Conto: Espírito bebum obsessor

* Adriana Ribeiro

     Reza a lenda que os espíritos existem e estão vagando por toda parte. Acredita-se também que podem atravessar certos portais ou se valer de amuletos e rituais místicos para tomar posse do corpo de seres humanos, principalmente aqueles que ainda não evoluíram e carregam em si vícios de quando eram encarnados. Mas a maioria das pessoas comuns não acredita nisso. Eu mesma não acreditava. Até que...
   
     Outro dia estava ouvindo uma conversa entre dois trabalhadores aqui em casa. Um deles está passando por uma situação muito difícil e a conversa entre eles me chamou bastante a atenção. Era já de tardezinha quando eles se puseram a conversar embaixo da jaqueira aqui do sítio. Um deles estava muito quieto e demonstrando estar contrariado. E foi aí que o outro começou a fazer perguntas e tentar animar o rapaz calado.
     Depois de alguns minutos de silêncio, quando eu já não esperava mais que o homem respondesse, ele começou a fazer um relato dos seus problemas de família, dizendo que estava pensando em se separar da mulher porque ela bebia muito e não respeitava mais ele.
     Eu fiquei curiosa e parei para ouvir com atenção porque fiquei bastante impressionada com a tristeza com que ele dava essa informação. E à medida que ele ia falando todos os detalhes eu ia ficando toda arrepiada e assim como ele, muito emocionada. Então cheguei mais perto para ouvir melhor e me sentei no degrau da calçada.
     E ele foi contando a história...
     Contou sobre quando conheceu Rosa, então com treze anos de idade, e de como logo ela se tornou sua esposa. Ele por sua vez com dezenove anos. Ela era uma adolescente magrinha, cabelo preto encaracolado e jeito simples e roupas humildes, pois era muito pobre. Tinha um olhar raivoso, meio rebelde, misturado com um semblante de tristeza de quem vive uma vida conturbada.      Ela era a segunda filha, tendo somente um irmão mais velho, os outros eram mais novos que ela.
     Rosa vivia com a mãe, que era separada do marido, o pai dela e do irmão mais velho. Os dois irmãos mais novos eram filhos de casos fortuitos da mãe.      Passavam muita dificuldade financeira e para completar a vida miserável a mãe ainda era alcoólatra.
     Rosa cresceu nesse cenário caótico, de família desfeita, de mãe dependente química e muito relapsa, imoral e violenta por causa da bebida.      
     Quando conheceu Pedro – era esse o nome do rapaz tristonho - ainda tinha um corpo de pré-adolescente e vivia sempre mal humorada, reclamava muito da vida e brigava por tudo com a mãe e com os irmãos. Inclusive com o próprio Pedro por ser amigo de seu irmão mais velho, que ainda era menor, mas já trabalhava roçando pasto na mesma fazenda onde Pedro trabalhava como ajudante de vaqueiro.
     
     A amizade com o irmão de Rosa fez com que Pedro e ela sempre se vissem e com o tempo começaram a se enamorar. Um dia ela lhe contou que brigava muito com a mãe e queria ir embora de casa, fugir, ir trabalhar em uma casa de família na cidade grande, porque não aguentava mais a vida de privações que levava.
     Com medo de vê-la ir embora e nunca mais se reencontrarem, Pedro propôs que morassem juntos e ela aceitou sem questionar, de modo que se juntaram em poucos dias sem sequer se casar.
     Jovem demais, Rosa nem tinha noção do que era um “casamento”, mas como queria se livrar daquela vida difícil saiu de casa abandonando a mãe e os irmãos, indo morar na casa dos pais do marido que é filho único.
     Assim Rosa foi viver a vida dela. “Casou-se”.

     Enquanto isso a mãe a cada dia bebia mais. De vez em quando Rosa ia visitar os irmãos, mas sempre que fazia isso brigava muito com a mãe, pois esta sempre estava bêbada.
     Em uma dessas visitas, Rosa foi acompanhada do marido e este acabou testemunhando uma briga violenta entre mãe e filha. Depois de algumas agressões verbais a mãe de Rosa, bastante alterada, avançou sobre a filha e agarrou pelo cabelo da moça que estava amarrado num rabo de cavalo, e saiu puxando-a para o terreiro da frente da casa. Xingando e expulsando Rosa de casa enquanto a machucava fisicamente. A cena foi tão dramática e se deu de forma tão rápida que nem Pedro e nem ninguém teve tempo de fazer alguma coisa para separar as duas.
     
