O sopro do Vento realça os Temores da Morte - DTRL 29

A ave espreitando a morte, o tigre tomado pela paixão, o que resulta no encontro de ambos?

Não se poderia imaginar que um ataque dessas proporções pudesse ter atingido o povoado de Zula. Não havia mais um povoado. A igrejinha do centro deteriorava-se em sincronia com as pequenas casinhas do conglomerado. Longas pétalas de chamas fugiam pelo ar após consumir as plantações dos pequenos agricultores, o que sobrou do saque aos comerciantes semeava desesperança apodrecendo no chão. Ao longo da única estrada, que ligava o povoado ao centro do Império, cem corpos semi-vivos gritavam silenciosos pela morte, o ar era rarefeito, cheirava a desespero...

Parecia o único vivo nas redondezas, enquanto as feridas expostas na face ardiam, o sol machucou um pouco os olhos. O vento calmo balançou os cabelos lisos e desleixados, o silêncio era inebriante. Qual o motivo daquele ataque? O que queriam com aquilo? Malditos Beltzas, foram capazes de chegar tão longe. Ajeitou a espada enferrujada na bainha de suas costas e tentou em vão limpar o sangue espalhado pelos trapos que vestia. Vou trazer de volta a vila, o poder do guerreiro libertador é meu. Apertou confiante a décima segunda chave dourada do Velho.

As imagens do genocídio ainda rondavam pela sua mente, o cheiro de carniça o fazia quase desmaiar, pensar nas crianças que conheceu no abrigo, lembrar que agora estão mortas era demasiadamente doloroso. Tentou afastar qualquer pensamento infeccioso que o pudesse desanimar, ainda podia fazer algo por aquele lugar, poderia fazer algo por aquelas crianças, pelas pessoas que o abrigaram, era um dever, ele só estava vivo pelo fato deles o aceitarem. Correu em direção ao fim do povoado. Não parece ter nenhum lixo por aqui. Ainda olhou para todos os lados na esperança de encontrar alguma alma viva e que pudesse ajudar de alguma forma, sentia culpa por estar vivo. Próximo a uma das cabanas destruídas do conglomerado um corpo se mexia debilmente, era um rapaz, chorava de forma copiosa enquanto esmurrava o solo.

Ele se aproximou lentamente, não reconhecia o rapaz, pensou em deixá-lo e seguir o caminho, desconfiava ainda se tratar de um Beltza e também temia que aquilo pudesse atrapalhar seus objetivos. Mas continuou com a convicção que precisava ajudá-lo. Perguntou ao rapaz se estava bem, ele tentou disfarçar o choro e fingir um sorriso, mas a tristeza era latente em seus olhos, perdera seus pais e não poderia conter a dor sentida pelas muitas pessoas que sofreram naquele dia. De súbito lembrou-se dele: era o Vento, o garoto que sempre estava à disposição para ajudar as pessoas, filho e fiel escudeiro do sacerdote gerente do abrigo. Ele não gostava muito da personalidade do Vento, achava-o submisso de mais, meio bobo, porém, ao mesmo tempo, também o admirava, ele tinha objetivo, queria ajudar pessoas, não suportava vê-las sofrer. Afastou qualquer pensamento de piedade, achava isso uma fraqueza, fingiu acreditar nele.

“Tá, se é assim, então vamos.” Disse já puxando o garoto pelos braços: “Espera um pouco Senhor pra onde vamos?” Aquelas palavras o fizeram corar, franziu um pouco a testa quase rindo: “Não interessa, só venha comigo.” O garoto puxou seu braço de volta e os cruzou em um rosto sombrio: “Não tenho certeza disso.” Ele acertou um murro no rosto do Vento que caiu se contorcendo por alguns segundos: “Agora tem?” Uma lágrima escorria pelo olho roxo do rapaz: “Desculpe.” Suas pernas tremularam, rangeu os dentes com os punhos cerrados, um pensamento de deixá-lo lá estava em mente, novamente aquela personalidade irritante, seguiu em frente, o Vento logo atrás se levantava e passava a segui-lo.

– Com licença, pode me dizer seu nome? – Disse o Vento com um olhar carregado após percorrer seus olhos pelos corpos estirados no chão. Ele para por alguns segundos e olha por cima dos ombros para o Vento, ajeitando a espada:

– Pode me chamar de... – uma pausa – Morte.

