O diário de P (Parte I - A casa da esquina)

Diário de P. 11/04/2015

Uma casa na esquina da rua onde moro é construída em uma arquitetura colonial um pouco diferenciada para a época que foi feita. O muro ainda é baixo e por fora é possível notar sua desenvoltura. Não há nenhum morador nela é uma casa de herdeiros. Seus antepassados já se foram a tempos e mesmo assim eles ainda guardam uma idolatria inexorável. Os móveis antigos são cuidados, as roupas são lavadas e engomadas, a poeira é retirada de todos os cantos para a solidão dos cômodos não habitados.

As luzes ainda são acesas todas as noites, as plantas são cuidadas e as pessoas da rua não podem se aproximar por muito tempo. Algo paira ao redor desse lugar, os herdeiros e um zelador que ao lado reside, são os únicos a transitar ali. O interessante sobre essa misteriosa casa ainda é seu aspecto mórbido e curioso que atrai olhares e causa arrepios. Por vezes, eu mesmo já tentei descobrir como é por dentro, no lugar a noite consegui ver alguns móveis, mais somente isso.

A calmaria nata durante o dia é a mesma durante a noite inteira, todas as vezes que me deparo admirando esse estranho lugar um sentimento nostálgico e profundo penetra minha alma, eu não sei de onde ele vem e não sei que sensação é essa que me atrai até lá. Quando me aproximo sempre que saiu de casa, moro na mesma rua dessa casa um pouco mais abaixo dela do outro lado da rua. Entretanto, tenho total visão da mesma de forma angular. Ao sair para comprar algo ou quando volto a noite do meu ateliê é como se ela estivesse lá e tivesse olhos, como se expectadores de dentro dela me olhassem fixamente.

Sinto-me intensamente vulnerável, chego a pensar que estou ficando até mesmo louco. Hoje mesmo eu estive observando a casa e me pareceu que havia alguém cantando, uma voz doce e limpa, era tão suave. Preencheu meus ouvidos como se aquilo fosse uma sonata criada exclusivamente para mim. O que me espantou também foi a plena escuridão de todas as alas, não havia sinal dos carros dos herdeiros e a casa do zelador estava seguramente trancada. Aquilo me deixou até agora impactado, a hora noturna nem mesmo se avança e ainda ouço em meu inebriado véu mental aquela melodia inquietante e bela. Eu vi claramente uma moça na janela.

Como poderia aquilo ter sido real se naquela casa não mora ninguém a tantos anos? Em minha mente até agora percorre a imagem da silhueta feminina que ali estava. Retornei para meu quarto ainda pensativo, preciso tentar entender o que está havendo. Nenhum outro vizinho, nenhuma outra pessoa ouviu o que eu ouvi, só desejo saber de quem era aquela voz. Tento confrontar minha mente para saber se ela não está me pregando peças, em vão eu tento...

E agora aqui estou eu novamente a olhar essa casa no meio da noite, apenas o zelador está lá posso o ouvir varrendo o chão do lado de fora. Acho que não é possível saber de minha presença, ainda busco uma pista da dama que avistei. Dentro da casa nenhum ruído, nada surge... Não posso estar louco, não posso estar a me esconder em uma esquina, por trás de carros e nesse galpão abandonado por nada. Só desejo saber o que essa noite unicamente fria deseja de mim, a rua deserta não parece solitária e sim inquieta, como se eu também fosse observado. Quero desistir dessa perseguição imaginária, ela não está ali.

Perdido em meus pensamentos notei que o zelador se afastou da casa e entrou em sua própria, aproveitando a chance corri atravessando a rua e pulei o muro baixo gradeado, me aproximei o máximo que pude da janela de primeiro andar não muito alta para tentar espionar o máximo que pude. As luzes estavam todas apagadas menos uma no fundo de uma sala foi possível identificar um tipo de abajur aceso. Será que o zelador havia deixado ele assim? De repente uma corrente de arrepios atravessou meu corpo e eu vi também uma sombra passar pela projeção do abajur enquanto a luz dele tremeluziu. Não era a mesma silhueta que eu havia visto antes, mais uma vez senti como se estivesse sendo observado.

