O NECRÓFILO

O NECRÓFILO

Toda vez que um cadáver de mulher chegava pra ser sepultado, era motivo de excitação em Ataíde. Não tinha cor, não tinha raça que os seus olhos não brilhassem de vivo interesse. A sua única exigência era que o cadáver fosse magro e não gordo. Pelo visto, não era preconceituoso quanto à cor, à raça, mas fazia questão que o corpo morto fosse magro. Ataíde era um necrófilo. Um pervertido que sentia atração sexual por cadáver. Não se sabe ao certo, se o estranho hábito começou antes dele se casar ou depois que a mulher morreu. Diziam que, quando ela ficou doente, não era pra ter morrido da doença. O que lhe faltou foi a devida atenção do marido, o devido cuidado em dar-lhe os remédios prescritos pelo médico, além da debilidade orgânica motivada pela crônica inanição, vindo assim, a falecer, para alegria de Ataíde, que, durante algum tempo após o sepultamento, em noites alternadas, visitava a cova, exumando-a, pra ter com ela a conjunção carnal, o prazer sexual que parecia não ter quando ela estava viva.

Pra dá certo a prazerosa atividade, teve que se empregar como coveiro no cemitério da cidade. No início, ele não se aventurou em violar outras covas, não por falta de vontade, mas sim porque, por enquanto, o cadáver da falecida lhe satisfazia. Ele nem se importava com o odor da decomposição. Só deixou de sentir o mórbido prazer depois que o corpo se desfigurou, deixando-o bastante chateado, pela impossibilidade de não poder mais possuir o cadáver da própria mulher. Antes da mulher morrer, moravam numa pequena casa alugada bem distante do cemitério. Não tiveram filhos. Uma vez sozinho e com o emprego garantido, imaginou que se morasse bem pertinho do local de trabalho, ficaria melhor, mais cômodo, mais fácil de executar os seus planos pessoais vinculados à prática da necrofilia. Quando surgiu uma casa, que ficava na rua ao fundo do cemitério, menor ainda do que a que ele morava, de imediato alugou-a. Ataíde tinha quarenta anos. Perdeu a mulher que era cinco anos mais nova que ele. Pra satisfazer o seu hábito depravado, deve ter gostado dela mais morta do que viva. A mulher era uma mulata magra e vistosa, do jeito que ele preferia. Quando olhava pra ela, a desejava, porém, logo desistia, perdia o ímpeto de possuí-la. A mulher, por sua vez, não sabia por qual motivo o marido agia com tanta indiferença, tanto desprezo, tanto desinteresse na relação conjugal. E morreu sem saber. Só que, uma vez desencarnada, agora sabe, como veremos nesta narrativa mais adiante.

Ataíde não era um homem ocioso, mas jamais teve uma profissão ou um emprego certo. Assim, pra sobreviver, fazia biscates. Quando soube que o antigo coveiro se aposentou, não perdeu tempo. Procurou a direção do cemitério e se candidatou à vaga. Sabia que dessa forma, não só lhe garantiria uma remuneração mensal, mas também porque, no local do emprego, teria inúmeros cadáveres femininos pra aprazer-se sexualmente. A verdade é que ele sentia-se bem feliz com o novo rumo de sua vida. Uma felicidade incomum, até incômoda, funérea para as outras pessoas, contudo, ele não se importava com a opinião das pessoas, uma vez que não exigia muita coisa para a sua vida além do que estava recebendo, portanto, sentia-se bem realizado. A principal exigência de garantia do emprego era não temer e nem sentir náusea de defunto. Ao submeter-se à prática da atividade, Ataíde a desempenhou com tanta naturalidade, que garantiu de imediato o tão almejado emprego. Semelhante à pedofilia (sentir atração sexual por crianças); à zoofilia (sentir atração sexual por animais); a necrofilia é uma perversão, um desvio sexual mais raro em quem a pratica, seja homem ou mulher, embora ocorra numa menor proporção, e os seus praticantes (auxiliares de serviços gerais, enfermeiros, médicos, coveiros, etc...), geralmente procuram os hospitais, os necrotérios e os cemitérios pra se empregarem, pois sabem que nesses locais se acham os cadáveres humanos que saciam os seus pervertidos desejos.

