Passos interrompidos no silêncio: as chagas do pai

A lua é impassível no céu noturno como todos os outros astros reinantes na contemplação deste solo. Qual será a exata medida de quebra de ilusões que um homem é capaz de sustentar em seus ombros? Quisera este entender seu jugo, resultaria em uma dor menos inebriante, mais confortável seria o impacto de sentir a tempestade invadindo as suas têmporas. Essa não é a história das fantasias que os velhos contam ao crepitar do fogo. É o infeliz resultado da crueldade indeterminada de um espectro evasivo e destrutivo ao qual apossou-se daquele homem. Aquele líquido corrosivo o invadia, gradualmente. Dentro de seu coração não se sabia de um destino com maior desgraça, nem se queria entender... o fato de sua decadência era um argumento consideravelmente atrativo, ela existia, palpável, perturbadoramente real.

O solo barrento era irregular, os seus pés se afundavam nos abismos criados por seus passos... haveria vida naquele local? Nem mesmo as aves negras que sobrevoavam a imensidão de dejetos poderia responder adequadamente. Ao seu redor, os restos das quiméricas vidas humanas o alertavam da condição parasitária de sua espécie. Um cheiro mortalmente forte disputava forças com o ar repulsivo daquela madrugada. Restos de aparelhos eletrônicos e materiais orgânicos revestiam o solo com uma fina capa de imundice. A cicatriz horizontal em sua pele morena latejava, cada palpitar na ferida aberta era uma rememoração de lembranças escondidas na superfície sombria de sua existência e reapareciam nos momentos de fraqueza revestidas de um ódio salutar, uma ovelha escondendo, em si, o arfar de um touro.

A promessa de aurora começava a se esvair lentamente, seus olhos guardavam medos, dormiam acima das olheiras em um semblante inexpressivo e estranhamente carregado de uma dor intensa e sedutora. Não conseguia definir uma direção correta para sua atenção, o suor em seu rosto parecia a única camada de vida que era capaz de sentir. O cabelo crespo, desgrenhado, permanecia imóvel, mesmo quando o vento inundava o seu corpo, a boca em riste estava ressecada ansiando por uma brisa um pouco mais úmida e menos mórbida, a garganta seca inflamava todas as mentiras de sua existência em um epicentro. Apesar das dificuldades permanecia contínuo em seu labor. Embora maquinal, não dava indícios de que poderia desistir de seu intento, lágrimas ressecadas, de quando em quando, fugiam silenciosas de seus olhos. O homem pode insistir em esconder o seu pecado, mas a dúvida sempre irá buscar a luz na sua escuridão.

Uma alcova estava aberta diante dele chamando-o para contemplar os mistérios pretensiosos da morte. Dentro dela estava uma mulher de cabelos verdes que o encarava com uma expressão taciturna, porém de uma vivacidade intensa. A energia ao seu redor era um efusivo contraste com o aspecto geral do território, assimilava-se aos sonhos da juventude, vociferando nas passeatas. Um dos seus olhos sangravam feridos e ceifados por um prego enferrujado, o ferro penetrava o seu globo ocular, acima da íris castanha. Ela parecia deleitar-se, ao menos era a indicação de seu meio sorriso, das tentativas insanas do homem de sufocá-la em meio aquele solo argiloso. Usava um vestido branco encardido pela cor da terra, seus dois braços foram decepados e naturalmente se regeneravam negando torná-la impotente de usar suas mãos para tocar o seu violino. A perna exibia um incontável número de lesões físicas, cortes de navalha superficiais e profundamente dolorosos, feridas expostas ardendo no contato com a terra e cicatrizes se abrindo, mal costuradas.

"Amanhecerá outro dia"... como um mantra ela o dizia naquele olhar ainda vivo, era evidente a persistência convicta de seu semblante em meio as mechas verdes limitando um pouco de sua visão. Aquilo lhe ressoava como um grito de uma besta feroz durante a noite. Pressionava seus dentes contra seus lábios, azuis, deixavam escorrer filetes de um líquido vermelho, o mesmo que escorria de seus ouvidos, pouco calejados, mas muito sofridos. A angústia reverberava ao seu redor, ele segurava, com uma única vivacidade, a pá em que juntava os pedaços do solo. Sentia estar representando no teatro invisível dos deuses o seu ato final. O medo impelia-o a continuar, uma vontade atraente de golpeá-la lhe apossava, mas a concentração ainda precisava ser dividida.