Droga eles ainda estão aqui! Empurrou o Vento para trás de uma cabana ao perceber a movimentação de um grupo de Beltzas. Entre eles estava O Temor Beltza, o sucessor do rei, movimentava-se de um lado para o outro, gesticulando seus braços e gritando comandos, tinha um olhar ríspido e um caminhar pesado. Escondidos, a Morte reprimia o Vento que batia os punhos no joelho com uma expressão de ódio, ver o homem que destruiu seu lar o fazia perder a calma. Parte do grupo se dispersou, aproveitando o momento deixado eles buscaram refugio dentro de uma das poucas cabanas ainda em pé.

Nojento! Desprezível! Dentro da cabana havia mais pessoas... um homem Beltza sufocava a menina em prantos agarrando seus braços, enquanto violava-a em seu quarto. A cena os paralisou e provocou a fúria da Morte, logo empunhou sua espada e cravou nas costas do homem, ele ainda cambaleando tentou revidar, mas o próximo corte no peito lhe tirou a vida. A mulher pálida desmaiou na cama, enquanto o homem caiu morto do lado de fora da casa. Foi o bastante para chamar a atenção do Temor.

“Mate quem estiver naquela casa”. Ordenou com o dedo em riste. Seguia o Temor procurando pistas do paradeiro da Décima Segunda chave do Velho, aquela que poderia desselar o Grande Guerreiro Libertador. A Morte e o Vento escaparam pela janela, procuraram encontrar alguma rota para sua fuga, os planos não poderiam sair frustrados naquela hora. A Morte puxou o Vento pela camisa e os dois irromperam por floresta adentro, não se sabia aonde ela daria acesso, mas era a única saída. Atrás deles dois homens Beltzas.

O ar era um pouco árido, os troncos das árvores se impunham de maneira sinistra nas suas frentes, caminhavam com certa cautela, mas os gravetos no chão denunciavam sua localização e os galhos pareciam querer segurá-los. Os dois perseguidores se aproximavam, eles deveriam irromper mais adentro da floresta. No entanto inesperadamente uma figura os bloqueou: era um ser quadrúpede, tamanho de um cavalo, possuía longos chifres e uma boca medonha cheia de dentes pontiagudos, um grito desguarnecido atingiu suas espinhas. Não havia possibilidades de lutar contra aquela besta, somente um exército era capaz de enfrentá-la. Contam as antigas lendas que aquele animal reencarnara o espírito do Guerreiro Libertador e seu povo, os Beltzas, o ódio os dominava e era o principal fator de suas conquistas, no entanto, o mesmo ódio era a sua fraqueza, pois estariam sempre condenados a viver em rancor e pela vingança.

Procuraram sair da floresta, não havia mais nenhuma escolha: deveriam enfrentar seus algozes. A Morte se pôs a frente armada com sua espada, esperando a chegada das figuras, o Vento em suas costas protegia-se com um toco de madeira, as pernas tremiam, nunca ousou estar se preparando para uma luta antes. Os homens surgiram. O primeiro com passos medonhos tentou acertar um golpe na Morte, com agilidade ele o derrubou, de súbito perdeu a calma e enfiou por diversas vezes a espada no peito do homem desfalecido. O Vento era incapaz de conter a fúria do outro soldado, tentava apenas desviar das investidas, porém não conseguiria por muito tempo. Por sorte o Beltza se assustou com a força da Morte e fugiu do confronto.

“As crianças estão com a chave do Libertador.” Saiu berrando a criatura. A morte punia-se por seu descuido, deixou que a Chave fosse percebida. O Temor Beltza encarou o soldado em prantos e se pôs em ofensiva para encontrá-los. “Temos que sair daqui.” A Morte empurrou o Vento que tentava se recuperar da batalha anterior. “Vamos ser pegos! E agora?” Tremia o Vento olhando para os lados para tentar encontrar uma maneira de fugir. “Cale a boca e me siga, nós vamos naquilo ali.” Apontou para um estranho pássaro que surgira em seus caminhos, era uma das Enguias Divinas Voadoras de Zula, as cantigas do Velho a descreviam como um ser mitológico especial, sempre aparecia para socorrer seus companheiros no momento de desespero. Os dois subiram no animal, as rajadas de ar causadas pelo balançar de suas asas subiam as folhas e provocavam a grama, partiram para o mais distante possível do Conglomerado de Zula.