O cemitério era todo murado. Como era o coveiro, Ataíde tinha a chave de acesso interno pelo portão principal. Durante o dia era arriscado a violação dos túmulos, das covas, por causa de sua ocupação enterrando os defuntos, e das pessoas visitando os seus entes queridos. No entanto ele, bem atento, tinha no bolso uma pequena caderneta, na qual anotava o nome e a data de sepultamento do defunto, se fosse mulher. Desse modo, ele sabia mais ou menos, até quanto tempo podia copular com quem desejasse, mesmo em decomposição, contanto que, não estivesse desfigurado. Certamente o motivo pelo qual ele gostava de mulher magra, era a facilidade com que podia retirar o defunto de dentro do caixão, aprazendo-se sexualmente do lado de fora em meio a escuridão da noite, focando com uma lanterna, o rosto e o corpo de quem já havia jazido. Ocorreu que, muito cauteloso, assim que mudou pra nova casa, ele comprou uma escada pra ter acesso ao cemitério pelo muro em horas mortas.

Ataíde não era um homem afeito à várias amizades. Tinha uma natureza calada, discreta, arredia. Após se tornar coveiro, o seu jeito próprio de ser, de sua estranha personalidade, mais se acentuou. Não sentia nenhum tédio em morar sozinho. Gostava de ser um solitário. Ninguém o procurava, nem ele procurava ninguém. Até porque, por superstição, as pessoas têm aversão ao coveiro por lidar o tempo todo com gente morta. Como nem todo mundo é supersticioso sem temer quem já morreu, uma vez ou outra, alguém tentava se aproximar pra ter com ele um vínculo de amizade. Um dia, isso se deu, por morte do tio de um seu vizinho que morava a três casas da dele. Por conhecê-lo de vista, Ataíde, sem saber ao certo por que, lhe foi solidário, confortando-o, após o sepultamento do tio. E foi com uma certa surpresa que na mesma noite ele recebeu o convite do vizinho, agora quase um seu amigo, pra tomar um café em sua casa. Timidamente Ataíde aceitou e quando chegou na casa algo logo lhe agradou. Na presença de alguns parentes do falecido que morava com o sobrinho e que estavam ali pra consolá-lo naquele momento doloroso de pesar, o dono da casa fê-lo sentar-se e a sua esposa, que não o conhecia, gentilmente ofereceu-lhe café com bolacha. Após receber o lanche das mãos dela, Ataíde agradeceu-a e se identificou:

- Muito obrigado, senhora. Meu nome é Ataíde, o coveiro do cemitério.

E ela, um tanto encabulada, lhe respondeu:

- Sim, senhor, eu sou Josefa, a esposa de Alberto.

