brilhavam ao reflexo da luz vigorosa da vela. Mesmo à luz do dia.

Ainda de mãos dadas, todas miravam a grande chama alaranjada quando proferiram em uma só voz: —Grande mãe ardente, nos presenteie com o sangue do escolhido! Ó majestosa!

A chama mudou de cor, ficou escarlate. Aquilo era impressionante.

E novamente, todas disseram: —Que assim seja!

Um trovão rabiscou os céus e uma chuva pesada desabou logo em seguida. A chama escarlate da vela permaneceu acessa. Imperturbável.

As moças não desfizeram a formação. Mesmo com a tempestade.

Naquele instante, seus rostos não eram o de adolescentes bonitas e graciosas. E sim de mulheres, poderosas. Implacáveis.

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Gabriel que estava curvado, de olhos fechados e gritando de dor, de repente se empertigou no sofá. Ficando em um ângulo perfeito. A mãe, que o sacudia, deu um grito: —Graças a Deus, agora fale comigo.

Tudo aconteceu muito rápido.

O rapaz a olhou. Os olhos injetados. Parou de gemer. Por milésimos de segundos apenas olhou para a mãe.

Quando de repente, um filete de sangue brotou entre seus lábios. Nesse instante ele levou as mãos ao pescoço imediatamente. Forçou uma tosse e saiu um som estranho de sua garganta. Como se fosse carne se dilacerando. Algo horrível de ouvir.

A mãe deu um berro. Sobressaltada. Segurou os ombros do filho e o sacudiu mais violentamente: —Filho, pelo amor de Deus. E começou a chorar.

—Não saia daí, vou ligar para a emergência.

Antes que ela pudesse se levantar, o filete de sangue na boca do filho começou a jorrar aos borbotões e o rapaz começou a expelir alfinetes prateados. Vários deles. pareciam centenas.

— Pela santa mãe de Deus, o que é isso meu filho? Gritou a mulher quase desmaiando.

A expectoração diabólica não durou muito tempo.

Sangue empapado e alfinetes encharcaram o colo de Gabriel e de sua mãe.

Com uma última esguichada de morte rubra ele despencou. Caindo com a cabeça em cima do ventre de sua mãe. De olhos abertos. Estava morto.

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A chuva cessou tão repentinamente como se deu início. As moças suspiraram. E as expressões duras e sombrias deram lugar a expressões de cansaço, mas também de satisfação. Sorriram e se abraçaram. Como num fim de uma dura e bem-sucedida missão.

A vela, agora apagada, foi apanhada junto do colar dourado. As meninas se levantaram e dirigiram-se ao grande tronco para pegar o restante dos objetos.

Uma mulher mais velha surgiu no cenário. Veio se aproximando em direção à arvore. Trajava um belo vestido vermelho. Ao chegar perto das meninas perguntou: —Tudo correu como o esperado? Sua voz tinha uma nota de autoridade e força.

Todas se viraram em direção a mais velha. Cabeças sorridentes menearam em aprovação.

—Muito bem, ninguém machuca as filhas da luz. Redarguiu a mais velha.

Todas assentiram.

A mais velha completou: —Agora vamos, temos outros trabalhos para executar.

Saíram juntas, em direção a um grande casarão mais ao longe. Poderia ser um hotel ou a mansão de alguém. Não teria como ter certeza.

Antes que se afastassem muito do local da confraternização, Beatriz ainda olhou para trás. Um sorriso de orelha a orelha estava desenhado em seu belo rosto.

Uma pessoa que olhasse para ela naquele instante jamais poderia tecer que minutos atrás ela parecia ser outra coisa.

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 20/03/2021
Reeditado em 16/09/2021
Código do texto: T7211539
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