Armadilha do tempo


Levantou-se depois das onze. Lembrou-se de que não comia há três dias. Teria que sair para caçar. Esse pensamento encheu-o de desgosto e cansaço.

Após o banho, diante do espelho enquanto se barbeava, deu-se conta de como sua aparência distanciava-se de sua alma. Que alma? Perdera a sua há muitos anos. Seu rosto, uma recordação do homem que fora um dia. Hoje era um morto vivo, um corpo desabitado.

Perdera sua alma para Dóris, o último amor que experimentara.

Mais de meio século havia se passado. Dóris, com seus cabelos cor de palha, sua pele exangue, seu corpo magro e forte. Dóris, com seus lábios vermelhos e seus caninos brilhantes e pontiagudos que lhe furaram a carótida segundos após o gozo na primeira vez que fizeram amor.

Fora Dóris que o ensinara a caçar. A escolher a vítima certa. A encurralá-la. O local certo de morder. O ritmo certo de sugar.

Ensinara-lhe também a mudar de cidade sempre que começavam a surgir olhares curiosos sobre a aparência que tinham e os hábitos noturnos que cultivavam.  A cada mudança, aprimoravam-se na arte de hipnotizar os fracos de vontade fazendo-os entregar-lhes tudo que precisavam, de modo que nada nunca lhes faltasse.

Foi ela também que o abandonou sem dizer para onde ia ou se um dia voltava. E desde então, mais de trinta anos passados sem conseguir criar outros vínculos por causa de sua condição, sofria de um vazio irremediável.


Música, livros, bons vinhos eram os paliativos que o anestesiavam. Como um pêndulo, entretanto, seu estado de ânimo oscilava. A imortalidade, tão almejada pelos homens, era-lhe por boa parte do tempo um ônus maldito e pesado.

Em uma semana completaria noventa anos.

Olhou a certidão de nascimento miniaturizada e plastificada que levava na carteira. Carregava-a para não esquecer de quem era de fato, de quem um dia fora. O nome do pai, da mãe, a data e o local de nascimento. Todos seus outros documentos continham dados inventados.

Noventa anos era uma idade muito avançada, até mesmo para ele, cujo corpo havia parado de morrer aos trinta e dois, idade em que fora transformado. Mas o que era o tempo? Para ele, apenas uma abstração que não o fazia mais velho, tampouco alterava os seus hábitos, apenas o afastava dos breves bons tempos passados. 

Já era noite quando saiu de casa, desanimado, para a caçada.

Dirigia-se a um dos bairros periféricos da cidade, quando o sinal fechou bem em frente ao hotel mais famoso da região, adornado na frente por um obelisco e encimado por um restaurante panorâmico com magníficas janelas de vidro espelhado brilhante. Num impulso, estacionou.

O restaurante estava razoavelmente cheio. Escolheu uma mesa próxima à janela. Olhou a rua embaixo. Exatamente como calculara. O cume  do obelisco posicionado bem na direção da janela. Seria uma morte espetacular. E infalível. O voo interrompido, o peito atravessado pelo vértice da pirâmide que coroava o monumento bizarro.

Selecionou um vinho na carta.

Numa das extremidades do restaurante, uma banda – piano, sax e guitarra – tocava jazz. A música soava absurdamente afinada. Na mesa da frente, uma jovem, prostituta ou hóspede desacompanhada. Cabelos lisos, cor de palha, como os de Dóris, presos em um coque. À vista, o pescoço branco e suave.

Sorveu o primeiro gole do vinho de olhos fechados. Passou a língua pelos dentes. Os caninos continuavam afiados.
Melisas Ribeiro
Enviado por Melisas Ribeiro em 27/07/2017
Reeditado em 28/07/2017
Código do texto: T6066893
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