Em seguida, pediu-lhe licença e logo se afastou, pois se sentiu intranquila, perturbada com a presença daquele homem cuja função era cavar cova pra enterrar defunto. E se perguntava: "por que o seu marido tinha lhe convidado? Será que ele veio por iniciativa própria, ou o seu marido tinha ficado amigo justamente de um coveiro?" Ataíde, que sempre foi de pouca conversa, ficou ali, mais a observar do que a falar com os comensais. E agia assim, pelo jeito de ser e pra ter tempo de não tirar os olhos de Josefa, que muito lhe agradou. E o motivo, claro, era que Josefa se parecia muito com a sua falecida mulher, pois era também uma mulata magra e vistosa. Josefa, por sua vez, olhava-o de soslaio e sentia calafrio e mau pressentimento ao ser olhada de um jeito estranho pelo coveiro. Os dias foram passando rotineiros na vida de Ataíde em sua mera ocupação de enterrar os mortos e violar alguns túmulos e covas pra satisfazer o seu doentio desejo sexual. Após o expediente diurno ele ia pra casa na boca da noite pensando em voltar mais tarde. Fazia isso, às vezes em duas noites seguidas, outras vezes alternava: uma noite sim, outra noite não. Era um viciado incorrigível na ação macabra de manter relação sexual com cadáver feminino. No que deixava o cemitério de dia, já pensava em voltar pra ele de noite e isso o excitava muito. Ao chegar em casa, mau tinha tempo de tomar banho (às vezes se banhava às vezes não, pois sabia que mais tarde ia se sujar cavando as covas e se sentir impregnado pelo odor do defunto; por isso, preferia os túmulos por ser menos trabalhoso); de preparar o café e a janta. Ocorria também dele não vim em casa. Deixava pra voltar após a zero hora com o serviço noturno feito. Com tudo pronto, ele se alimentava, em seguida pegava a caderneta e sentava no sofá pra escolher a próxima vítima indefesa do seu desejo sexual fúnebre. Era comum ele violar o mesmo túmulo ou a mesma cova inúmeras vezes, quando gostava demais, quando nutria tamanha afeição por determinado corpo morto de mulher.

Alberto não discriminava Ataíde pelo fato dele ser um coveiro. Sabia que as pessoas não se sentiam à vontade em ter amizade com alguém que convivia por dever profissional com pessoas mortas. Só que ele não pensava assim e achava normal, tanto que estreitou cada vez mais a amizade com o amigo coveiro. Por ser sozinho, Ataíde não fazia questão de convidar Alberto pra ir em sua casa. Alberto, sabendo que ele era viúvo, achava que o amigo ficava sem jeito pra convidá-lo, sem ter quase nada a oferecê-lo, até mesmo um simples café feito pela mão dele, quando podia ser feito pela companheira se estivesse viva. Quando Alberto o convidava pra tomar um café num final de tarde ou almoçar num domingo em companhia dele e de Josefa, Ataíde aceitava sem deixar que o amigo lhe percebesse a alegria íntima, apenas lhe retribuindo com um discreto sorriso. Ele ia mais, pela oportunidade de rever Josefa, porque se não fosse por ela, nem ia à casa com tanta frequência quando Alberto o convidasse. Quem não gostava dessa amizade era Josefa. Sentia não só repugnância pelo coveiro, mas desconfiava de que havia algo de pior na vida daquele homem estranho. Ela só não sabia o quê de misterioso ele ocultava. Se ela jamais quis que o marido fosse amigo de um coveiro, imagine se soubesse que ele é um necrófilo, lhe pediria o imediato afastamento pelo rompimento definitivo dos laços de amizade. Porém, como saber? Como fazer pra que o marido não continuasse com aquela amizade inoportuna, trazendo má impressão, mau agouro à sua família? Se estava difícil, fácil se tornaria se ela morresse, porque aí, sim, como espírito desencarnado, ela não só descobriria o que a inquietava, mas também veria que o seu corpo morto seria o alvo preferido do seu desvio sexual.

Quando Ataíde chegava na casa, Josefa ficava muito pouco na presença dos dois amigos. Cumprimentava ligeiramente o convidado e depois se afastava indo para a cozinha ou para o quarto alegando algum afazer doméstico. Contudo, quando não tinha jeito de ficar afastada deles, ela suportava, mesmo sem querer, em ficar na sala ou na mesa de refeição, sob o olhar inquisidor de quem ela jamais desejava que estivesse ali em sua casa. Ataíde percebia que ela não ia muito com a sua cara, com o seu jeito de ser, mas não se importava, porque lhe bastava, por enquanto, só contemplá-la, admirando-lhe a beleza física, bem parecida com a da sua falecida mulher, imaginando com oculta excitação o seu corpo morto sendo possuído por ele. Olhando sem disfarçar pra Josefa, que sentia náusea quando era observada por ele, pensava: " talvez o destino não lhe desse a oportunidade de enterrá-la, mas caso ocorresse, ele o faria sentindo um duplo prazer: o de coveiro e de necrófilo."

