Sessão espírita
 
   O cercado velho seguia a estrada de chão batido com árvores baixas enfileiradas, eram pegajosas, as teias de aranha encobriam a copa e o tronco de algumas integralmente, entre os silvos caminhava, a anunciação de seu destino já havia flutuado diante seus olhos vítreos. Um grande pasto era companheiro dos cílios arbóreos endurecidos, o ar fétido pela umidade tornava o trecho asqueroso.

   Mary Agnes trajando uma túnica pouco gasta, passou a leves passos, não havia luz naquela noite negra de lua nova, a escuridão perpetuava os arredores, o único brilho advinha de faróis distantes que aproximavam rapidamente, entre dardos atirados em direção a jovem que fugia no breu, não havia vestígio algum dela naquela imensidão de cegueira. Soltaram os cachorros, correram fora da via, latiam com grande alvoroço debaixo de uma árvore média, as lanternas apontadas para o alto revelavam uma grande cabeleira branca.

   Levada em uma grande jaula de ferro, a viagem perdurou por mais de uma hora, a jovem certa de sua condição aquietou-se, hora ou outra, os presentes no interior do veículo ouviam sussurros pianíssimos da prisioneira, estes por ventura, arrepiavam e induzia os temerosos a orações. A frieza do percurso tinha a morte em espreita, seguia com perspicácia o carro que atravessava a cidade.
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   Paupérrima, Mary Agnes, de mãos grossas acostumada com uso da potassa, adornada em um turbante estampado, desses tecidos baratos que usam para amarrar as trouxas de roupas enviado pelas mulheres ricas  às lavadeiras, que usam em seu canto nas margens do rio para expurgarem a árdua labuta diária, ela por sua vez, fazia sabão cru, entre os tachos e as latas, a grotesca figura baixinha e deformada de  expressão sugestiva, contava com uma boca fina sem a real interpretação de um sorriso ou escárnio, andava torta e ágil, parecia uma colaboradora de um show de horrores itinerante, mas a verdade sobre origem e vida da estranha era indecifrável. Com  aparência de vinte e poucos anos, era assunto entre as mexeriqueiras, por sua suposta relação com a feitiçaria e pacto com o demônio, por hora, outros a diagnosticavam como louca, certa vez que foi sondada entre as frestas em uma cabana de bambu, ela mastigava uma galinha agonizando.

   Embora os rumores que envolvia o nome da mulher de idade desconhecida, jamais fora provado alguma real relação entre ela e o ocultismo, exceto sua familiaridade em ler mãos em troca de algumas moedas. Não participava da vida social, em um casebre de barro vivia isolada como uma eremita, homens e mulheres exasperavam ao passar nos arredores, supersticiosos, criam que o mais breve contato com ela, poderia amaldiçoar os lares ou a força vital. As exceções existem para desmitificar as crenças que todavia, incriminam ser ou comportamento, algumas mulheres amarguradas deixadas pelos maridos vinham até as redondezas implorar unguentos e poções para trazerem seus amores de volta, cabalmente e frustradas tentativas, nenhuma sequer conseguia extrair qualquer sortilégio.

   A Lamparina a óleo iluminava um mísero filete de luz, sozinha e afastada de todos os olhares, sentada na cama, lia um de seus livros velhos, inscrições, receitas, simpatias e o estudo da clarividência. Um baque soou alto, fria, puxou a tramela que fechava a janela, e viu dois grandes chifres, encarava o bode que anunciava um segredo. Ela interpretou, vestiu sua nova túnica, cavou uma pequena cova a dez metros do tugúrio e escondeu os exemplares, voltou e atirou a lamparina na sob a cama e viu as chamas crescerem com grande sentimento de revolta, elas pulavam da cama para a janela e as paredes, saiu pela porta em um rebento a correr,  de longe via carros pararem na via e homens entrarem no terreno com armas, sagaz, adentrou na floresta e desapareceu por uma noite.

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   As sessões espíritas feitas em casas medíocres e em festas caríssimas alentavam os curiosos a participarem e contribuírem com tais rituais cerimoniosos,  alguns deles de extremo status entre os presentes. Muitos farsantes dedicavam seu tempo a extorquir dinheiro de mentes apaixonadas, com saudade e também de extremo ódio. Certa vez Magani, um senhor forte e viril, fiel apreciador e praticante do ocultismo, ficou famoso por seu trabalho secreto de clarividência e hipnose afim de entrar em contato com o lado de lá, era também um caçador de médiuns, os procurava para sessões exclusivas e os subornava com promessas que nunca eram cumpridas, no raiar do dia, desaparecia sem deixar rastro algum. Ouviu falar de Mary Agnes, a moça esquisita que tinha o dom de ler a mão sem que errasse nenhuma das linhas que seus olhos fitavam, severa e maléfica, gargalhava da desgraça alheia e amedrontava os curiosos, fosse a revelação boa ou ruim, muitos a procuravam, ela escolhia os destinos que gostaria de predizer, talvez pelo gratificante prazer de presenciar as expressões de pavor nos rostos alheios, preferia sempre os piores, entre a penúria e a morte. Ansioso por todo possível dinheiro que ganharia, aliciou interessados a capturar a moça, o que sendo de sua posse, visto que era sozinha, planejaram o estratagema. Se fosse acusada de bruxaria perante a igreja, a polícia seria posta a sua procura.

