TERROR NO MANGUE

Lembro-me de quando eu entrei neste mangue para trabalhar como catador de caranguejos. Era daqui que eu tirava o meu sustento, toda a renda que eu obtinha com a venda dos caranguejos eu usava para alimentar minha família faminta. Infelizmente hoje em dia não posso mais vê-los de perto, não posso mais estar ao lado deles. Minha vida agora está restrita a este mangue onde vivo.

Quando adentrei pelas entranhas fétidas desse mangue pela primeira vez, o cheiro de lodo e carne pútrida se instalou em minhas narinas. Os urubus sobrevoavam este local de aspecto triste enegrecido pela lama, sua vegetação típica apresentava pequenas árvores de galhos retorcidos e folhas secas que comprometem a visão de quem se atrevesse a adentrar neste labirinto natural onde se perder é o mais comum de acontecer. Para aqueles que nunca entraram em um mangue o ambiente é extremamente hostil, onde caminhar é quase impossível, pois a lama irá engolir suas pernas, os galhos secos, raízes e espinhos que se encontram espalhados por todos os lados irão facilmente cortar sua pele nos braços, pernas e irão perfurar profundamente a sola de seus pés. Sem falar no calor excessivo, nas cobras que se arrastam sorrateiramente pelos galhos que são baixos pela vegetação típica do local,nos caranguejos que se escondem em suas tocas pelo chão lamacento mas que com suas pinças poderosas podem destruir suas articulações das mãos ou dilacerar seus dedos com a simples de pressão de um golpe. Realmente lhes digo que um mangue é para poucos que conhecem suas armadilhas naturais. Eu como trabalhei minha vida toda como catador de caranguejo já estava familiarizado com tudo, sabia como me virar no interior desses ambientes. Hoje me restam apenas lembranças do passado. Em minhas memórias vejo minha pequena casa de alvenaria com apenas um cômodo onde moravam eu,minha esposa e meus quatro filhos.

Consigo avistar a minha pequena residência daqui do mangue onde tenho que viver escondido,ela fica próxima daqui, consigo ver meus filhos crescerem e poso ver minha esposa cuidando de nossa família dia após dia. Infelizmente não posso falar com eles mais e nem me aproximar deles, vivo secretamente aqui e eles não sabem que eu estou vivo.

Memórias terríveis que me machucam e me entristecem surgem constantemente em minha mente. Acima de minha cabeça o céu azul é cortado pelas asas negras dos enormes pássaros negros e carniceiros.

Nas minhas lembranças me vejo mais uma vez com os pés atolados e com imensa dificuldade para caminhar. Espinhos e raízes,galhos secos por todos os lados. As cicatrizes em meus pés contavam as histórias de lutas que vivi por aqui para garantir o sustento de minha família. Braços atolados nas tocas dos caranguejos até os ombros, dedos ensangüentados com enormes cortes causados pelas pinças dos inúmeros animais que peguei na lama.

Preciso contar lhes um pouco mais de minha história. Certo dia enquanto trabalhava aqui no mangue,meu coração teve uma falha em seus batimentos. Não sabia que ele estava doente e eu estava sozinho naquele local hostil. A maré começou a subir e então morri afogado no meio da lama. Até hoje minha família e meus amigos pensam que eu sumi do mapa, pois nunca encontraram o meu corpo. Enquanto as pessoas ficavam frustradas e chateadas por não terem notícias minhas, meu corpo foi entrando em decomposição no meio do lamaçal. Eu servi de alimento para caranguejos,pequenos camarões,para todos os animais que ali viviam. Meu corpo foi engolido pela lama do mangue. Em determinado estágio do meu processo de decomposição, meus fluídos e minha matéria corpórea se fundiram com a matéria do mangue. Lama, água, espinhos, galhos, folhas, camarões,cobras,fezes,animais mortos, e caranguejos se fundiram com aquilo que tinha sobrado do meu corpo em um processo que eu desconhecia e que acredito que seja desconhecido por todos neste mundo em que vivemos e que pouco conhecemos.

Meu corpo renasceu do lodo em uma nova existência e em uma nova matéria corpórea. Das entranhas do mangue surgiu o ser que eu sou agora. Tenho oito patas vermelhas e peludas de caranguejos que servem para me locomover pelo mangue,quatro de cada lado. Possuo uma pinça azulada de caranguejo no lado esquerdo do meu novo corpo,ela serve para me alimentar,quebrar coisas e para me defender. Do lado direito do meu corpo eu tenho uma pequena cobra que se move para todos os lados. Estes seriam meus braços. O meu corpo é feito de uma maça repleta de lama negra,carne podre,espinhos,galhos,folhas secas e pequenos camarões. No lugar da boca eu tenho uma pequena abertura igual à dos siris e dos caranguejos, acima dessa ‘’boca’’ eu tenho dois ‘’bigodes’’ semelhantes ao das lagostas e dos camarões. As únicas coisas que saem dessa boca são ruídos bizarros e irritantes , de vez em quando sai também uma espuma grossa e fedida. Alimento-me de animais mortos e de pequenos peixes. Meu corpo é estranhamente grande,tenho dois metros de altura e sou bem largo o que dificulta ainda mais minha locomoção pelo meu novo habitat. Possuo uma pequena calda de peixe em comparação ao tamanho de meu corpo. Tenho aqueles olhos saltados para fora do corpo,voltados para cima de minha cabeça, típico dos siris , caranguejos e de outros crustáceos.

E então meus caros amigos,essa tem sido a minha nova vida e o principal motivo pelo qual não posso manter contato com minha família,apenas os vejo de longe sem que eles percebam a minha presença. Algumas pessoas que moram próximo ao mangue já me viram. Infelizmente tive de matar algumas delas, pois a minha existência se tornou uma lenda muito conhecida na região atiçando a curiosidade das pessoas. Muitos tentaram me caçar e me capturar. Eu não tive outra opção a não ser defender-me dos meus caçadores, matei-os todos, devorei os seus corpos e servi aos meus novos irmãos de mangue todos os restos mortais daqueles que se atreveram a entrar em meus domínios de lama. Hoje em dia a maioria das pessoas tem medo de entrar aqui e se deparar com a terrível criatura do manguezal,para a minha sorte e para a sorte deles. Sou conhecido como o terrível homem caranguejo,o monstro do mangue e o famoso caracurí. Estou nos pesadelos das crianças do vilarejo,nas histórias dos pescadores e nas rodas de conversas dos bares.

Todos os dias eu me pergunto em minha toca lamacenta, pois quem seriam os verdadeiros monstros nessa história toda? Não consigo uma resposta, apenas me deparo com o tormento da solidão no manguezal e as memórias dos fantasmas de uma vida que não existe mais. Tento entender os mistérios do universo,do planeta e da natureza em que vivemos mas as respostas apenas se distanciam de mim...

K H A O S
Enviado por K H A O S em 19/01/2017
Reeditado em 19/01/2017
Código do texto: T5887032
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