Depois que Ataíde ia embora Josefa sentia um grande alívio no espírito. Era como se um grande peso, de repente, saísse de seu corpo deixando-o mais leve, livre de tamanha agressão. Dias depois ela recebeu uma ligação de algum parente, pedindo que ela viesse com urgência, pois a sua mãe estava muito doente e queria a presença de todos da família, talvez por pressentir o fim de sua vida carnal. Josefa preocupou-se. Os seus pais moravam numa pequena cidade sertaneja mais ao norte do estado, enquanto ela morava no sul, portanto, a viagem era um tanto longa. Pretendia fazê-la junto com o marido no final de ano. Mas se exigiam a sua presença, a situação de saúde de sua mãe era mesmo grave. Alberto não podia se ausentar do emprego por alguns dias pra irem juntos. Havia programado as férias pro final de ano. Josefa era intuitiva. Pressentia que algo de ruim estava pra acontecer. Depois da morte do tio de Alberto. Da constante presença fúnebre de Ataíde em sua casa. Daquela ligação inesperada de seu irmão, pra lhe falar sobre o estado de saúde grave de sua mãe. Sim, era motivo de muita preocupação pra ela acerca da má fase, das más energias que pairavam em derredor da família dela e do marido. Quando Alberto chegou do emprego no início da noite, Josefa lhe falou sobre as más notícias que tinham vindo da casa dos seus pais. Alberto então, aparentando calma, consolou a esposa, dizendo-lhe que não havia de ser nada de grave, que a sua mãe iria logo se restabelecer, e que sentia por não poder ir com ela, no entanto, que fariam a mesma viagem juntos nas férias dele, conforme haviam combinado.

Josefa viajou e uma semana depois ligou pra Alberto em prantos. Disse-lhe que a sua mãe não resistiu e que tinha morrido no dia anterior. Que não ligou logo porque sentiu-se mau quando soube de sua morte no hospital. E que naquele momento estava chegando do seu sepultamento. Por fim, que ela ficaria só mais três dias pra resolver algumas pendências de família, quando então, faria a viagem de volta e desde já, lhe fazia um pedido: que por intuição, algo lhe dizia que a presença do seu amigo Ataíde no lar, não estava lhe fazendo bem, pois não gostava do seu jeito estranho de lhe olhar, além disso, a sua presença poderia está lhes trazendo mau agouro. Que ele, poderia até, se ficasse sem jeito pra desfazer a amizade, dali pra frente, que fosse mais discreta, mais afastada, só de cumprimentos. Apesar de achar um certo exagero no pedido, Alberto concordou com a esposa. Não era supersticioso, mas tinha que respeitar os pressentimentos dela.

No mesmo dia, no final da tarde quase à boca da noite, os dois amigos se encontraram na entrada da rua de acesso às suas casas. Ambos vinham dos seus respectivos empregos. Após as saudações, Alberto, meio constrangido, lhe falou:

- Ataíde, quero lhe dizer algo, mas espero que o amigo compreenda a situação de momento pela qual passamos em família. Em tão pouco tempo eu perdi o meu tio, e Josefa ontem perdeu a mãe dela. Ela ainda não chegou, mas deve chegar de viagem por esses três dias. Diferente de mim, ela tem o seu lado supersticioso, intuitivo e eu respeito. Desse modo, ela me ligou pra falar da morte da mãe e me disse que não gostaria de vê-lo mais frequentando a nossa casa. Acho que não se trata de desfazermos a nossa amizade. Vejo em você um homem pacato, solitário, pacífico, retraído, portanto, incapaz de prejudicar, de agredir qualquer pessoa. Mas enfim, como vizinhos que moram tão próximos, podemos nos saudar e até termos, como agora, um dedo de prosa. Espero que o amigo não fique chateado por essa dificuldade em nossa amizade.

