O apartamento 51

Os gatos são maravilhosos, enigmáticos e ágeis caçadores. Podem fluir, rapidamente, de um estado de pleno carinho à indiferença repentina ou irritabilidade, tudo depende do contexto. Há uma pesquisa que afirma que com uma simples espreguiçada o felino consegue alongar toda a sua musculatura. No antigo Egito a deusa Bastet era representada por uma gata preta. Naquela civilização esplêndida os gatos eram tidos como sagrados.

Aceitaria um sábio conselho? Se você mora sozinho é bom repensar a companhia dos gatos. Pois de um dono(a) zeloso(a) você pode se transformar em um delicioso banquete.

Dona Geralda, moradora do 51, foi encontrada morta na sala de jantar. Quando a equipe chegou a encontrou de barriga para cima e com a mão direita de encontro ao peito. A senhora trajava um vestido azul cheio de florzinhas e as havaianas vermelhas estavam confortavelmente posicionadas nos pés frios da idosa.

Geralda mirava o teto do apartamento com um olhar VAZIO. Isso mesmo, vazio. Os dois gatos que criava comeram seus lindos olhos verdes, a ponta do nariz também não estava mais onde deveria. As bochechas deram lugar a um abismo fundo e vermelho. E a boca? Ao menos o lábio inferior conseguiu escapar dos dentinhos dos bichanos. O superior não teve tanta sorte. Resolveu repousar no estômago dos animais dando visibilidade a uma gengiva escura e a dentes amarelados. O cenário era aterrador.

Dona Geralda: Morreu na sala de jantar e lá mesmo foi jantada. Que horror, que associação maldosa. Me perdoem por isso. Mas voltemos aos fatos:

O legista analisou a defunta e tudo indica que aquele corpo já não tinha uma alma há pelo menos cinco dias. A senhora teve um infarto fulminante, a aorta rompeu. Provavelmente não ouve tempo nem de um último gemido, foi questão de microssegundos. Como residia sozinha no apartamento sua morte só foi percebida quando um odor doce, ácido, e pútrido começou a invadir cada milímetro cúbico do bloco C do condomínio Espaço Verde, preenchendo tudo de podridão.

Bom, não preciso nem dizer que no intervalo do ataque cardíaco até a chegada da polícia os dois siameses se mantiveram bem alimentados. Lipídios, carboidratos e até colágeno.

Os gatos foram sacrificados e o apartamento 51, até o presente momento, não teve o prazer de acomodar novos inquilinos ainda. Isso também se deve ao cochicho entre os mais próximos. Dona Marisa do 50 jura por todos os santinhos do seu relicário que depois da meia noite escuta miados chorosos, tristonhos do outro lado do corredor.

Juraci do 48 afirmou que ao voltar do supermercado certa noite, enquanto subia as escadas trombou com um siamês idêntico ao da dona Geralda. O gato estava descendo as escadas com certa pressa. E antes que a mulher jogasse as sacolas para cima em desespero e saísse correndo ainda fitou o bichano e disse que ele dardejou uma olhadela maléfica em sua direção , os olhos cintilavam em um tom vermelho vivo, antes de prosseguir rumo aos andares inferiores.

Quanta loucura. O povo gosta de especular e criar histórias. Se Geralda era a única dona de gatos do condomínio inteiro, e eles agora estavam mortos, como essas aparições e sons poderiam ser outra coisa, senão, delírios de velhas mexeriqueiras?

(Este pequeno conto não possui, de forma alguma, o objetivo de desestimular a adoção de gatinhos por qualquer indivíduo que por ventura o leia. Gatos são adoráveis e eu mesmo possuo cinco destas preciosidades.)

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 27/01/2020
Reeditado em 04/02/2023
Código do texto: T6851602
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