“Imbecil, por que não os agarrou?” O Temor Beltza olhava para o céu suando fúria em seu rosto avermelhado. Socou a parede de um dos destroços de Zula e balançou as onze chaves do Velho. “Você inútil, prepare a catapulta e derrube aquele monstro.” Partiu correndo em direção ao animal voador, estava decidido que deveria reunir as doze chaves e ressuscitar o Grande Libertador, aquele seria o último passo para a glória dos Beltzas, a vingança contra o Velho finalmente seria posta em prática depois de anos de subjugação.

O garoto Vento tremia, sua pele estava esbranquiçando, o medo era grande de estar naquelas alturas, mas o medo de ser pego era ainda maior. Não parou para pensar ainda qual seria a decisão que devia tomar, estava confuso, muito triste para desejar felicidade no futuro ou a vida no presente, porém sentia que havia necessidade de seguir aquele garoto, embora parecesse um pouco violento, confiava nele, ele era decidido, devia saber o que estava fazendo. Não perceberam, mas a Enguia carregava um olhar pesado, seu corpo também pesava por sustentar as antigas correntes invisíveis, as marcas do genocídio a feriu gravemente, entretanto, o que a tirou o gosto de viver foi à tristeza de seu povo. Os Zulas eram navegantes nômades, eram felizes em suas aventuras, começaram a morrer depois de terem que tomar o destino de se tornar uma tribo sedentária por predeterminação do Velho, o seu Deus absoluto.

O garoto Morte olhou para trás para ver se avistava alguns dos seus perseguidores, parecia tudo tranquilo, tentou esboçar um sorriso de satisfação e colocar em mente os próximos passos. No entanto, não ouve espaço para tranquilidade, eles, logo foram atingidos por uma bola de fogo, a Enguia perdeu o controle, o animal chorava pelos ares, enquanto os dois se perderam em queda livre. A Morte tentou em vão fazer algo, parecia ser o fim, o Vento estava satisfeito, fizeram algo pelo seu povo, não sabia o que, mas fizeram... estava caindo, finalmente se juntaria as pessoas que deixara no céu. De repente se ouve o som do choque dos seus corpos... já estavam no chão.

Não estavam mortos, caíram em cima de uma pastagem, próxima a uma taberna. Era uma nova aldeia, não a conheciam. Enquanto os dois tentavam se recuperar da queda, um velho de bigode espesso os convidou para entrar, pensaram em negar, porém não tinham muita escolha. A taberna estava repleta de soldados Beltzas, o que era de se esperar de uma colônia. A antiga aldeia não existia mais após sucumbir ao domínio, atualmente eram uma geração hibrida de Beltzas e os antepassados. O homem tentou lhes ajudar e ofereceu bebida e comida, pensaram em rejeitar, mas resolveram aceitar as convenções. Em determinado tempo o homem, mesmo sem ser perguntado danou-se a falar sobre uma antiga lenda:

– Antes dos Beltzas chegarem isso aqui era um caos – pigarreou: – Aquele Velho foi um traídor, ditador, isso sim foi o que ele foi – Aquilo os incomodou, porém continuaram a escutar, embora agitados com a possibilidade de serem alcançados: – Vocês sabiam? O Velho e o Libertador eram irmãos, filhos de uma rainha muito poderosa, ela os gerou após fugir do reino dos deuses... O Velho traiu o Grande Guerreiro, manchou de pecado o ventre da rainha e usou de demasiado poder para instaurar uma ordem de medo... – Mentira! Não é assim que é a história de verdade – o Vento cortou a conversa, tremendo de fúria, sentia as pernas geladas e o coração ferido pelas calúnias. O Homem parecia enfurecido com a resposta:

– Como assim? Por acaso vocês não são... – pensou por um tempo e se levantou engasgado com as próprias conclusões: – Revolucionários!!! – Berrava aos quatro cantos. O tumulto provocou um clima de tensão, as pessoas se olhavam horrorizadas, outros apontavam para a espada da Morte em sinal de reprovação. Logo o ambiente estava preenchido pelo rancor dos moradores que ainda estavam fora de suas casas, ficaram apenas os mais enfurecidos. Os soldados presentes formaram um cinturão para não os deixar escapar. Alguns aldeões estavam com pedras, outros tocos de madeira, queriam pegá-los.