Ataíde olhou pro amigo meio de esguelha, ensaiou um discreto sorriso que logo o recolheu na face magra e melancólica. Parecia mesmo a face esquelética de um coveiro acostumado a lidar com a morte. Apesar de surpreso, tranquilizou o amigo, lhe dizendo:

- Não se preocupe, Alberto. Eu já estou habituado à rejeição das pessoas. A profissão de coveiro desagrada a todo mundo. Eu quase que não tenho amigos. Creio que deve ser, em parte, pelo meu modo de ser, como já deu pra você perceber, e também pela profissão ingrata que exerço. Não me incomodo em ser uma pessoa solitária. Nem sei porque eu me casei, apesar de sentir falta de minha falecida esposa. Quando você se aproximou de mim, após a morte do seu tio, eu fiquei surpreso. E mais ainda quando você me convidou pra ir em sua casa. Talvez tenha sido pelo meu gesto de consolo pela morte do seu tio. Mas, se a amizade não está de todo rompida, que continuemos então, com o que sobrou dela.

E os dois se abraçaram, parecendo velhos amigos, mas sabiam ainda muito pouco um do outro, por isso, tão alheios ao porvir, preferiam que o destino cuidasse, conforme merecessem, em direcionar as suas vidas. Alberto não dormiu bem. Teve pesadelos. Acordou ansioso, inquieto, como se algo de ruim fosse acontecer. Pensou na esposa. Era o dia dela chegar. Começou a achar que ela tinha razão: realmente não passavam por bons momentos de tranquilidade. Só não queria crer que era por causa de Ataíde, o coveiro. Ainda bem que ele entendeu, sem ofender-se. Afinal, a amizade ia continuar. Ele só não podia mais convidá-lo pra ir em sua casa. A "indeseja das gentes", conforme Manuel Bandeira cita num de seus poemas, referindo-se à morte, parecia querer mostrar a sua cara feia, fazer morada frequente no seio das duas famílias. Alberto não era de adoecer. Sempre gostou de ser pontual no emprego. Não sabia o que tinha deveras, apenas se sentia muito indisposto. Ligou pro serviço e mentiu, dizendo que estava febril com sintoma de resfriado, assim, ia na policlínica consultar-se com o médico. Ficou com raiva de si mesmo, porque gostava de trabalhar, tinha disposição, tinha saúde. Mas naquele início de manhã, acordou sem ânimo, sentia uma sensação estranha que lhe vinha do espírito. Não tinha vontade de sair, de fazer nada, apenas de ficar em casa. Pensou de novo em Josefa. Era natural pensar nela, uma vez que chegaria no final da tarde. Relembrando o pesadelo que teve, só agora entendia a sua angústia, o seu pensar contínuo na esposa. Sentado no sofá, revia a desastrosa cena onírica da esposa envolvida num acidente, no qual o ônibus que ela vinha, colidia com uma carreta.

Olhando pra um ponto qualquer do recinto doméstico, Alberto não o via, via sim, com os olhos espirituais a cabulosa cena do pesadelo, e o seu temor aumentou. Levantou-se rápido e foi pro quarto do casal. No pé da cama ajoelhou-se e começou a orar, rogando a Deus para que aquele sonho horrível não fosse verdade, e que as mãos divinas guiassem o ônibus, junto com as mãos do motorista durante todo o trajeto, para que não só a sua esposa, mas todos chegassem sãos e em paz. Todavia, a prece, mesmo feita com fé, não o tranquilizou. A manhã passou e ele, entre um cafezinho e outro, não tirava o pensamento da esposa. Andava de um lado a outro da modesta casa. Impaciente, olhou as horas que passavam lentas. Era pouco mais de meio-dia. Estava sem fome. Não quis almoçar. Tudo que queria era ouvir a voz amável de Josefa no celular, dizendo-lhe que havia chegado e que fosse pegá-la na rodoviária. Deitou-se um pouco. Estava cansado. Tentou se acalmar em meio a breves cochilos, transitando entre o sonho e a realidade. De súbito, se assustou com o toque do celular. Levantou-se rápido pra atender a ligação, imaginando que fosse a esposa. Eram três e quinze da tarde.