Havia uma serpente em volta de sua perna esquerda, onde o seu jeans havia rasgado e apenas mostrava sua pele nua, ela pressionava sua mandíbula de encontro a coxa do homem. Resoluto parecia entregue ao seu propósito a ponto de ignorar aquela dor o invadindo, a pressão em sua perna fazia-o balancear, andava incerto pela corda bamba do caminho construído por sua determinação. No entanto, a superfície não era o pior de seus inimigos, em meio ao sangue escorrendo de sua boca, a serpente depositava fielmente o seu veneno em um ato contínuo e não realístico. A gana do animal o impedia de desistir, depositava todos os sentimentos carregados pela humanidade em apenas um homem, este impassível seguia o seu labor, enquanto a mulher tentava afastar a terra lhe jogada.

Deveria haver algum significado nas lágrimas vazias fugindo de seus olhos, mais e mais intensas e menos silenciosas. Uma menina correndo em volta de uma praia deserta, um mar calmo refletindo o suspiro de Deus, um sol soberano diante da paisagem abraçando este mundo. Pequenas ondas prosseguindo até a costa, a barra de seu vestido um pouco levantada, breves saltos descompromissados, uma vida recomeçando simplesmente diante das intensas pressões impostas pelos velhos endinheirados. Ele corria naquela cena abstrata, preocupado com a segurança da menina. "Eu sei me divertir". Ela se aventurava nesse mundo nos olhos atentos e admirados de uma bela mulher ruiva sorridente e um homem de óculos ansioso e afobado.

O destino é cruel, mentiroso e arredio ou apenas é sinceramente sábio? Era aquele mesmo aterro sanitário. Chamas ascendentes eram imponentes como os prédios das cidades grandes. Ele segurava a menina no colo desacordada, as pupilas dilatadas encaravam o vazio, a pele estava pálida como o céu nublado e um filete de saliva escorria de sua boca. Os cabelos vermelhos da mulher dançavam no ar, lágrimas saiam copiosas de seus olhos. "Acabou! Acabou! A vida acabou!" Seu olhar era contraído e o mirava diretamente, ele era a derrota definida, perplexo e sem reação, na inquisição daquele destino sua sentença havia sido proclamada, as promessas novamente se desvaneciam nas quiméricas ilusões da humanidade... tudo é tão efêmero e frágil, tudo é tão irreal e tristemente findável.

"AHHHH!!!! Apenas não há razões para caminhar ou acreditar!"

Não suportou mais o peso da pá em toneladas de um puro desespero. As pernas vacilaram e se derrotou no solo, as mãos encontraram a face e ali desfaleceu seu pranto à indiferença do universo, ao abandono de Deus. Homens ao fundo dele gargalhavam e o transmitiam insultos impronunciáveis, bebiam o seu desprezo e murmuravam para si, em meio aos insultos, histórias dos planos divinos para o mundo. A humanidade também é indiferente ao seu próprio choro. A humanidade se alimenta de seus produtos artificiais e planeja significar o vazio. Ele permanecia caído, ao largo de sua morte.

"Amanhã será outro dia?"

A serpente deixou a sua perna gangrenar e em meio ao sangue se rastejava diante dele. A mulher se levantou da alcova, em posição de lótus o encarava, vazia. Ele levantou os olhos lamentosos como se fizesse uma súplica. Era uma criança abandonada ao relento no mundo de gigantes, um prisioneiro de sua própria caverna, aquele que encarou a si mesmo e encontrou meramente o desespero e a dor... a insolubilidade da tristeza fazendo morada no seu irresoluto coração ferido pelas mágoas dos carrascos do destino. Tentou levantar a mão de encontro a face da mulher, sorrindo leve.

Sua tentativa de reação foi interrompida pelo estranho gargalhar da serpente que começava a se transformar, seu corpo ganhou volume e apareceram quatro patas protuberantes, pelos enchiam seu corpo e um focinho deformou o seu rosto com uma mandíbula canina, um olhar amarelado de predador. "Não há saídas para a vida", o animal o cercava. "Eu... não consigo... não quero deixar de acreditar... não mais..." "Você é covarde como um animal pego na armadilha, indefeso!" E quem sabe nesse medo não há alguma saída? "Eu deveria tentar, novamente, não consigo desistir do meu destino." Um gargalhar contínuo e amedrontador... "Então enterre a si mesmo."

A mulher de cabelos verdes se levantou e o puxou para si, o abraço era o conforto para o seu pranto e em um profundo sono os dois caíram na alcova sempre viva nos nossos caminhos. O animal ansioso para a lua uiva sua última canção, triste limitação dos humanos.

"Amanhã será outro dia."

Josué Viana
Enviado por Josué Viana em 06/08/2017
Reeditado em 08/08/2017
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