“Droga, vamos escapar.” Precipitou-se a Morte seguindo pelo espaço vazio, o pequeno grupo se aglomerou atrás dos dois. Um soldado agarrou a camisa do Vento que a puxou de volta com violência. Sumiram do alcance da cidade ouvindo insultos dos moradores que começaram a tentar atirar pedras em cima deles, não havia sinal do Temor Beltza, mas o alarde o faria aparecer logo. O Vento descobriu um local onde poderiam escapar. Subiram pelo teto das casas de alvenaria. Corriam sem nenhuma direção pré-definida, queriam distância daquele caos. A Morte não escondia o sorriso no canto dos lábios após fazer sinais obscenos para aqueles aldeões. Malditos lixos dos Beltzas. Continuaram a irromper pelos tetos até atingirem os limites da cidade do vinho. Chegaram a um local desconhecido. Era um vilarejo de poucas casas e baixo movimento. Logo que chegaram dois homens mal encarados se aproximaram.

“Quem são vocês? De onde vem?” O homem moreno e um pouco mais gordo pressiona os dois com um olhar fuzilante, eles se entreolham sem nada a dizer. “São revolucionários?” Disse o outro homem coçando o queijo com um misto de esperança em sua face. “Não somos.” Respondeu a Morte, o homem fitou o chão e assoprou um pouco de ar, voltou a encará-los e observou a espada atrás da Morte. “Fogem deles?” Parecia um pouco paternal. “Sim.” O Vento o encarou por um tempo. “Bom, Pandora foi o primeiro alvo dos abutres depois que o Velho morreu e hoje Pandora é o caminho para a revolução.” O Homem parecia contente: “Quando o Velho reencarnar encontrará seu exército.” A Morte arregalou os olhos, era o mesmo sentimento que o levou a treinar espadas mesmo sendo proibido, o mesmo sentimento que o motivou a seguir essa jornada:

– Aquele Guerreiro Libertador é um demônio – disse convicto: – Traiu o Velho tentando ter o poder da rainha todo para si. O Velho unificou as Dozes aldeias centrais, deu poder aos Zulas, tudo o que os Beltzas fizeram foi espalhar rancor e medo, nunca serão perdoados, mancharam um legado! O aldeão ouviu posteriormente toda a história de fuga dos garotos: “No fim vocês são mesmo revolucionários!” Parecia contente. “Bom tem um jeito de escaparem e chegarem à capital”.

No subsolo da aldeia, sobre luzes frágeis nas paredes e uma lamparina, se locomoviam pelos trilhos em uma vagonete. O local cheirava mal, estava repleto de espadas e armaduras, era um breu, mas não havia muitas alternativas, persistiam na firme ideia de encontrar a cidade central. “Morte, até agora não entendi, me diga, por favor, o que iremos fazer.” “Salvar Zula.” Respondeu rispidamente. Ele sorriu e ainda tentou: “Como?” A morte o olhou como se fosse definir uma sentença, respirou fundo: “Roubei a Décima Segunda Chave do Velho.” O Vento arregalou os olhos protegendo a boca. “Vou afastá-la dos imbecis que nos atacaram, sem as doze chaves eles não podem despertar o Guerreiro Libertador, mas com uma chave eu posso roubar o poder do lendário para mim.” Com um largo sorriso, o Vento o cortou: “E assim você poderá salvar a tribo e derrotar os Beltzas.” Pela primeira vez a Morte sorriu: “Aquele Guerreiro Libertador não pode ser revivido, foi desejo do Velho que ele estivesse selado”. Os dois desapareceram na escuridão.

No povoado dos vinhos o Temor Beltza descobre os acontecimentos. Aquelas crianças irritantes! Precisava agir de alguma forma, já era hora de unir as doze chaves e vingar os anos de tirania do Velho. O Temor passou as mãos pelas chaves que estavam em seu poder, fitava cada uma delas e pegou a Sétima Chave Dourada do Velho. Fez um movimento onde esticou seus braços, unindo suas mãos e expondo as palmas para frente com a chave a mostra. Um dos seus homens surgiu do silêncio que se instaurou: “Senhor, acho que não deveria, poderia desperdiçar o poder necessá...” Ao meio da frase o Temor tremia os dentes tentando manter a posição, o homem sumiu no escuro novamente. “Imbecil” Completou: “O poder das chaves pode ser utilizado até três vezes para ser inutilizado.” Levantou suas palmas para o céu, conclamando como um trovão:

– Sétima Chave violada – cerrou as sobrancelhas e encarou com mais força o céu, um berro nunca antes ouvido: – NOITE TEMPESTUOSA – a escuridão escapava de sua mão e contaminava o céu, logo o sol foi coberto pela estranha camada escura, sem estrelas, sem a luz da lua, ouviam-se os gritos dos monstros da madrugada e os tremores do caos.

