Blue

Ninguém. Definitivamente ninguém tinha perspicácia o suficiente para desconfiar. Havia um plano, uma perspectiva, a seu respeito, que impedia, naturalmente, ou por convenção (pois somos escravos em regozijo destas), supor qualquer coisa que não fosse: oh, que bela, que doce, casta e benevolente!. Acho que foi Tolstói, o gênio russo, a nos advertir: enganamo-nos aos supor que o belo é bom. Não é. A beleza é, arrisco, um óbice ao bom. É canhestro da nossa parte julgar o contrário.

Como sei? Como todos acabamos sabendo, seja lá o que estamos, ou não, querendo. Na prática. Na experiência mundana, tangível. Essa aí que defenestra hipóteses metafísicas, como a dor de dente que acaba com a pompa de qualquer filósofo, já deixou bem claro o bardo inglês Estava reclinado, esperando-a enfiar aquela medonha máquina na obturação que, jurava a infame, urgia restaurar (estes termos dão a impressão técnica que lhes convém, mas não passam de eufemismos baratos que disfarçam o que pretendem). Num erro calculado, como todos os erros que querem fazer justiça à sua reputação precisam ser, o miserável escorregou do dente e foi ter com minha inocente gengiva. Com a pujança intrínseca aos instrumentos de metal feitos na reta intenção de nos macular a existência em dor e sofrimento (porque a primeira pode ser inevitável, mas o segundo, ao contrário do que afirmou o literato, é inda pior).

Daí, correu tido assim:

Senti o gosto ferruginoso do sangue a encher-me a boca. Arregalei os olhos. Natural. Mas, ela, a insídia, disfarçada numa beleza aguda (sim, pois o devir revelou o horror), o fez ainda mais. Suas órbitas enegreceram. Vade retro! Sugeri. Não adiantou. Seus profundos olhos azuis também seguiram o negrume do seu local de encaixe. E, sorriram em torpeza. Sim, olhos podem, e fazem, isso com habilidade espantosa. Dali, a nefasta afastou aquela proteção usual em suas bocas (são muitos os demônios), mostrou-me sorriso mefistotélico em uma bocarra plena de dentes, não, presas, escuras e afiadíssimas. Quis levantar-me e correr. Quis ter uma síncope e desfalecer. Mas qual?! Antes disso sofri o terror. Abocanhou-me, a perfídia. Mordeu. Rasgou e puxou. E, engoliu sem mastigar.

Foi tudo muito rápido. Tudo muito sujo. Tudo muito vermelho e quente. Com dor, gritos e inúteis protestos. Como todos são.

Daqui, agora, só posso aconselhar. Cuidado com olhos a entregar dulces ensejos. Cuidado. São azuis, e mais azul ainda é o fim desprezível que eles garantem.

Sim, porque a cor do fim é azul. Não sabiam?