- Alô, quem fala?

- Eu gostaria de falar com o seu Alberto.

- É com ele mesmo que está falando.

- Seu Alberto, aqui é o Inspetor Carlos, da Polícia Rodoviária Federal. Aconteceu um grave acidente na rodovia. Houve uma colisão entre um ônibus e uma carreta. Vários passageiros estão mortos e outros estão feridos. O senhor é o esposo de D. Josefa?

Com a voz trêmula, Alberto lhe respondeu num sussurro:

- Sim.

- Infelizmente, ela está entre os que morreram, senhor.

Ouvindo aquela má notícia, Alberto não se conteve num convulsivo pranto. Se apoiou na parede pra não cair num possível desmaio. Uma dor pesarosa profunda crescia dentro dele indo do coração à alma. E se perguntava: por que, naquela fase da vida, o destino estava sendo tão cruel em me tirar, em me afastar pra sempre de entes tão queridos? E pensava: só Deus pra me responder, em qualquer tempo, o real motivo! Depois de um dia, feito os procedimentos legais, o corpo de Josefa foi liberado, e Alberto, em meio à comoção dos parentes e amigos, velou e sepultou a sua amada esposa. Havia uma semana que Alberto tinha passado até então pelo pior momento de sua vida: a perda irreparável de sua esposa. Muito abatido, pediu quinze dias de folga no emprego, por conta das férias que ainda ia tirar. Nesse período, quase não saiu de casa, a não ser pra resolver algo de muita necessidade. Uma coisa ele estranhou: ao contrário do tio, Ataíde não o consolou após o sepultamento de Josefa e mau o olhou friamente de soslaio. Sequer foi em sua casa, mesmo proibido de ir, pra levar o seu pesar pelo sofrimento do amigo. Lembrou-se então, do que Josefa lhe tinha dito sobre aquele estranho olhar. Sozinho em casa, sentindo muita falta da falecida, Alberto pensava: será que ela tinha razão, será que Ataíde esconde algo medonho que ninguém sabe?

Naquela mesma noite ele se recolheu cedo pra dormir. Em sonho, Josefa lhe apareceu pela primeira vez. Estava linda, saudável, serena e nem parecia que tinha morrido. Estava acompanhada de outra mulher bem parecida com ela.

- Olá, Alberto, como vai?

- Não tão bem, porque você morreu, Josefa, e eu sinto muito a sua falta... Mas agora que você voltou pra mim, eu estou melhor... Quer dizer que você não morreu, está viva?

- Quem morreu foi minha carne, Alberto, porém, em espírito eu estou viva, bem viva, eternamente viva.

- Quer dizer que você não voltou pra mim, como assim, eu não compreendo...

- Não se preocupe, quando a sua carne morrer, você vai compreender... É preciso que você saiba, que o verdadeiro amor não é o carnal, é o espiritual... É esse amor eterno que vou preservar de mim pra você.

- E essa mulher que está com você, quem é? Parecem irmãs...

- Todos nós somos irmãos, querido Alberto, como espíritos, filhos do mesmo Pai Celestial. Ocorreu que em vida carnal, ela foi esposa do seu amigo Ataíde...

- Veja só, e vocês ficaram amigas, agora que estão mortas, interessante isso...

- Me chamo Áurea, Alberto, e quando morremos, melhor dizendo, quando desencarnamos, todos nos reencontramos do outro lado da vida no mundo dos espíritos...

- Será que eu posso dizer ao meu amigo Ataíde que vocês são amigas depois de mortas, que estão bem vivas, apesar de estarem mortas?