Ainda no subsolo os dois rapazes logo perceberam o poder da escuridão tempestuosa que parecia flutuar no ar diante deles e mirava se alimentar do fogo da lamparina e das luzes na parede. Os braços da escuridão seguraram os dois e os jogaram violentamente no teto do subsolo. “O que é isso!” Berrou, babando, o Vento com as pupilas dilatadas. A Morte conseguiu se desvencilhar dos braços da escuridão ao cortá-la com sua espada, logo libertou o Vento, porém sem a lamparina eles se encontraram perdidos. A Morte foi fazendo rasgos na escuridão e tocou em uma saída que conseguiu perceber antes da lamparina ser consumida.

“Posso os sentir, estão em Rangers.” Contraiu um meio sorriso e depois soltou uma gargalhada: “É o fim da linha para esses Zulas.” Empurrou os soldados em sua frente: “Saí da minha frente, vou resolver isso sozinho.” Ainda sustentou o sorriso em sua face morena, seu corpo estava coberto por uma áurea escura, seus olhos envoltos por uma massa negra e um brilho distante. Ele caminhou decidido rumo aos dois rapazes.

Surgiu uma saída. Porém, ainda não estavam na cidade central. A Morte rompeu a porta do subsolo e subiu para a estrada principal. A escuridão era quase totalmente predominante, sem sinais de pessoas nas ruas, mesmo que o clima hostil permanecesse em sua respiração. Ofereceu sua mão para o Vento, que tentava ofegante sair do subsolo. Olhou para a sua chave e para o seu companheiro, sentia-se seguro e confiante. “Nós vamos conseguir” Disse com doçura e fraternidade em sua voz pela primeira vez. O Vento sorriu pela última vez.

Sobre passos acelerados surgiu uma estranha silhueta na escuridão difusa. O atrito do contato de seus pés ao solo provocava uma infeliz certeza. Seremos mortos. Os dois não trocavam olhares, mas o sentimento era semelhante. Sem alternativas apenas correram esperando que a sombra do acaso os pudesse salvar, eles estavam próximos da cidade central. Corriam, ora os pés embaraçavam, ora o coração dava sinais de cansaço, a pele parecia um gelo, o silêncio os sentenciava, a mesma sentença que todos em sua tribo carregavam, o mesmo sangue imundo da miséria, da fraqueza e da vingança.

– PERSEGUIÇÃO DOS REIS – Uma voz, forte como o trovão venceu o silêncio e selou seus destinos para sempre. Do chão começaram a brotar estacas de madeira que se moviam na direção da Morte, a sombra de poeira impedia de perceber o que acontecia atrás, mas os tremores no chão continuavam a avisar, não havia como fugir daquilo, ele falhou. Apenas parou de correr, não tentou desviar, esperou pelo fim. Porém como um Vento em plena fúria sentiu seu corpo escapar da direção da Morte, enquanto uma das estacas consumia sua perna. O menino Morte estava salvo pelo sacrifício do Vento. Caído, observou horrorizado a cena: três estacas transpassaram o seu amigo, a primeira perfurara as costas expondo sua carne fria e banhando o chão com sangue, a segunda atingira sua nuca fugindo pela boca e a terceira perfurara seu peito estourando um órgão pulsante e seu ímpeto de respirar. O Vento brincava de morte com um sacrifício silencioso em homenagem aos céus.

Tentou chorar, mas não conseguia, os pensamentos estavam mal organizados, um corte profundo havia lhe arrancado à perna, doía e muito sangue escapava. Tentou conter o sangramento com um pedaço de sua camisa e partiu se arrastando rumo à cidade central, o sacrifício que batizou Rangers seria estímulo para continuar. Na cidade a escuridão se abatia por todos os lados, sentia a impressão que algo se escondia entre as ruinas dos decadentes templos de alvanaria, as pedras no chão cortavam sua barriga misturando sangue com sujeira, olhou para frente onde a estátua do Velho foi tombada e proferindo seu ódio irrestrito estava o Grande Libertador.

Devia se esconder ou concluir? O Centro do selamento ainda estava distante, pressentia que o Temor voltara a se mover. Arrastou seu corpo para as margens da estrada, deixando um caminho de sangue que alertava sua localização. Mas não havia importância, precisava ir mais longe possível. Entrou em uma das ruínas, mamíferos rastejantes e voadores cercaram sua frente. Rolou rumo a qualquer direção, o corpo debatia-se entre os destroços e descia pelo declive das pedras, terminou em uma fossa. Era o fim. Esperava pelo mesmo destino de seu amigo e tinha certeza de que tudo havia sido em vão, não conseguiria concluir seu grande objetivo. Lembrou-se das pessoas que foram mortas, tentou recobrar a calma, mas seu corpo ainda tremia, o coração estava disparado e a sede era incessante.

