ELES JÁ ESTÃO ENTRE NÓS

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Herbertzig possuía duas coisas na vida: coragem e medo. Dizia ele que estas forças se equilibravam quando uma não anulava a outra,

e era bastante razoável carregar as duas juntas na mesma bolsa. E num dia comum, sem razão ou aviso, o mundo mudou. O que era certo, deixou de ser. O que era errado, deixou de ser. Nesse dia, Herbertzig estava com suas jóias preciosas na bolsa e o medo, como de costume, foi o primeiro a sair. Enorme, envolvente, sufocante, quase o deixa paralisado. Por sorte, ou treino, a coragem veio no rastro e impulsionou o corpo de Herbertzig num salto arriscado para o lado, segundos antes da pedra gigante encontrar o asfalto e a sombra dele. Depois disso, foi uma correria sem tamanho.

- Que diabos é isso? perguntou alguém no meio da multidão, admirando o céu antes azul e agora tingido de vermelho-escarlate, na verdade, a pergunta era sobre o monstro que se elevava como um obelisco descomunal.

Qualquer pessoa, em qualquer ponto, mesmo ao rés do solo, poderia enxergar aquilo e seus muitos braços sem nenhuma dificuldade. A cabeça, ou o que parecia ser uma cabeça por estar no topo elevado da coisa e de onde partiam imensas pilastras retangulares luzidias, assemelhava-se a uma montanha. No lugar dos olhos, crateras fumegantes como se meteoros tivessem acabado de ali colidir. O corpo era um titânico tronco que descia e plantava-se nas águas do oceano. Não se viam pernas ou divisões, entretanto, aquilo se aproximava, causando ondas imensuráveis.

- O fim chegou, vocês foram avisados - gritava desesperado o homem na esquina ainda segurando seu livro sagrado - não sobrará nada porque as portas foram abertas.

Quando o monstro ergueu seus braços e deles começaram a sair esferas muito brilhantes, quase ninguém percebeu, tampouco notaram que esses objetos ao encontrar um obstáculo explodiam violentamente, gerando mais e mais destruição, liberando pequenas criaturas aladas dotadas de ferrões e garras cortantes.

Ainda correndo, Herbertzig virou-se para se certificar da situação e tropeçou, perdendo os sentidos.

Acordou sentado em sua poltrona favorita. A TV emitindo apenas estática. "Outro pesadelo", pensou Herbertzig.

- Não tenho tempo para essas besteiras agora - disse para si enquanto ensaiava se levantar. Estava fatigado. Nunca antes havia trabalhado tanto como nos últimos dias. Mas era preciso continuar.

Parou na cozinha e devorou o sanduíche de presunto com queijo, empurrado por duas xícaras de café preto. Desligou as luzes da casa e rumou ao porão. Imediatamente após abrir a porta, imaginou sentir o odor de vômito, sangue e fezes que fugiam do buraco escuro. "Que droga. Esses cheiros são a parte mais horrível de tudo, por enquanto", reclamou Herbertzig silenciosamente. Acionou o pequeno interruptor à sua esquerda para a luz amarela poder identificar os muitos degraus que avançavam para o interior e subterrâneo da velha casa de subúrbio. Ouviu gemidos ou sussurros à medida que descia, mas julgou serem ratos, havia muitos.

Uma vez no piso após as escadas, inspecionou o local e deu tudo como certo e organizado. Foi até à parede em sua frente, arrastou o pequeno baú de madeira e, uma vez livre o espaço por baixo da peça, pisou com força bem no centro deixado vago. A parede se abriu em duas partes e revelou a porta de madeira marrom com fechaduras antigas. Do molho de chaves em sua cintura, buscou aquelas apropriadas e empurrou a parte mais lisa. Dessa vez o mau cheiro não era imaginação e o atingiu em cheio. E dessa vez não eram barulhos de ratos a gemerem.

Após fechar atrás de si a passagem, Herbertzig encarou os dois seres acorrentados às estacas fincadas no meio do grande espaço. Uma fornalha acessa ao canto continha dois ou três ganchos já incandescentes. Penduradas nas vigas, muitas ferramentas de ferro e couro enfeitavam o quadro. Havia uma cadeira à frente dos prisioneiros, nus e machucados, onde ele sentou-se depois de desamarrar as focinheiras dos seus hóspedes.

- Espero que tenham refletido bem sobre a situação de vocês - iniciou Herbertzig.

- Por favor, nos liberte, não sabemos de nada, não entendemos o que você quer - interrompeu um dos acorrentados, aparentemente a fêmea, por causa da voz estridente.

- Ora, ora, ora, não vamos começar com isso novamente - respondeu o anfitrião - já passamos por isso, esses dentes no chão provam isso, não ? - disse e olhou para o local onde estavam aquilo que pareciam ser ossos, alguns achatados, outros mais pontiagudos.

Os cativos estremeceram explicitamente.

- Então, continuemos. Vão me entregar a encomenda ou terei que arrancar de vocês? - Herbertzig perguntou em tom profissional sem se incomodar com o desconforto dos demais.

Dessa vez, a fêmea silenciou e seu companheiro disse:

- Você sabe de onde somos, nossos documentos estão nesta sala, você nos conhece há tempos, não sabemos e não temos nenhuma encomenda, nada, não temos nada para entregar. O que você quer que digamos, homem?

Herbertzig levantou-se, deu a volta por trás das estacas, dirigiu-se à fornalha e escolheu o objeto em forma de espátula. Estava vermelho radiante em decorrência do fogo a que estava submetido. Aproximou-se da fêmea pelas costas. De onde estava, o outro preso podia ver tanto o algoz quanto a espátula ardente.

- Dizem que a parte interior das coxas é local muito sensível - falou em tom ameno e prosseguiu - entreguem o que vocês protegem e prometo que não haverá mais dor.

- Não, por favor, por amor a seus filhos, não faça isso - suplicou entre lágrimas - nós diremos o que você quiser, apenas nos dê uma dica do que deseja ouvir, por favor, por favor ...

Balançando a cabeça, dando a entender que essa resposta não era satisfatória, Herbertzig encostou e manteve pressionada a espátula nas coxas da fêmea pelo lado interno das pernas. Os gritos de ambos foram tremendos.

Ao amanhecer, todos estavam exaustos. Mais que exauridos, os dois capturados estavam sem vida. Porém, Herbertzig sorria. Conseguira mais uma vez. Não havia outro meio, eles deveriam confessar e abrir mão da sua missão, caso contrário, a coisa não se materializava. Pegou os corpos fétidos dos aprisionados e os atirou no poço localizado bem no fundo do salão. Em poucas horas eles seriam dissolvidos na água.

Antes de sair do recinto, guardou aquilo que retirara dos seres que interrogara sem cessar. E ali estavam dois espécime-filhotes de algo com cabeça sobre colunas retangulares, duas crateras no lugar dos olhos e muitos braços. Empurrara estas criaturas malignas, cada uma em potes grande de vidro contendo formol e as guardara na estante rente à paredes, ao lado de dezenas de outros potes contendo as mesmas figuras hediondas.

Ao subir as escadas, de volta para o mundo natural, Herbertzig pensava consigo: "Um dia, um desses monstrinhos irá escapar antes de ser pego e crescer. Não quero estar vivo quando acontecer", era o medo usando sua mente enquanto a coragem descansava depois da luta.

FIM.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 01/08/2020
Reeditado em 02/08/2020
Código do texto: T7023607
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