O bloqueio do traça

Uma vez você perguntou a razão da minha foto de perfil.

Por quê um vilão de seriado kitsch com o qual ninguém se importa?

Achava que eu devia colocar uma foto do meu rosto, afinal "você não é deformado e tem presença".

O fato é que aquele personagem lembra um detalhe importante da minha vida.

Sou e sempre serei um bibliófilo.

Consumo livros como alimentos do meu espírito, entendo algumas pessoas e situações com eles. Consigo me preparar em qualquer imprevisto pois tenho comparativos na Literatura.

Significa que não me surpreendo?

Não, mas não é algo fácil de acontecer.

Você com todo seu estilo é um Nabokov, é um Süskind, no sexo comigo é um Rodrigues.

Toda pessoa que conheci é composta de um livro ou vários.

Eu tenho um amigo que é um perfeito Saint-Exupéry, impossível não lembrar do menino que vivia num planetinha com o coração repleto de altruísmo e não pensar nele.

Outro amigo com seu jeito sisudo, contido, dono de um minúsculo universo privado e particular é um Salinger. Ele é Holden e por vezes seu irmão falecido.

Minha cara, você é sensível como Linspector, cômica como o velho safado e trágica como o bardo.

Me iluminou com seus olhos plenos de esperança, como Gatsby.

Perguntou como andava minha escrita, eu autocrítico, respondi que tinha obras a terminar.

Confessei assim o bloqueio.

Passei dias devorando mais livros do que o pequeno inseto que me é tão querido. Não conseguir fazer algo que você ama por se julgar tanto é anticlimático como um romance frustrante, é infeliz como uma foda interrompida e por último, é triste como um encontro esperado cancelado.

O que fazer então?

Mudar de ares, de aparência, de atitude, usar drogas diferentes e ler outros livros?

O comparativo não ajudava.

Já havia dado aulas, trepado e realizado fantasias, usei quase todo tipo de narcótico, enchi meu corpo de talismãs pessoais, vivi um tempo à margem da lei, fui leal, desleal, honrado e desonrado. Bati na vida e apanhei dela.

Era um beatnik que não gostava de viajar.

Falta somente algo e quero que você faça parte disso. Dou um jeito em tudo no dia em que aceitar vir, tudo estará nos conformes para aproveitarmos cada instante.

Primeiro, será saboroso como Nin, ácido como Sade e ultrajante como Miller.

Venha ser minha derradeira musa, supervisionar essa trajetória de criação, essa jornada de destruição.

Você dará vida novamente a minha obra, peço um dia e será sua obra.

Vou escrever um Barker, um Rubião, um Steinbeck com você.

Escreveremos em conjunto?

Não.

Mas sem você não será possível continuar esse projeto de vanguarda.

O convite está de pé minha cara.

Aguardo resposta.

Raoni Barone
Enviado por Raoni Barone em 29/10/2016
Código do texto: T5806968
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