História (In)comum - DTRL 29,5
História (In)Comum
Tema: Luto
Em casa, finalmente. Estava cansada de tantas viagens, entrevistas e programas de televisão. O translado Rio-São Paulo tornou-se tedioso rapidamente e, logo após o término do contrato, Angela duvidava que aquele fosse um bom emprego. O retorno a Porto Alegre trouxe-lhe alívio, apesar da perseguição no aeroporto e mais entrevistas para televisão local.
O apartamento permanecia da mesma maneira que havia deixado: uma bagunça. Estacionou a mala ao lado da cama, tirou a roupa e foi tomar uma ducha. A noite de verão era quente e úmida, fazendo a água gelada amenizar a tensão do corpo. Dois anos fora de casa tornaram o retorno uma ilusão, um sonho. Desejava apenas aproveitar aquela solidão reconfortante. Pegou chuveirinho e testou a pressão, deixando aquele banho um pouco mais demorado.
***
A geladeira estava vazia. Abriu um armário e encontrou o Cabernet. Sentou seminua no sofá, bebendo vinho em um copo de requeijão enquanto ouvia Engenheiros do Hawaii. Há tempos queria fazer algo assim. Porém, no planejamento, havia uma taça de vinho e um homem moreno fazendo massagem em seus pés.
“Nem tudo acontece do jeito que queremos”, disse para o apartamento vazio.
Os versos da canção embalavam seus pensamentos:
“Nós dois temos os mesmos defeitos
Sabemos tudo a nosso respeito.”
Notou o celular em cima da mesa de centro. Juntou o aparelho, checando as mensagens. A maioria era bobagem: piadas sem graça dos parentes do interior e números desconhecidos. Era impressionante a maneira como a vida privada de uma atriz nacional podia ser tão...pública. Essa era a condição do mundo contemporâneo: o lado bom é que todos podem te encontrar a qualquer hora, em qualquer lugar; o lado ruim é que todos podem te encontrar a qualquer hora, em qualquer lugar.
Após ignorar as mensagens sem valor, encontrou o recado de uma antiga amiga de Porto Alegre:
“Oi, Anja! ; )
Chegou e só fico sabendo pela imprensa!?
Tô com xaudade...vamos nos ver? : )”
Sentiu um pesar enquanto pensava em responder:
“Oi, querida!
Esse retorno foi cansativo…
Acho que nem meus pais sabem que voltei : ]
Preciso descansar : (“
“Anja...deixa disso. Vamos curtir…
Estou no teu bar favorito!”
Sorriu, sentindo-se atingida pelo poder do Cabernet:
“Não sei...está tarde e eu já bebi… :)”
“Não seja boba...
São onze da noite! Vamos procurar um lugar.
Topa uma pizza?”
Olhou para o fundo do copo de requeijão vazio. No aparelho de som outra música começava: Hei, mãe, eu tenho uma guitarra elétrica.
“Tá bom… : )
Vou me ajeitar.”
***
Em pouco tempo a mala estava vazia e Angela continuava indecisa sobre o que usaria. As roupas espalhadas pela cama formavam um estranho mapa sobre sua própria vida. Poucas roupas restavam de “antes” e a maior parte era a representação de um híbrido entre ela e a personagem que interpretou na última novela das nove. “Temos que fazer uma boa propaganda”, seu ex-empresário vivia falando. Engraçado como as estratégias dele a levaram ao topo. Uma personagem tão importante e impactante que suas reviravoltas chegaram a comover o país (alguns, de modo exagerado).
Uma campainha tirou-a da linha de raciocínio. Era o telefone fixo, na sala. Analisou a luz vermelha que piscava, pensando por que alguém ligaria para um telefone fixo, àquela hora. O vinho confundia sua mente. Sentou-se no sofá, atendendo a ligação.
“Alô?”
Do outro lado, um silêncio incômodo a perturbava.
O telefone pareceu ganhar peso quando o silêncio foi substituído por uma respiração. Com uma mistura de raiva e amargura, uma voz feminina perguntou:
“Por que você fez aquilo?”
“Quem está falando?”, perguntou, recebendo uma resposta curta e grossa da voz rouca e cheia de ódio:
“Eu vou te pegar, cretina! Alguma hora você vai errar, Maria…”.
***
Ainda sentia um frio na espinha depois de decidir a roupa que usaria. O motorista do aplicativo a esperava em frente ao edifício, mas ela estava incerta de seu rumo. Após desligar o telefone, o apartamento tornou-se sombrio. Estava com a sensação de ser observada.
Já havia sofrido algumas ameaças no Rio. Alguns fãs não conseguiam separar a personagem vilã da novela com a atriz. Porém, nenhuma daquelas mensagens perturbou sua rotina. Talvez o vinho tivesse papel nisso.
O reflexo do farol dos carros pela janela a arrepiava, assim como o movimento no corredor, que percebia através do olho mágico. Respirou profundamente, buscando se concentrar. Pegou as chaves e saiu do apartamento.
“Cleber te espera em um Voyage preto, placa IFG-2589”.