   Através de informantes, Magani enviou homens a persegui-la nos trajetos de seu trabalho, algumas vezes ela se dava o luxo de parar em mercados de pulgas e olhar pertences antigos a cobiçar artefatos que sua renda jamais poderia lhe proporcionar, certo dia, o lojista  chamou-a e lhe fez uma proposta, dentre as baixelas postas a venda, uma lhe foi oferecida em troca de tirar algumas fotos nada decentes, como uma adúltera seus seios arfavam soltos sem tecido algum, suas mãos possuíam uma bengala, atrás dela uma estrela desenhada a giz, já em outra foto solicitaram que segurasse uma uma grande colher de pau e sorrisse desgraçadamente. Ela assentiu em concordância, após colocar num alforje as peças negociadas.

   Os documentos foram revelados e encaminhados a especialistas em fotografia da época, as montagens quase perfeitas a denunciavam como uma bruxa, a bengala tornou-se uma víbora segurada pela mulher de seios despidos face a uma estrela pagã, a colher de pau que pendia sob o ar, agora acima de um caldeirão que fervilhava e fumaças emergiam dele. Apesar de rudimentares, foram deixadas sem qualquer formalidade no vão da porta da sacristia, e outras cópias na delegacia. Não tinham o que se preocuparem quanto a posse da jovem, o lojista por sua vez que comprazia desses planos, trocou a vestimenta da modelo por outra e manteve em sua posse até que pudesse entregar aos cuidadores de cachorros farejadores, que não teriam dúvida quanto ao odor pestilento daquele corpo miúdo.

   Não tardou que a notícia espalhasse entre as mulheres,  homens, jovens e velhos, fervilhavam os comentários, aumentaram  e criaram outras histórias a partir das possíveis provas que incriminavam Mary Agnes. Fora culpada por mortes repentinas, plantações que não vingaram e gravidezes inesperadas. Bastou que a covardia disfarçada de valentia colocasse as pessoas atrás da bruxa, a cidade estava alvoroçada, parcos carros cruzavam as avenidas, a fofoca infestava as casas e leitos, chegaram a ir até a propriedade onde ela morava, mas quando chegaram só haviam chamas.

   Logo no dia seguinte começaram a esquecerem dela, as fábricas funcionaram, as lojas, a biblioteca e a igreja estavam abertas, apesar dos rumores, o dia era claro e quente. Por outro lado havia interessados a procurarem incessantemente pela madrugada e dia, a foragida não deveria temer os arruaceiros que foram até sua residência ou os policiais que já tiravam seus cochilos após as refeições. A noite logou trouxe a extrema escuridão, o céu nublado e lua nova, brilho estelar algum podia ser notado, as trevas reinavam e os ventos faziam ranger as janelas velhas das casas da cidade.

   O estratagema tinha surtido efeito, com uma grande mentira lançada e a recompensa no porta-malas, o carro que conduzia por uma estrada de chão batido, chegou a seu devido local, um grande casarão com portões de ferro, sem muito requinte, mas inebriantemente vil. Era a residência do hipnotista, esse que cujo nome havia tanta fama, seja de perjúrio ou em contrapartida credibilidade para alguns apreciadores ignorantes da paranormalidade.

   A porta estava cerrada, alguns convidados à espera munidos de papel e caneta, performavam entre si formalidades tacanhas, as quais toda e qualquer reunião entre pessoas que se conhecem mesmo que desprezem uma as outras. Cercados com paredes altas e quadros maliciosos, a desconfiança entre eles recitavam um prelúdio de olhares ágeis. Nos gabinetes perpendiculares ao lado, via-se talheres e pratos finos, compunham uma baixela exótica, torneados então com faces de incertas de macacos com expressões de horror. Devido as dimensões estranhas os talheres balançavam, as superfícies roliças faziam os rostos impressos adquirirem vida em seu balanço vagaroso e constante. Os pratos e copos desenhados com caracteres desconhecidos utilizavam-se como charadas aos atentos.

   As matronas gordas e bem vestidas desdenhavam o interesse dos homens resguardando a si próprias um grupo, inibindo a presença e semelhança dos demais à mesa, eles pouco importavam com a presença delas, comiam e caçoavam, o anfitrião mantinha seu olhar envolto de mistérios e sorrisos forçados. A música retocava o ambiente como um pincel que arremata os últimos detalhes, a harmonia erudita e as roupas caras deslumbravam os que observavam, e aos que participavam tinham o consentimento de todo mau cheiro destas reuniões tediosas.

   - Nossa convidada está próxima! – Disse o anfitrião.