Escutou alguns passos adiante. Era ele, a Morte suava frio, estava entregue. O Temor tinha um sorriso macabro em seu rosto, enquanto a escuridão se dissipava, caminhava na certeza da conquista. Visualizou a si mesmo, criança, treinando intensamente sobre os olhares reprovadores de seu pai. Lembrou-se das histórias que lhe ensinaram, de como os Beltzas foram subjugados pelo Velho e seu povo Zula. “Da raça imunda só sobrou você” berrou sem nenhum propósito, mas pressentindo que ele pudesse ouvir. “O dia em que o Grande Libertador jurou vingança finalmente chegou”. Chutava todos os restos de parede que via pela frente. “Lixo, abominação!”... “Vocês são os herdeiros disso, vocês nos oprimiram quando roubaram nossa terra!” Olhou distante para o céu: “Enquanto Zula existir, Beltza sempre estará em perigo!” Riu externando seu ódio como um animal selvagem.

O menino Morte tremia sentindo calafrios pelo seu corpo, a perna doía demasiadamente, uma lágrima amarga fugiu de seus olhos. Os sonhos desmoronavam como a ave que desejava a morte. Lembrou-se de quando fugiu de casa, de quando vivia nas ruas dos roubos... aquele povo tinha um sofrimento próprio, porém teimavam em escondê-lo, por obediência ou comodismo? Sentia pelos rostos dos Zulas que havia algo de diferente na história que lhe contavam, era um povo bom que o acolheu mesmo pecando, era um povo também incompleto. Mas ainda assim confiava no ideal do Velho, o grande unificador. Não sabia mais o que fazer, o que pensar, entregou-se a cantar: “Surge da imensidão o mais sábio dos guerreiros, frente aos inimigos veio apaziguar: um novo mundo irá começar.”

Algo lhe trouxe de volta a consciência. A música parecia alimentar seus músculos que ganhavam vida própria, se levantou e empunhou a espada. Quando surgiu, o Temor ria de maneira sarcástica, travou um confronto, em mente ela reproduzia a mesma canção. O combate equiparava-se, ora a Morte pressionando o Temor. Porém em um golpe o guerreiro Beltza rasgou a camisa da morte expondo seus seios. “A Grande contradição dos Zulas: escondem suas virgens e as oprimem e no momento crucial o destino deles está em suas mãos.” Começou a rir partindo violentamente para ferir a Morte que parecia sem nenhuma reação. O seu mais íntimo segredo fora revelado, quando partiu de casa e cortou seus cabelos decidira nunca mais ser a mesma, quando roubou as chaves e a espada do templo desejava mostrar a força de uma mulher determinada. Ela não era a rainha traidora do Velho e o seu algoz não era o Guerreiro traidor do Velho. Com essa revelação recebeu um corte que a fez desabar.

O homem desdenhava enlouquecido de ódio. “A mão do desespero irá acabar com você lentamente” e continuou: “Não terei pudor e nem pena por você ser mulher, companheira de exclusão.” O Temor decepou um braço da Morte que gritava ocamente sem destino, iria partir cheia de desgostos e dores, entregue a um mundo de traições e mentiras. O homem fizera vários cortes de pequena perfuração em seu corpo e espalhava a areia do chão pelas feridas, riu de sua própria maldade. A morte como último recurso lembrou-se:

– A FUGA DAS CHAMAS – O poder consumira o corpo do Temor que berrava desesperado pela vida. A Morte fitava o céu com várias certezas sobre nada e incertezas sobre tudo. Dormiu em um eterno sono de desespero, o corpo do Temor agonizava no próprio ódio. Da desesperança e do rancor, das doze chaves reunidas surgira aquele que modificaria o mundo para sempre. O Espectro do grande guerreiro se contrastava na escuridão, um forte vento varreu o continente e um grito de vingança anunciou o destino. Era o início dos anos de fúria.

O que surgirá é a morte sufocante nos temores do vento.

Temas: Competição, Contos de Fadas, Criaturas do Inferno.

Josué Viana
Enviado por Josué Viana em 25/10/2016
Código do texto: T5802235
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