O ERRO

Gisele acendeu a vela, a chamava contorceu-se, enrolando-se na fumaça do fosforo. Seus olhos tornaram-se vividos e intensos, duas obsidianas amareladas sob um vermelho quente. Ela apalpou a parede, seguindo o corredor até a porta. Eram talvez umas duas horas da manhã, mas não tinha certeza, não naquele corredor, aonde o frio enraizado no azulejo fizera caminhar na ponta dos pés tentando achar velas, perdidas em sacolas velhas dentro de um carrinho de feira na lavanderia. A lua tão pouco colaborava com sua visão, o ângulo do corredor cortara um alto telhado que vinha dos fundos até a frente, e emparelhava com um paredão de concreto da casa ao lado, fazendo da luz algo raro naquela madrugada. As sombras cada vez mais se multiplicavam ao seu entorno, cansadas e amorfas, elas gingavam com a vela.

Enquanto punha a vela na mão direita, ela tocou de leve o umbral da porta, girando a maçaneta com cuidado para não fazer barulho. Suas canelas sentiram o sopro de ar quente vindos de dentro da casa no momento que abriu a porta. Entretanto, naquele exato instante, algo pareceu muito errado. Gisele olhou para dentro de sua casa, e era como se houvessem dezenas de pessoas em pé, olhando para ela, mas aquilo não passou de apenas um pressentimento, pois seus olhos não puderam confirmar o que sentira. Ela deixou o candelabro sob a mesa e sentou-se no sofá, de frente a um espelho que ficara sempre pendurado ao lado da TV. O espelho somou o reflexo da luz da vela, tornando-se totalmente negro. Havia certa relutância em olhar para ele, ainda assim, não se conteve em continuar o observando. A energia havia acabado durante o cochilo que tirou no sofá no final da tarde. Quando acordou, chamou seu pai, sua mãe e seus irmãos, mas não tinha ninguém em casa. Talvez tivessem saído a noite pensou ela, mas não tinha certeza, torcera para que fosse isso.

O vento mobilizava as janelas, contraindo as persianas. Gisele não estava com sono, afinal havia dormido toda a tarde. Ela sentira seus lábios secos, e sulcos formando-se no canto da boca e na língua. Suas mãos envolveram-se para o lado mais escuro do sofá, procurando seu celular, mas ela não o encontrou. Algo estava muito estranho, mesmo que ela não estivesse com medo suficiente para se afligir, sentiu uma coisa diferente. Gisele, chamou por chocolate, seu carro, e ele por sua vez latiu, como um cão responsável. Mas, seu latido, fora fraco e longínquo, como se estivesse a quilômetros de distância. Ela o chamou novamente, mas desta vez, ele não a respondeu...

Após soltar palavrão mudo, Gisele se levantou do sofá e por mais incrível que pareça, a luz voltou. A vela, discretamente deixou de ser seu ponto focal. Ela então lambiscou os dedos e apagou-a. Chocolate apareceu logo em seguida, amuado e encolhido próximo a parede do lado esquerdo da sala. Parecia estar com medo, e repudiou a mão de Gisele, encolhendo-se na direção do rabo. “O que aconteceu garoto”, disse ela, passando a mão em sua cabeça. O pelo havia ficado frio, molhado e embaraçado, como o pelo de um vira-lata. Ela obliterou os olhos para aquela visão desgostosa. O rádio da sala ligou abruptamente e o que começou como um chiado estático, tornou-se uma espécie de oração.

“O Deus, pai, preparai a matança para os filhos, por causa da maldade de seus pais, para que não se levantam, possuam a terra e encham o mundo de cidades”

Gisele voltou os olhos para o rádio. A voz, era grossa, mas senil, como se um velho tentasse forçar ao máximo suas cordas vocais, seu tom igualava-se, porém, ao dos pastores daquelas igrejas aos quais ela sempre passara pela porta, homens altos que falavam sobre a palavra de deus e por vezes usavam o máximo que sua voz podia suportar. Uma vez ouvira, se não estivesse enganada, alguém dizendo aquela mesma frase no rádio. E não parou por aí, a voz, deu um tempo, após alguns momentos de estática, um berro alto exclamou!

“Deus está vindo meus irmãos, não há mais lugar para aqueles que se esconderão de sua palavra, não há mais lugar para os pecadores de seu nome. Deus, está aqui, e levará da terra todos os iníquos, aqueles que praticaram o mal, e desrespeitaram a sua voz. Ele fará seus filhos sangrarem, pois eles são a semente do mal, é neles que vive satanás, e o diabo meus irmãos já tragou boa parte deste mundo. Unam-se a palavra final, unam-se a Deus, ou serão castigados e toda sua descendência”

A voz novamente deu uma pausa, um pouco mais longa desta vez e terminou.

“A hora dos erros terminaram, Deus chegou, e ele não perdoará mais ninguém...”