As duas amigas espirituais se entreolharam, fizeram uma rápida pausa na conversa, em seguida Áurea tornou a falar:

- Alberto, sei que vocês se tornaram amigos. Mas talvez não fosse oportuno no momento. E acho mesmo que depois do que vou lhe revelar, dificilmente vocês continuarão amigos.

Alberto a olhou curioso e lhe indagou:

- Por que?

- Quando eu conheci Ataíde, achava que ele era um homem normal. Desde o namoro que ele sempre foi de pouca conversa. Não me tocava, apenas me olhava. Achei a sua atitude estranha mas segui em frente. Logo noivamos e depois nos casamos. Com muito sacrifício de sua parte, na primeira noite juntos na cama, ele me tocou e me deflorou friamente. Depois disso, a nossa relação foi ficando difícil, insuportável. Ele não me procurava, me desprezava, era indiferente à minha presença. Lhe exigia uma explicação e ele não me dava. Não entendia a sua rejeição. Comecei a não me alimentar. Fiquei fraca e peguei uma pneumonia. Ele me levou no médico que prescreveu os remédios. De volta pra casa, ele continuou do mesmo jeito, sem cuidar de mim, sem me dar comida, sem me dar os remédios, deixando-me prostrada na cama, parecia que a sua única vontade era que eu morresse. E foi o que aconteceu. Já desencarnada, cuidaram de mim. Ao me restabelecer, me permitiram lhe fazer uma visita. Foi quando descobri o motivo de sua rejeição, o motivo do seu jeito estranho de ser. Ele é um necrófilo. Só sente atração sexual por gente morta. Foi horrível, nojento, decepcionante saber disso. Depois que morri, ele se empregou como coveiro e violou a minha cova muitas vezes. Só deixou de violá-la, quando o corpo, decomposto, se desfigurou, passando então, a violar outras covas, outros túmulos como um monstro na calada da noite.

Áurea silenciou, repugnando-se, sentindo no perispírito a sensação desagradável do corpo de Ataíde em cima do corpo dela... Alberto, extasiado, não sabia o que dizer ante aquela revelação monstruosa. Foi Josefa quem continuou com as explicações:

- Meu querido Alberto, foi por isso que, com a minha intuição, pressenti algo incomum nele, só não sabia o quê. Quanto às mortes na família, foram fruto do destino, que às vezes é cruel. Só viemos aqui, pra lhe esclarecer e lhe ajudar sobre a sua próxima atitude em relação a Ataíde, o que você vai fazer de imediato pra afastá-lo do convívio social. Ainda não estou de todo recuperada do impacto do acidente. Quero lhe dizer que, com tão pouco tempo de morta, ele já violou a minha cova duas vezes. Era por isso que me olhava daquela forma estranha, só que não queria me possuir viva, mas sim, morta. Ele é um monstro, um estuprador de mulheres mortas, um doente que precisa ser tratado e nem sei se existe cura pra essa perversão.

- Inacreditável! - esbravejou Alberto, indignado - E pensar que tinha tanto apreço em ser seu amigo, trazendo pra minha casa um monstro disfarçado de uma boa pessoa, de um bom cidadão, mesmo sendo um coveiro. Eu expus você, Josefa, sem saber, a um perigo velado. Realmente, a gente convive com alguém, mas não sabe quem de verdade esse alguém é. Reconheço que fui ingênuo em não perceber que por trás do seu retraimento, do seu isolamento, ele ocultava um caráter anormal, assustador...

