O homem do saco

O relógio sinalizava quase dezoito horas e o crepúsculo já banhava o céu com aquele tom alaranjado hipnótico muito bonito. Laura se preparava para sua caminhada até o ponto de ônibus. Catou a bolsa na mesinha da sala, deu uma arrumadinha final no cabelo e berrou pelo filho que estava no quarto assistindo desenho para anunciar sua partida .

Ela trabalha a noite em um restaurante e por isso seu filho Carlos, de 10 anos, fica sozinho em casa até as onze.

As regras são claras e fixas: "Nada de sair de casa após minha partida; Trancar a porta assim que eu me for e ir dormir no máximo as 22h00".

Sempre com um revirar de olhos discreto e costumeiro, e fora do alcance visual da mãe, Carlos balbucia: — Tudo bem mãe, eu já sei.

No fatídico dia:

A mulher deu um beijo caloroso na fronte do filho e partiu rumo ao trabalho.

Carlos, amuado, debruçou-se na janela da sala e ficou observando a mãe até que ela sumisse na curva do inicio da rua em que moravam.

Enfezado, continuou na janela com cara de paisagem. Ele queria brincar de peteca com os colegas na rua três (Ele é da rua dois).

João e Bruno haviam passado a pouco, com suas petecas, correndo rumo ao campinho onde seria a brincadeira. Carlos ouvira do quarto a algazarra de seus colegas que atravessaram correndo em frente a sua casa e lançaram uma provocação em uníssono: — Filhinho da mamãe, vamos te esperar no campo. O insulto foi seguido de gargalhadas de deboche que foram ficando distantes até cessarem por completo.

************

Rompendo com os devaneios amargurados, o garoto saltou da janela e se jogou no sofá da sala. Na TV passava um desenho qualquer, não o interessava naquele momento.

Contrariado, pensamentos impróprios começaram a brotar no compartimento mais escuro de sua mente. — E seu for rapidinho lá? Ninguém precisa ficar sabendo, certo? É só cortar pela travessa quatro e descer a rua três até o campo.

Alguns minutos se passaram com aquilo borbulhando em sua mente.

A contravenção era iminente.

Correu até o quarto e catou o saquinho com bolinhas de gude. Saiu desligando todas as luzes. Com a casa em sombras se preparou para partir. Certificou-se de ter fechado a porta, pôs a chave no bolso e pôs-se a andar rumo ao campo.

O tom alaranjado do céu já havia dado lugar a um azul escuro profundo e salpicado de estrelas. A noite já imperava e o coral de grilos enfatizava a condição. O menino lançou os olhos em direção a lua. Gigantesca. Como que prestes a engolir tudo e todos. Que bonito! Pensou.

Carlos subiu a sua rua, com certa pressa, e dobrou na travessa que levaria até seu destino. As ruas, porcamente iluminadas com as frágeis lâmpadas dos postes, estavam tomadas pela escuridão. Apesar de cedo, o trajeto estava deserto. Mas a iluminação das casas fazia-se notar e era possível ouvir o alarido dentro de algumas delas.

Era um menino corajoso. Mas por alguma razão estava apreensivo. Talvez fosse pela ausência de pessoas na rua naquele horário ou quem sabe um remorso inconsciente por ter desobedecido sua mae. Engoliu em seco e olhando para todas as direções prosseguiu.

No percorrer do caminho ermo, o garoto avistou longe um homem com uma bicicleta e um grande saco nas costas, estava parado no meio do percurso. A silhueta distante denunciava que ele estava fazendo algo com a bicicleta. Reparando-a? Quem sabe.

Altivo como sempre, Carlos acelerou o passo e mudou para o outro lado da rua para não trombar com o tipo estranho. Ao passar do lado do homem, mas do outro lado, notou que o mesmo, que aparentava uns 60 anos e estava com uma calça jeans esfarrapada e uma blusa de botões puída e amarelada, parecia mexer na corrente da bicicleta.

De repente:

— Ei!!! Menino? Pode segurar a bicicleta enquanto coloco a corrente no lugar? Não consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo. E lançou um sorriso ao garoto. Havia algo de desconcertante em suas expressões. Enigmáticas.

Carlos estacou. Indeciso e receoso. Notando a inação do rapaz o senhor voltou a falar:

— Eu te dou três das empadinhas que estou vendendo. E balançou o saco que estava preso as costas. — São deliciosas, uma belezura só.

De fato exalava um odor agradável do que quer que fosse que tivesse dentro do saco.

O menino pensou em ignorar a súplica e apressar os passos. Mas era só um velhote, o que ele poderia fazer? Qualquer coisa era só dar-lhe um safanão e sair correndo.

Carlos enfim agiu:

— Tudo bem, mas irei dispensar as empadas. Não aceito coisas de estranhos.

O velho, com uma expressão de surpresa simulada coçou a barba e disse: — Muito bem, sua mãe lhe ensinou como se cuidar. E forçou um risinho amigável. —Certo, então somente sua ajuda com a bicicleta será o bastante.

Carlos aproximou-se e se pôs a ajudar. Segurou o guidão enquanto o sujeito, abaixado, mexia na corrente. Carlos lançou o olhar na direção do final da travessa e quando ia voltar seus olhos para baixo sua visão foi tomada por uma brancura úmida e logo depois a escuridão preencheu tudo em seu cérebro.

O velho sorria e segurava uma flanela empapada no rosto do menino. Mas os ouvidos do garoto ainda puderam captar:

— Essa pele branca e macia vai me render muitas empadas suculentas. Vou te temperar com cheiro verde e cebolas. Dizia o velho enquanto sua língua passeava pelos lábios escancarados denunciando excitação e urgência.

O velho jogou para o lado a bicicleta, ensacou Carlos desvanecido e o arrastou até sua van decrepita que estava estacionada atrás de alguns abstrusos metros a frente. Quase imperceptível.

Enquanto cometia a atrocidade só a noite o assistia. Quando o motor da van tossiu, protestou e pegou aos trancos e o carro partiu, somente a noite ainda o assistia.

************

Laura estava sentada na mesa da cozinha. Com os olhos injetados, assistia ao jornal da manha agarrada a menor faísca de esperança que fosse de ter seu filho de volta com vida e bem. O telefone móvel bem ao seu lado. Já haviam passado duas semanas do desaparecimento de Carlos. Entre um soluço e outro, tomava um gole de café e abocanhava as empadas que comprara semana passada de um cortes senhor ambulante.

Ultimamente não sentia fome, mas as empadas estavam tão apetitosas. A mulher só queria o filho com ela e nada mais.

Oh pobre Laura, mal sabia que o filho estava juntinho dela. Repousando em seu estômago.

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 17/04/2020
Reeditado em 13/05/2021
Código do texto: T6919955
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.