     Para se defender da violência da mãe e se livrar das agressões físicas Rosa a empurrou no terreiro e derrubou-a. Com a queda a mãe passou alguns minutos quieta, como se estivesse desacordada, havia batido o lado esquerdo da face no chão e ferido a pele do rosto. Depois de alguns minutos ela começou a se mexer, mas como estava muito embriagada, não conseguia se levantar. Então recomeçou a xingar, espernear e a amaldiçoar a filha.
     Depois de um tempo, já cansada de se debater e com o álcool já se esvaindo do seu cérebro, ela começou a chorar. E chorando dizia bem alto: “ Quando lá ela morrer você vai ver porquê lá ela bebe”.
Repetiu essa frase por três vezes consecutivas, cada uma com uma tonalidade de voz diferente. Logo em seguida teve uma crise convulsiva ali no chão, e para desespero e horror de todos que se juntaram para ver a cena, ela começou a se azunhar, se debater e ao mesmo tempo ia se retorcendo, gemendo, revirando os olhos e escumando. Começou a puxar os próprios cabelos e gritava sons esquisitos, mais parecendo grunhidos. Uma cena verdadeiramente terrível que eles presenciavam sem saber o que fazer para ajudá-la. E quando o corpo já estava todo retalhado pelas unhas a mulher começou a se entortar toda, o pescoço deu uma volta estranha que normalmente o pescoço de uma pessoa não daria. E dali a alguns instantes ela parou de se mexer e ficou imóvel por um tempo que ninguém soube precisar, mas que dava a impressão de que ela aparentemente havia dormindo ou desmaiado.
     
     Passado um pouco o susto, o filho mais velho chegou perto e chamou pela mãe, tocou no rosto dela e quando o virou para ele, viu seus olhos abertos e sem vida. Então ele gritou: _ Ela tá morta!
     Foi uma agitação só, s filhos pequenos a chorar, a mãe dela que morava na vizinhança foi chamada e mandou o neto ir correndo até o posto de saúde do povoado. Pedro estava paralisado de choque sem acreditar no que estava vendo. E Rosa só chorava.
     Quando o pessoal do posto de saúde chegou ao local constataram que ela já não se mexia mais e nem respondia a nenhum estímulo. Chamaram a polícia e um médico para ver o que tinha acontecido. Quando estes chegaram fizeram os seus respectivos serviços de investigação. E logo o médico já fazia o encaminhamento do corpo para o IML. Não havia mais nada a ser feito. A mãe de Rosa estava realmente morta.
     
     Naquela hora de intenso sofrimento e choque ninguém se atentara para o que a mãe de Rosa dissera. Nem mesmo ela que entendeu aquilo como uma frase do tipo: “você só vai saber o que é uma mãe quando eu morrer”. Frase que todo adolescente já ouviu. E ela imaginou que a mãe se referia à sua falta, à dor do sofrimento de perder alguém que supostamente não se valoriza. Coisas assim...

     Após o velório e o enterro restava decidir o que fazer com os irmãos e com os parcos pertences da casa. Pedro resolveu ajudar a mulher levando os dois irmãos mais novos para viver com eles que ainda não tinham filhos. E parte das coisas da casa, uns poucos utensílios de cozinha e roupas de cama e mesa eles levaram para usar na deles que também era pobre. O irmão mais velho decidiu ficar morando com a avó materna ali mesmo no povoado e perto da fazenda onde trabalhava.
     
E foi assim que as dificuldades e os problemas mudaram de endereço. Com o passar dos anos a família de Pedro começou a se desestruturar também.