Gisele, desligou a tomada do rádio e permaneceu pensativa. Mas, decidiu ignorar, uma rádio louca, não a colocaria medo e ainda completou. “Hum, que Deus que venha me punir então”. Seus olhos travaram-se sem piscar nos momentos seguintes, sua pupila, dilatava-se como se estivesse morta, ainda assim tudo pareceu normal para ela, mesmo que nada estivesse normal. Não havia ninguém em casa, e o cachorro, demonstrava um medo quase que sobrenatural de algo que seguia friamente com os olhos.

A luz da cozinha estava ligada, e ao entrar no cômodo, piscou duas vezes, a primeira, fora rápida e quase nem notou, mas segunda, pareceu a lâmpada iria explodir, mas nada aconteceu. Ela pegou um copo no armário e foi até a pia, onde encontrara um copo quebrado. Ela tentou juntar os cacos para joga-los no lixo, mas ao tocar no vidro cortou o dedo. Seu sangue esguichou sob os cacos de vidro, e mesclou-se as gotas d´agua perdidas na pia. Normalmente, ela pegaria um pano, ou guardanapo para estancar a ferida, mas algo a fez continuar olhando para a ferida, a cavidade cheia de sangue. E fitou o dedo por mais de um minuto, enquanto o sangue escorria até a ponta da sua mão. Estava hipnotizada, não pelo sangue, mas pelo buraco que caco de vidro fizera em sua pele. Então, uma agonia lacerante tomou desde o seu peito até a sua garganta, fazendo-a ficar vermelha. Seus olhos dobraram-se dentro de seu campo ótico e pareciam ter adquirido uma capacidade de zoom incrível, aonde era possível ver dentro da ferida.

Dentro da ferida havia uma sombra, que se desmanchava enquanto o sangue escorria. A sombra, tinha um formato estranho, aonde haviam pequenos tentáculos que se moviam para fora da ferida, como uma espécie de verme, misturada com inseto. Ela gritou, movendo a mão para todos os lados e quando voltou novamente aos seus olhos a ferida havia sumido. E no segundo posterior, alguém bateu a porta.

Gisele, pensou que fossem seus pais, mas quando chegou ao olho magico, viu um homem vestido de preto e encapuzado de costas para a porta. Então, se afastou da porta rapidamente e gritou. “Quem é”, mas ninguém respondeu. Então gritou novamente, “Quem é” e então ouviu um sussurro estranho vindo da porta e voltou a olhar pelo olho magico, entretanto, não havia mais ninguém na porta, e quando menos esperava alguém bateu novamente a porta, mas seu olho não falhara, não havia ninguém do outro lado da porta, e ainda assim, alguém bateu. Ela relutou em olhar uma terceira vez e decidiu chamar a polícia, mas não encontrou seu celular e o fixo estava mudo.

Ela se afastou da porta devagar, até que a luz acabou novamente. Gisele procurou o candelabro, mas estranhamente, encontrou o celular sob a mesa, aonde segundos atrás só havia a vela. Tendo desbloqueado o aparelho, ela ligou a lanterna, a luz iluminara todo o cômodo. Enquanto, segurava o celular, recebeu uma mensagem de texto, de um remetente desconhecido. No título da mensagem estava seu nome, em seguida... escrito. “Sob ordem de Deus, todos os pecadores devem ser sacrificados” Gisele, apagou a mensagem e segundos depois uma nova mensagem apareceu... “Sob ordem de Deus, os pecadores a sua palavra serão punidos na carne e na alma” Ela apagou novamente a mensagem. Então, uma terceira mensagem surgiu, mas ela não leu, apenas apagou...

O escuro começou a cerca-la e sob as sombras que se formavam próxima a ela, silhuetas de homens e mulheres surgiam, vindo em sua direção. Eram vários, vestidos de preto e de capuz. Todos sussurrando. “Oh, Deus”. Gisele, fechou os olhos, falou... “Socorro” Então, quando os abriu, estava dentro de uma igreja, parada e imóvel, sua cabeça estava dirigida a apenas uma única direção, a nave da igreja que dava no púlpito, aonde um homem alto e negro, vestido com um capuz escuro, segurava uma bíblia, manchada de sangue. E então ele disse... “Vós sois o caminho da perdição do mundo, vós sois o sangue que o nosso senhor derramou para lavrar apenas os santos de espirito, vós sois o erro, e como erro devemos cair para junto do mal”

Gisele, por um momento, viu um reflexo num pequeno mural atrás do homem de preto. Nele estava refletido, dezenas de pessoas, multidões de homens e mulheres sentados olhando para o púlpito, congelados como folhas secas. E essa multidão enfileirada, elevava-se até onde seus olhos enxergavam, e muito além.

Naquele momento, não teve ideia do que do acontecera, ou porque acontecera, e continuou refletindo por um bom tempo, até perceber que nunca mais sairia de lá.

Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 23/06/2018
Código do texto: T6372153
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