A Maldição Do Teu Beijo

4 de setembro, 15:14h

Sim, eu estava morto; e mesmo assim relutei em fechar meus olhos. Eu precisava ver quem me matou pela última vez; e eu sabia que você estava a caminho. Demorava algumas horas e as flores que me envolviam já começavam a murchar, enquanto várias pessoas tentavam descansar meu olhar, mas me mantive firme de olhos bem abertos até você chegar. Embora todos acreditassem que eu não enxergasse mais nada... era preciso os olhos do corpo para eu olhar novamente bem no fundo dos olhos de quem eu queria. Até que você chegou, enfim; me olhou e sorriu. E eu senti minha alma se tornar mais leve. E quando, então, fechou meus olhos e beijou minha testa deixei meu corpo e meu mundo, tornei-me espírito para caminhar rumo a eternidade.

3 de setembro, 23:34h

Você apontou a arma para mim naquela noite como um cavaleiro que empunha uma espada. E meu coração se congelou. Seu sorriso tão fácil e seu olhar matreiro eram terríveis. Eu vislumbrei sua alma sendo vendida. O frio da madrugada formava em torno do seu rosto alguns rastros de fumaça feita do seu hálito e respiração. E eu comecei a transpirar. A profecia se cumpriria. O destino escrito se desenrolava como uma tragédia teatral. E eu vi o corvo que me perseguia à espreita. A hora do fim havia chegado.

4 de setembro, 3:39h

Aqueles cadáveres ao meu redor. A visão ainda confusa pelo sono; talvez alguma droga tenha escravizado minha mente... quando acordei numa penumbra total. Eu estava largado em um gramado úmido e a cabeça doía. E ali, ao meu lado corpos sem vida miravam o vazio de olhos vidrados. Uma chacina da qual eu era sobrevivente. Até que vi em minhas mãos sangue seco. Mas eu não sabia o que acontecia. Uma amnésia se tornara amiga de minha alma. Levantei-me, cuidando para desviar daqueles três ou quartos corpos que ali estavam... reconheci, então, seus rostos; o que fez meus olhos lacrimejarem e um desespero tomar conta de mim. Não poderia ter sido eu monstro tão cruel, mas minhas mãos ensanguentadas me denunciavam. Caminhei perturbado até uma poça d’água em meio ao gramado, e desesperadamente comecei a limpar o sangue que cobria minha pele, e não deixar mais nenhum resquício daquele vermelho em minhas mãos, enquanto a água empoçada se tornava rubra. E aí você apareceu e foi me fazendo lembrar aos poucos de tudo o que eu precisava lembrar:

4 de setembro, 1:07h

Primeiro, você sorriu. Depois, me deu um beijo na boca, beijando minha mão em seguida e dizendo: “Não se esqueça de mim”. E desapareceu do mesmo jeito que apareceu. E isso se repetia. Você se alimentava de álcool, e de almas enquanto beijava outras bocas. E eu não te esquecia, mas você sim me desprezava. A tua amizade: prêmio de consolação para um coração ferido à queima roupa. Eu te protegi ao entrar na frente do tiro que atingiria a ti. E bebi da tua peçonha como antídoto por algum tempo, até me envenenar de vez e me transformar em alguém como você. Era uma maldição. Eu não poderia te esquecer. Você teria que me matar. Se por ódio de amor, ou por amor de ódio não sei. A profecia se cumpria: você me amaria quando eu não mais te amasse. Mas...

4 de setembro, 5:31h

Um caminho de brasas você fez. E pediu que eu caminhasse sobre o fogo. E eu caminhei. Há quem caminha sobre as águas, porém por ti caminhei sobre chamas. Pisei cinzas incandescentes que arrancaram a pele dos meus pés. E ao caminhar aquela via fui servindo de espetáculo, enquanto você, agora, me esperava. De arma em punho você me esperava. Então, eu te sorri, e fiz o mesmo que você: me embriaguei e beijei outras bocas, amei outros rostos, amei tanto que os matei. Estavam ali ao meu redor, pálidos e sem qualquer vestígio de fôlego. E você seria também minha vítima; como fui sua, mas me revivi. Agora, porém, tua pedra serviu para amolar meu punhal. Não, você não deveria me deixar sobreviver. Eu fui até você. Encostei tua arma no meu peito e pedi para que me matasse, olhando nos meus olhos e confessando seu ódio por mim. Para você não provar do próprio veneno, você, monstro, mate o monstro que você criou! Você olhou nos meus olhos, e havia um pouco de mim em você; e um pouco de ti em mim. Éramos como vampiros, e por uns minutos que duraram a eternidade ficamos nos olhando assim... até que você disparou teu revólver fazendo um barulho surdo. Mesmo assim uma revoada de pombos lançou voo. Dentre eles, um pássaro continuou inerte a observar tudo: um corvo. Era o corvo que nunca esqueceu meu rosto, e me perseguia. A maldição se cumpriria. E assim como ele, eu nunca esqueceria o seu. Mesmo depois de morto precisava te olhar mais uma vez, para ter a certeza de que você é homem, e não apenas mais um demônio longe do seu inferno. Porque seu inferno, agora, serei eu. Apenas siga em frente, que o corvo que tanto me seguiu e me guiou até você, agora te guiará...

4 de setembro, 15:15h

Eu só precisava te olhar mais uma vez para nunca mais esquecer teu rosto.