O carro de vidros escuros estava em frente ao edifício. O vidro abaixou e um homem careca segurando um smartphone pergunta se ela era Angela. Após as apresentações, embarcou com receio de ser perseguida por alguma fã louca.
O motorista não comentava nada durante o percurso, apenas a observava pelo espelho, sentada no banco de trás. De súbito, disse:
“Estranho...alguém está nos seguindo.”
Angela virou-se e viu o carro logo atrás. Dentro da penumbra reconheceu o contorno de uma mulher ao volante:
“Meu Deus! Faça algum desvio, não deixe essa mulher nos seguir!”
Sem hesitar, Cleber rumou à ponte do Guaíba. Angela pegou o celular, tentando encontrar sinal. A perseguidora não estava mais na traseira, mas o medo lhe consome.
“O que está fazendo, Maria?”, Cleber perguntou, com certa malícia.
Angela ergueu os olhos, percebendo que já estavam na zona rural e por isso o sinal estava tão ruim:
“Procurando ajuda.”
Cleber parou o carro, virando para ela. Seus olhos brilhavam na escuridão, como um predador:
“Pra onde você vai não terá ajuda, cretina!”, sua voz transformou-se, era algo agudo e estridente, cheio de raiva.
O pânico deixou-a sem reação. O motorista estendeu o aparelho de choque e seu corpo congelou no banco de trás.
***
Despertou numa espécie de cabana. A iluminação era precária. Estava amarrada a uma maca. Ouviu um gemido ao lado. Outra maca. Um homem careca se debatia nela, tentando livrar-se das amarras. Quando virou o rosto para Angela a imagem grotesca deu-lhe calafrios. Não possuía olhos e da sua boca escorria uma grande quantidade de sangue. A língua dele foi cortada. Aquele devia ser o verdadeiro Cleber.
Sentiu algo frio tocar as pernas. Demorou a identificar o motorista, pois havia se travestido. Usava uma peruca loira e um vestido florido:
“Você tirou tudo de mim.”
Aos poucos, a penumbra da cabana ganhava contornos e conteúdo. Do lado esquerdo havia um altar. Velas iluminavam uma série de objetos e fotografias, um material de marketing da novela. A imagem de Helena era o de maior destaque. A mocinha loira, que saía do interior com sua meia-irmã, Maria.
O homem lhe dá um tapa:
“Não ouse encará-la, assassina!”
“Você é louco! Isso era uma novela, fantasia!”
Mordeu os lábios em uma fúria insana. Não conseguia entender a morte da personagem como algo irreal. A dor que sentia era verdadeira no corpo e alma. Caminhou até os pés de Angela. Havia uma mesa de trabalho logo à frente. Em seguida, virou-se, estudando a marreta de metal.
Angela esticou o pescoço e enxergou o que era o objeto gelado que tocava os pés: um tijolo entre seus membros. Ele sorriu ao ver a cor de sua face sumir.
“Você não merece viver, Maria...mas não pense que vou fazer de modo rápido, afinal, minha mãe sofreu por muito tempo em suas mãos.”
“Era uma novela!”
“Fiquei perdido ao assistir ela perder a vida sem que pudesse fazer nada...você não entende o que é essa dor?”
Ergueu a marreta subitamente. O ódio estampado na face. Porém, antes de descer o instrumento, um estrondo tirou-lhe a atenção.
O verdadeiro Cleber conseguiu desabar no chão. O rosto ensanguentado tentava falar sem sucesso. Embora lhe faltassem dois sentidos fundamentais, ainda era capaz de ouvir e sabia a ação a tomar. Livrou-se das cordas e saltou sobre o atacante, acertando a mesa de trabalho. Nesse meio tempo, Angela usou sua força para livrar as mãos. A marreta voou a sua frente, acertando o ombro de Cleber.
Quando conseguiu sentar-se para livrar os pés, a marreta acertou sua canela esquerda. Antes que pudesse acertar a outra, Cleber saltou sobre ele.
Tremia em virtude da dor e desespero. Olhou os dois homens lutando entre si. Precisava sair logo daquele lugar. Puxou a perna boa, que saiu com facilidade uma vez que o esmagamento da outra afrouxou a amarra. Estava livre e precisava fugir.
O homem jogou Cleber sobre o altar e as chamas o consumiram. Com dois golpes certeiros grudou a cabeça dele na parede.
Mancava desesperada em direção à porta. O calor da cabana aumentava conforme as chamas cresciam. Girou a maçaneta e pode ver o céu estrelado. Por uma última vez olhou para trás. O perseguidor vinha em sua direção. Puxou a porta e saiu. O ar ameno encheu os pulmões. Então, de súbito sentiu um tremor e caiu de joelhos ouvindo um zunido. As luzes brilhavam intensas e o sabor do Cabernet ressurgiu em suas papilas. Vislumbrou o horizonte e sua música favorita começou a tocar enquanto torcia para que sua amiga não estivesse preocupada com seu atraso.
Esteio, 07/01/2017