   Um sino soou levemente. Acobertado por um grande manto de cetim, o comboio parecia um esquife a ser carregado, todos aquietaram e apreensivos observavam minuciosamente a entrada dos homens que traziam a grande e fascinante aberração paranormal. Foi colocada delicadamente no centro da mesa, era primorosa a hora de poderem ver a criatura. O anfitrião pediu-lhes um minuto de silêncio antes de revelar o que havia embaixo daquele manto.

   - Senhores e senhoras! Estamos aqui para presenciar e explorar o desconhecido, o que nossos olhos não podem enxergar, e nem nossas mentes podem imaginar, estaremos frente a frente ao sinistro, tratemos de aproveitar cada segundo deste momento mágico e exclusivo.

   Puxou abruptamente o manto que cobria a jovem, ela os olhava assustada entre as grades, todos no recinto apoiavam a mesa para poder ver mais de perto, Magani olhava para Mary Agnes e disse com grande cinismo – A libertarei moça especial, será uma de nós. Apertou as alavancas do fundo da jaula, as laterais e a superfície deslocaram do fundo falso. O corpo miudinho estava a deriva dos curiosos, ela por sua vez os olhava um a um sem expressão. O temor dos presentes aumentava a cada olhar, e também a possibilidade dela fugir da mesa. A cerimônia tinha que começar, estavam aflitos e ansiosos demais para ficar aguardando toda a dedicação de impressionar imputada na hipocrisia do hipnotista.

   Após o frisson da revelação dois assistentes vieram até a mesa, munidos com um pêndulo e uma lupa, Magani aproximou-se dela e pediu que sentasse olhando para ele, ela não rejeitou, fez o que havia pedido. Ele por sua vez disse aos demais que o instrumento ajudaria entrar em estado de hipnose o que poderia tornar a sessão esplêndida, os olhos da jovem continuaram vítreos e sem expressão, com delicadeza ele a deitou novamente na mesa sem olhar em sua face. Levantou a mão e os ajudantes foram até as lamparinas e diminuíram a intensidade de luz, acenderam velas nos castiçais que estavam sob os gabinetes, a atmosfera era teatral.

   O discurso começou, “fantasmas que habitam o outro lado, venham até nós, imploramos que nos presenteiem com mensagens, grandes deuses antigos que adormecem sobre os arrebóis do infinito, soprem suas vozes na boca de Mary Agnes, ela nos revelará coisas secretas” o ambiente tornou-se etéreo, as velas brilhavam, as peças prateadas reluziam o fogo, silêncio e nada mais, para manter os espectadores firmes, ele utilizou de profanações, rogou aos purgatórios e infernos, até que de estalo, gritou: Oh! sacerdotisa da noite, revele a nós, o maior de nossos segredos!

   Sussurros começaram a vagar no ar, letras de um dialeto desconhecido, a mesa intacta começara a ranger levemente, surpreendidos os convidados olhavam fixamente para a considerada feiticeira, uma lufada de vento colidiu com a porta, o estrondo foi grandioso, entre olharam-se e mantiveram firmes. As chamas das velas bruxuleavam, e uma presença esquisita podia ser notada, como se um estalido de um casco contra o assoalho soasse fielmente aos ouvidos. Surpreso, o anfitrião aquietou-se, já a criatura começara a se contorcer como uma víbora e aumentando o som de suas palavras, levemente suas costas deixaram de ter a mesa como apoio, flutuava como uma nuvem opressora, no alto quando todos tremiam e oravam soltou um grito demoníaco, com uma voz extremamente grave e pagã, riu e virou de bruços no ar encarando um a um. As palavras saíam de sua boca como as pagas libertas no momento que abriram a caixa de Pandora, todos abaixo da possuída começaram a escrever nas folhas em branco, as louças estraçalharam no chão, a mesa mexia de um lado para o outro, aterrorizados, gritavam e lamentavam ter iniciado aquilo. Magani berrou e ordenou que parasse, a besta desceu até a mesa e ficou face a face dele, riu com o olhar mais cínico que ele já tivera visto e proferiu a palavra morte, virou-se para trás instantaneamente desacordada.

   Ulos de pavor eram o que podia ser ouvidos de longe, em cada papel havia um poema fúnebre,  Mary Agnes, a estranha, predisse um a um como seria sua morte, lançou a eles pragas e em mais ou menos dias tornariam-se moribundos, na ponta da mesa bem ao centro os olhos sem vida de Magani denunciavam sua morte. Naquela noite a lua não apareceu, só haviam trevas e lamentos.

   Certa vez supuseram que o reflexo de um espelho ou balanço de um pêndulo pudesse dizer algo a um indivíduo que inutilizasse o poder lógico no comportamento social. Ensopados pela obviedade na qual o tempo exorta mistérios. Cria no passado, no presente e como a gravidade, o futuro aguarda tais sinistros acontecimentos. Levamos as deduções acerca de nos tornarmos malucos, deixando seu gênio sóbrio galgar as amuradas do oculto.