Dentes, pele e ossos.

“...os sugadores de sangue vão herdar a Terra em vez de os mansos. Isso se conseguirem encontrar sangue para sugar.”

Stephen King

Quem sente medo do silêncio da floresta é porque nunca ouviu o barulho dela. A floresta, nos seus piores dias, é como uma cidade sem leis. Na cidade você descobre onde está o perigo e, sempre que possível, desvia-se dele. Na floresta você só se livra do perigo que o ronda se sair completamente dela.

Roberto pensava nisso tudo enquanto fumava olhando as enormes árvores de cascas grossas e folhas verde-escuras que mal balançavam ao toque constante e vigoroso do vento da tarde. Depois o vento mudou de direção e Roberto sentiu, primeiro no nariz e em seguida na pele, o cheiro e a aproximação da morte.

Nas ramagens mais altas havia pencas do que parecia ser frutos balançando preguiçosamente aquecidos pelo sol intruso. “Frutos não têm olhos”, pensou Roberto, antes de fechar a braguilha, cuspir e se aproximar do carro. Um pio agudo e prolongado saiu do meio das árvores. Um ruído igual ao de galhos se quebrando, patas correndo, pulando sobre folhas secas e cipós chegaram ao ouvido dele.

Roberto deu um passo para trás e entrou de costas no carro, fechando rapidamente a porta. Sentado, balançava como uma vara que acabou de fisgar um peixe. Retirou do volante a mão que tremia incontrolável, alcançou o porta-luvas e o abriu. Grudou no cabo do revólver e o puxou para fora sem fazer barulho.

O corpo dele oscilava de medo e ansiedade. O clique seco e metálico do cão rompeu o silêncio dentro do carro. Lá fora a floresta rodava ao seu redor como uma fera faminta e cruel. Roberto ainda teve tempo de limpar o suor da testa antes de sentir o cheiro nauseabundo e repugnante de carne podre.

Os tímidos raios de sol começavam a recuar e o mau cheiro da carniça forçava a entrada e impregnava o seu corpo como um perfume da morte. No rastro do cheiro chegaram os pequenos seres. Primeiro chegaram as moscas com seu zumbido cortante, depois os pernilongos e as suas picadas invisíveis.

O rosto de Roberto parecia uma máscara antiga e vermelha. Os olhos rodavam nas órbitas procurando o perigo. E ele veio. Apontou os focinhos. E dúzia de dentes que batiam uns contra os outros. Os olhos deles eram um mundo à parte. Cinzentos, sujos e maus como os olhos de um homem culpado.

Roberto sabia quem eles eram e o que tinham feito. Um deles ainda trazia entre os dentes grandes e tortos um retalho de camisa xadrez. “Ao menos esse”, Roberto pensou, “vai morrer”. Tremendo e respirando aos goles ele esticou o braço, fez pontaria e disparou. O som do tiro retumbou na mata. Dentro do carro o cheiro de pólvora competiu com o odor da carniça até vencê-lo por um instante. Do lado de fora, arreganhando os dentes e dando grunhidos roucos e baixos, o porco selvagem esperneava pela última vez.

Limpando o suor abundante da testa e olhando em volta Roberto saiu do carro. Ouviu com alegria o barulho dos outros animais que corriam amedrontados e vivos pela floresta. Então, sacou um cigarro e o acendeu. O mau cheiro permanecia no ar. E permaneceria por muitos e muitos dias se Roberto não tivesse ódio suficiente para acabar com ele. Após apagar o cigarro na sola da bota, ele se apoiou no capô do carro, enfiou o dedo na garganta e vomitou os restos do último almoço.

Cambaleante deu a volta ao veículo, abriu o porta-malas e retirou o galão de gasolina. O cheiro forte e o peso do galão o fizeram caminhar vagarosamente. Apressou o passo apenas quando avistou, entre as moitas de capim, a carcaça semidestruída do que tinha sido um homem. Rapidamente tirou a camisa e a amarrou no rosto. Andou rápido e derramando gasolina, em forma de círculo, ao redor do morto. Uma nuvem de moscas levantou voo e se misturou aos pequenos insetos do local. Quando terminou lançou o galão para longe. Ele caiu com um barulho estranho bem em cima das costelas estraçalhadas do cadáver.

Por um momento, uma tristeza indefinida se apossou dele. Pensava que tem gente que até depois de morto continua dando trabalho. Sentiu pena do pobre do porco selvagem. Depois se conformou ao pensar que o animal devia se contentar em comer o milharal da fazenda vizinha em vez de profanar covas na floresta. “E tem mais”, Roberto repetia para si mesmo. “Alguns homens e animais insistem em ultrapassar os limites que a gente impõe a eles”.

Foi isso o que o cliente, morador da região e proprietário de uma fazenda local, havia lhe dito quando o contatou para que ele fizesse o serviço. O acordo entre eles não incluía matar animais. No entanto, o fazendeiro o procurou novamente informando que os porcos selvagens estavam desenterrando o morto. O morto era um antigo desafeto do fazendeiro. Roberto não teve trabalho em executá-lo e enterrá-lo. "O problema", pensou Roberto, "é que as pessoas se tornam um fardo, pesado e fedido, depois que morrem".

Assim que a noite baixou de vez Roberto entrou no carro, acendeu um cigarro e permaneceu por um minuto escutando a solidão. Tudo estava calmo na floresta silenciosa. Os barulhos todos estavam dentro dele em forma de pensamentos e sensações. Desse modo, inspirou profundamente para acalmá-los. O odor de gasolina, carniça e suor entrou arranhando o nariz dele e queimando sua garganta. “Que se dane!”, Roberto gritou bem alto. E bem alto o eco respondeu na floresta, “Que se dane!”.

Dando uma longa e cinematográfica tragada ele arremessou a bituca no capinzal. O fogo começou timidamente no capim. Foi ganhando corpo e crescendo em direção à floresta. Quando o calor começou a lustrar o seu rosto, Roberto ligou o carro, acelerou e saiu da estrada de terra, adentrando na pista de rolamento. Naquela hora do crepúsculo a rodovia parecia uma serpente negra e solitária. Por isso, ele acompanhou pelo retrovisor interno enquanto se distanciava devagar e via o amarelo-ouro do fogo mastigando o verde-escuro das árvores.

make
Enviado por make em 03/11/2019
Reeditado em 03/11/2019
Código do texto: T6786224
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