     Depois de um ano, Rosa engravidou do primeiro filho e quando teve o bebê Pedro fez uma comemoração. No interior as pessoas têm mania de fazer “meladinha” ( uma espécie de batida de arruda com cachaça pura, alho, cominho, cravo e açúcar ou mel) e obrigar a parida a tomar um gole.
     Não se sabe se por acaso do destino, entre os utensílios de casa herdados por Rosa, havia um copo de bar, desses que se medem as doses de cachaça no balcão, que a mãe dela havia levado para casa numa das vezes que bebera demais.
     Na confusão das comemorações do nascimento do bebê, deram a dose de meladinha à Rosa no tal copo. Mas ninguém podia imaginar o que se sucederia dali pra frente. E até hoje não se pode dizer que o copo tenha a ver com a história, mas...
     O fato é que, segundo Pedro, esse foi o último instante que ele viu sua mulher completamente sóbria. Dali em diante Rosa tomava uma dose de meladinha quando dava vontade e logo aprendeu a fazer sozinha. De modo que meladinha virou item que não faltava dentro de casa. Mas depois de um tempo, ela começou a beber outros tipos de bebidas que comprava. Não demorou muito para começar a deixar as crianças em casa e ir beber no bar da vizinhança. Onde o fazia pago ou fiado.
     
     Essa situação a levou a brigar com os sogros e com o marido. Judiar dos irmãos e até do bebê. A situação se agravou e ela começou a beber até cair pelos lugares e envergonhar toda a família. Exatamente como a mãe fazia.
As pessoas mais velhas da cidade, rezadores e outros menos religiosos, começaram a incentivar Pedro a procurar um tratamento de limpeza espiritual para Rosa. E ele resolveu levá-la a um centro espírita famoso na região. O pouco da economia que havia guardado com seu trabalho de vaqueiro levou consigo para pagar o tratamento da mulher.
     
     Chegaram ao centro espírita, uma casa ampla, quatro águas, cercada de mangueiras e jaqueiras altas, jardins com flores nativas e plantadas, tudo muito limpo e bonito. Fresco... Rosa se sentou num balaço pendurado na jaqueira, onde ficou como se fosse uma criança, com os pés suspensos no ar...
     Enquanto isso Pedro foi falar com o guia espiritual que logo os atendeu e os levou para um salão amplo e creio de bancos e cadeiras ao redor de um altar com algumas tigelas, castiçais e quadros de santos católicos. Algumas esculturas de barro que Pedro não soube identificar. Tudo sobre uma mesa longa coberta por uma toalha branca de renda.
     Ao começar a consulta o Guia espiritual disse que o tratamento dela não era simples e por isso não seria barato. Mas que eles teriam que fazer senão ela ia acabar sendo vítima do mal que a acompanhava. E então falou que se tratava de um espírito obsessor que a estava possuindo.
     Disse também que o tal espírito obsessor tinha forças sobre ela porque não era uma entidade estranha. Era o espírito de alguém que a conhecia e a dominava, pois sabia exatamente tudo sobre o que Rosa sentia.
     Foi aí que Pedro começou a reparar que, por incrível que pareça, a mulher repetia exatamente as mesmas coisas que a mãe dela dizia quando estava alcoolizada. E foi assim que marido e mulher se olharam e souberam o que estava acontecendo. Entenderam do que se tratava. E já sabiam também quem era o tal espírito obsessor que fazia a pobre Rosa beber.
     
     Era sua própria mãe. Ou talvez, o mesmo espírito que a possuíra um dia e fazia com que ela fizesse e dissesse para as pessoas, coisas que as ofendiam e magoavam, mas que depois não se lembrava de havê-lo feito. Do mesmo jeito que agora Rosa o faz.

     Mas, saber do que se tratava não fora lá grande coisa. Pois a promessa de cura feita pelo guia espiritual não foi adiante.
O dinheiro não foi suficiente.
     Limpar o espírito custa caro. Melhor cuidar pra não deixar ninguém entrar. Pois pra sair... É outra história!
     E até hoje o pobre casal sofre com o vício do alcoolismo (dependência química para os incrédulos) decorrente da possessão demoníaca que Rosa sofre por ter deixado o canal da discórdia aberto entre mãe e filha.

     E Pedro, agora eu entendo, estava triste, pois sabia que ao chegar em sua casa poderia não encontrar a mulher, ou, se com sorte Rosa já estivesse em casa, não era mais ela quem o estava esperando naquela hora...


     Ah! Rosa é mãe de uma menina...

     Que Deus as ajude!

 
 
 
 
 
 
 
 
Publicado na Antologia Obsessores da Editor a Dark Books – Organizadora Indy Sales /2021




 
Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 11/01/2021
Reeditado em 18/07/2021
Código do texto: T7157288
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