O Palhaço do Rosário

Já era mais tarde do que deveria ser. Tão tarde que pessoa alguma se arriscava no sereno frio. Tão frio que o vento, mesmo que esporádico, cortava a pele não coberta. Há horas já passara da meia noite. Era escuro e o ar seco do inverno não era nada convidativo. As árvores, por todos os lados, quando balançavam suas folhas, soavam como um coro de cascavéis que observavam de perto, furtivamente. Os ventos sopravam fantasmagoricamente, variando de agudo a grave. O sino da igreja badalou abafadas três vezes na escuridão de sua altura onde os postes elétricos que a cercavam jamais alcançariam.

A igreja do Rosário era majoritariamente azul e seus detalhes todos brancos. Em sua fronte, apenas uma larga calçada onde beatas fofocavam depois de todas as missas. Atrás, uma rua onde passavam carros, muitas vezes na contramão. Chegando em frente à igreja, um jovem pretendia passar ao lado dela, atravessar a rua de trás e continuar em frente para chegar em casa.

Havia se agasalhado menos que o necessário nesse dia. Apenas uma calça e uma jaqueta não impediam o vento de furar entre as pequenas passagens na roupa e o fazer tremer, encolhendo-se e forçando cada músculo de seu corpo contra si mesmo. O vento soprava raro, mas intenso nas poucas ocasiões. Sua caminhada já somava mais de dez minutos com o vento afiado soprando contra. Em uma das chacoalhadas das copas das árvores, um novo som aparece.

Agora ao lado direito da igreja e as folhas por todos os lados, uma buzina soa. Apenas uma vez, nas suas costas, onde fica a entrada da igreja. O som era familiar. Quem estaria vendendo sorvetes às três da manhã? Sua curiosidade falou mais alto, mais alto até que sua ingenuidade. Virou-se.

O que foi visto, segurando a buzina longa e cromada, trouxe arrependimento. De repente o frio já não era mais sentido, pequenas gotas de suor brotavam de sua pele enquanto seus pelos lutavam para se arrepiarem por baixo do couro da jaqueta e do jeans da calça. Seus punhos serraram não para combate, mas para fuga. Seus olhos arregalados e suas pupilas dilatadas. Para toda essa tensão em seu corpo, recebeu um aceno com a mão direita que segurava a buzina.

Olhava de volta para o jovem um palhaço, tão alto quanto ele, com a metade do corpo exposto e a outra escondida. Sua face era toda branca, havia um sorriso enorme pintado de vermelho em sua boca e uma sobrancelha fina e longa. O cabelo era vermelho e curto, mas cobria as orelhas. Não faltava seu nariz gigante. O macacão, todo colorido, cobria todo o corpo: metade dele era roxa e a outra metade quadriculada de amarelo e verde. Suas luvas eram azuis e coladas em sua mão, e seu sapato na verdade era uma bota. Era impossível ver sua pele. No final do macacão havia sempre um grande bordado branco e cheio de lantejoulas que brilhavam com a luz do poste.

O palhaço então buzinou outra vez, o que fez o homem, agora se sentindo um garoto encurralado, piscar e começar a tremer. Trocou a buzina de mão e acenou livremente. O homem só assistia com seu corpo enrijecido. Havia um semblante triste no rosto branco do palhaço que fora ignorado, que fez um ultimo gesto. Tirou o corpo por completo do seu esconderijo e, com o dedo médio e o indicador, formou duas pequenas pernas que corriam em direção ao homem, que entende seu recado.

Antes de dar as costas, o homem viu um último aceno e então o palhaço sumira para a entrada da igreja. Com passos apertados e cada vez mais rápidos e barulhentos, chegou até à esquina da rua atrás da igreja. Olhando rapidamente para a esquerda, procurou algum carro, mas encontrou apenas um sorriso vermelho. O palhaço segurava balões de todas as cores que flutuavam presos a um fio branco. Ele então esticou o braço, colocando a buzina no nariz do homem e soou-a, fazendo-o correr. Foram ouvidas, cada vez mais baixas e distantes, as buzinadas frenéticas e incessantes, até que a distância fez com que o som sumisse.

Antes mesmo de chegar à porta de sua casa, tirou as chaves do bolso, procurando-as na corrida. A tremedeira era tanta que ele pensou ter pegado a chave errada e testou todas repetidas vezes, com intervalos para espiar todos os lados, assegurando-se que nenhum palhaço, principalmente o que encontrara, estivesse por perto. Por fim a chave entrou e o calor aconchegante da sua casa foi maior que o normal. Não só a temperatura em si, mas o calor da segurança, o calor do abrigo. Deitou-se em sua cama e em baixo de suas cobertas se sentiu protegido.

Acorda num novo dia com campainha tocando repetidas vezes. Era mais de dez da manhã e o sol já entrava por todas as frestas. Após coçar os olhos e finalmente abri-los, vê um balão vermelho pairando rente ao teto, bem no meio de seu quarto, brilhando com a luz do sol que entrava pela janela. Presa a ele estava uma corda branca.

Lugubre
Enviado por Lugubre em 28/07/2017
Código do texto: T6067071
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