Agora um pouco mais recuperada dos maus fluidos que a fragilizou psiquicamente, Áurea explicou a Alberto o que ele deverá fazer assim que amanhecer:

- Olhe, Alberto, eu sei que vai ser muito dolorido pra você, ter que presenciar uma cena tão forte, tão chocante de um monstro estuprando o corpo de sua mulher morta. Eu sei que a sua primeira reação vai ser de matá-lo, mas você não o fará. Tenha calma que ele vai ser punido pelo mal que vem praticando às pessoas indefesas porque já morreram. Essa atividade noturna, similar à sua atividade diurna, está o deixando muito cansado, as suas forças físicas estão aos poucos se exaurindo, mas como ele não consegue controlar o mau instinto, não desiste. Habitualmente ele cava a cova com a pá, removendo a terra que está solta, de tanto cavá-la repetidas vezes, depois abre o caixão e retira o corpo, estirando-o próximo à cova pra completar a sua ação suja, imunda, macabra. Ainda é de madrugada. Quando o dia estiver amanhecendo, você vai no cemitério. Empurre o portão principal que não estará fechado, pois ele abre-o pra entrar de madrugada e após o encosta, e vá até a cova de Josefa. Hoje de noite ele vai pra lá fazer o serviço. Nós vamos está la. Como ele vai se cansar, vamos mantê-lo dormindo através de passes ao lado do corpo. Quando você chegar pra ver a cena, tire algumas fotos pra registrar o fato. Se afastará um pouco do local e ligará pro administrador do cemitério, pedindo-lhe que venha com urgência, pois uma situação horrorosa ocorreu com o coveiro dentro do cemitério.

- Farei o que me pedem - disse Alberto - com a consciência tranquila de que estou fazendo um bem moral, contribuindo pra tirar esse monstro do convívio social.

Eram três e meia da manhã, quando as amigas espirituais se despediram de Alberto, retirando-se do seu sonho revelador. Ele despertou repentinamente, e logo se lembrou do sonho significativo que teve com a própria esposa, que parecia está viva e não morta, voltando a conviver com ele. Outra surpresa, foi também conhecer a esposa de quem não mais considerava como seu amigo. As duas eram realmente muito parecidas. Apenas os cabelos de Josefa eram longos e lisos. E os de Áurea, curtos e cacheados. Ó, Josefa, minha amada Josefa - pensava - que sonho bom tive com você! Continue vindo aqui me visitar mais vezes, minha querida, ainda que seja em sonhos, enquanto não vou viver com você no céu eternamente.

Eram quase cinco horas da manhã, quando Alberto saiu de casa e foi no cemitério, cujo muro ficava de frente à sua casa pela parte do fundo, a fim de cumprir o seu dever de cidadão em desmascarar o outrora repugnante amigo Ataíde. Empurrou o portão e foi direto na cova de Josefa. Quase desmaia quando viu a cena chocante. Ataíde se achava nu, dormindo, ao lado do corpo morto de Josefa, também nu. Recuou um pouco e tirou algumas fotos. Josefa e Áurea, aplicavam-lhe passes com energias revigorantes fortalecendo-lhe o espírito. Com as mãos trêmulas, de imediato, Alberto ligou pro administrador, explicando-lhe o ocorrido inusitado, que não tardou em chegar. Sem acreditar no que via, perplexo, ligou logo pra polícia. Quando os policiais chegaram, a cena do crime hediondo ainda era a mesma. O repórter policial tirou algumas fotos, em seguida acordaram Ataíde, que, confuso, atordoado, pela revelação do seu repulsivo segredo, tentou fugir, mas não conseguiu. Depois de algemado, os policiais deram-lhe voz de prisão:

- Como é o seu nome?

- Ataíde.

- Seu Ataíde, está preso em flagrante na cena do crime, por violação de cova, de túmulo, pra manter relação sexual com cadáver.

Instantes após, Alberto, cabisbaixo, decepcionado, retornava pra casa, ladeado pelos espíritos amigos de Josefa e Áurea que o consolavam. Após o deixarem em casa, voaram como pássaros livres, convictas de que, do outro lado da vida, a continuidade do viver, faz parte do eterno existir.

Escritor Adilson Fontoura.

E-mail: adilsonfontoura9@gmail.com

Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 28/05/2017
Reeditado em 17/10/2021
Código do texto: T6011903
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