Dei um passo para trás de súbito tentando perceber se não seria o zelador ali, entretanto fui abordado por uma mão em meu ombro e uma voz que disse:

- O que você está fazendo aqui? – Era o zelador.

- Eu já estou saindo... Achei que tinha visto alguém lá dentro!

- Achou? Não há ninguém aqui em anos somente eu e os herdeiros quando se quer aparecem, vá tome um cigarro e saia daqui! Se as câmeras pegarem você aqui não vai ser bom em... Tome.

- Obrigada senhor! – Peguei o cigarro oferecido e sai da casa pelo portão aberto pelo zelador, caminhando entristecido e incomodado, o cigarro barato que eu coloco em meus lábios só me faz sentir mais desprezo por esse momento. Há algo ali escondido e eu anseio descobrir o que é.

Diário de P. 15/04/2015

Por alguns dias eu descansei a mente do pesar de pensar a respeito daquela maldita casa, estou agora a me concentrar em meus afazeres diários, me dedico a meu amado trabalho com as esculturas. Cada movimento traçado no barro ou gesso é uma criação diferente, cada toque tem um significado e todas as minhas obras são únicas. Construo agora um par de anjos para a igreja central, cada um possui um metro e seus olhares são piedosos e carregam mistério.

O interessante, o que mais me atrai na escultura são as artes sacras e é por isso que trabalho com elas. As restauro e as crio. Cada uma delas me chama atenção de maneira tênue e diversificada, entretanto ao modelar o rosto desse anjo só me vem a mente a melodia que escutei vinda da casa. Incomodado estou e por isso pretendo fumar um cigarro longe desse anjo. Quando eu olho pela janela vejo a casa e desejo ir até ela, preciso esquecer esse lugar... ´

Perdido em meus pensamentos desço a rua sem olhar para trás evitando ver aquela esquina. Mesmo assim, algo me atrai até lá inconscientemente eu não me viro e ainda assim imagino aquela casa a me encarar. Como poderia uma casa algo inanimado me encarar? Lá sei eu... Apenas sinto uma estranha sensação endêmica exclusiva daquela direção, me tirar do eixo de meu equilíbrio.

E ainda me pergunto como pode ser essa distorção fantástica que passa não só em minha mente, como também por todo meu corpo. Eu retornei a casa novamente durante a noite a hora sagrada. Querendo sentir e ver quem ou o que me chamava ali, não havia lua e um poste oscilava a luz.

Quando percebi já estava a observar os fundos da casa pelo vidro robusto de uma das janelas, habitava lá a penumbra e nada mais. Por instantes cria eu naquilo, de repente algo sussurrou meu nome baixinho e eu me aproximei da janela devagar. Ela se abriu de súbito as grotescas janelas se quebraram, primeiro uma rachadura as tomou vagarosamente de cima para baixo emitindo o ruído do som trincado. Logo, eu estava paralisado pelo espanto quando uma mão tocou as rachaduras e fez com que os vidros se espatifassem pelo chão.

A mão havia sumido e apenas eu observava perplexo o estado da janela como se alguém houvesse atirado uma pedra. Percebendo a insensatez de continuar ali após aquela inexplicável cena eu me retirei quando a luz da casa do zelador foi acesa. Corri ladeira abaixo desesperado relembrando ainda o agudo eco lançado aos meus ouvidos quando os vidros foram despedaçados. Uma voz de mulher, a mesma voz doce de antes gritou agonizante.

Diário de P. 17/04/2015

Os vizinhos ainda comentam assustados sobre a tentativa de assalto a casa antiga da família Honório. Todos acreditam nisso até mesmo o zelador, eu também finjo espanto ao ouvir as teorias absurdas. Meu coração pesa todos os momentos que me lembro daquela grotesca cena. Sinto-me abismado como uma criatura desconhecida em um mundo estranho. Penso em me mudar dessa rua maldita e nunca mais avistar a casa que agora me parece repleta de fantasmas, coisas estranhas.

Júlia Trevas
Enviado por Júlia Trevas em 20/11/2018
Reeditado em 20/11/2018
Código do texto: T6507223
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