A REENCARNAÇÃO DO MAL (CONTO)

Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem.

Romanos 12:21

Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro.

E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.

Friedrich Nietzsche

Não sei como redigir esse relato. Creio que o querido leitor sequer aceitará de bom grado essa confissão. E tão pouco façam mal juízo de minha pessoa. Se existe um Deus, este por ventura é a testemunha de todo ocorrido. Neste exato momento enquanto escrevo, estou encarcerado em uma instituição mental, pois tamanho é o fardo que carrego, que até mesmo duvido se há algo realmente de real no que eu narrarei, ou certamente perdi o pouco da sanidade que possuira. Bem vamos aos fatos. Tudo que aqui descrevo iniciou-se na primavera do dia 6 de junho de 1866, no pequeno vilarejo de Letchworth, próximo ao condado de Cambridge.

Naqueles tempos eu era um um jovem de dezoito anos e ocupava a posição de imediado em uma das embarcações cargueiras no porto de Southhampton. Como estava atracado a meses, resolvi sair para conhecer as tavernas inglesas e me divertir um pouco. Foi em um destas alcovas pestilentas que conheci Amy, uma jovem na flor da sua juventude e pela qual me apaixonei perdidamente. Após muitos meses de noites tórridas, resolvi casar-me com ela, mesmo estando consciente que não poderia senão ofertá-las algumas ninharias, que seriam frutos de meu esforço e suor. Dali há alguns meses, observo minha esposa pranteando copiosamente em nosso antro e com uma expressão desesperada. Ao indagá-la do que havia ocorrido, informou-me diretamente que estava grávida!

Éramos pobres,não havia como custear as necessidades que traria um recém nascido. Deste modo, ao conversar com minha esposa, optamos que a melhor alternativa seria realizar um aborto. A minha sogra indicou-me uma curandeira de uma aldeia próxima, a qual oferecia tal serviço por alguns xelins e era discreta. Na noite posterior, ainda de madrugada, aluguei uma coche e parti sob a brancura mortal de um nevoeiro espesso que circundava nosso condado. Lembro-me que em questão de algumas horas, a certa senhora, já nos aguardava, visto que no dia anterior, um mensageiro havia informado-a de nossa chegada antes do raiar do sol.

O processo mesmo sendo doloroso para minha esposa, fora rápido e deixou poucas sequelas. O feto fora expelido depois de algumas horas após ser tomado certas infusões abortivas. O que vi diant dos meus olhos não era algo ainda humano, por assim dizer, tinha certos aspectos das feições humanas, mas como possuía apenas alguns meses de gestação, tinha um aspecto vil e repulsivo, alguns membros nem haviam ainda sido completamente formados, era meio gelatinoso ou gosmento e o odor de algo pútrido devido ao sangue coagulado, causa-me ânsias violentas. A única coisa que naquela “coisa” poderia ser notada era uma pequena protuberância entre as coxas que condizia que aquela gosma seria um bebê do sexo masculino. A velhaca ao ver tal cena ria com uma violência, tal qual, que parecia a meretriz de Satã na terra. Após ver-me naquele estado deplorável orientou-me a enterrar “aquilo” em uma vala próxima a sua residência.

Alguns anos mais tarde, fui promovido a chefe das fiscalizações aduaneiras e portanto a minha situação financeira havia melhorado drasticamente. Com isso e para alentar o ato vil cometido meses atrás, em uma franca conversa com minha mulher, resolvemos que ela engravidaria novamente, e como estávamos próximos de Londres, e longe do espalhafatoso interior de Cambridge, nossa filha ou filho poderia crescer com certas regalias que em outras épocas sequer poderia ser oferecido.A gestação de Amy fora tranquila, com todo o conforto e os cuidados que eram necessários.

Desde o nascimento de Harry, eu percebia que ele era um garoto diferente dos demais. Ainda nos primeiros meses após nascer tornou-se extremamente irritadiço. Ensejava apenas o seio materno e dormia poucas horas durante o dia. A noite tornava-se mais ativo permanecendo desperto até altas horas da madrugada. Ao completar dois anos, sua personalidade alterou-se. Facilmente se percebia traços de algo soturno e até mesmo repulsivo em seus modos. As outras crianças de sua idade tinham receio ou mesmo medo de aproximarem dele. Mas sempre acreditei que fosse alguma criação da minha mente, quem sabe até o remorso do que havia acontecido no passado. No entanto, nunca essa impressão desaparecia de mim por completo.

Quando completara cinco anos, matriculei-o na pré-escola e mais alguns transtornos ocorreram. Ainda na primeira semana de adaptação um incidente descrito pela professora me causou certo desagrado. A professora disse-me que Harry havia impelido um garoto escada abaixo no momento do recreio, e o tal menino havia tido uma leve corte no supercílio e a perfuração sangrou profusamente. Mas o pior ainda estava para ser relato. A professora me afirmou que após o ocorrido Harry ria com um tom zombeteiro digno de ser reprovado por qualquer pessoa com o mínimo de senso crítico. Deste modo, não me restou outra alternativa senão transferi-lo para outra instituição.

Aos sete anos seu instinto para a malignidade já era visível. Certa noite, antes de dormir atracara-se com a mãe e deixara nela diversos arranhões em todo o corpo, desferindo diversos golpes com a unha até rasgar-lhe a epiderme. Outrora, tornou-se rude e arisco a qualquer manifestação de carinho materno ou paterno. Preocupado, levei-o até um psicólogo e o mesmo me informara que isto era comumente em crianças até a puberdade. Sendo assim aquela noite, ao chegar mais cedo do labor, resolvi por conta própria ir ter com Harry uma conversa amistosa.

Aproximando-me do quarto de Harry, pude ouvir claramente duas vozes difusas e alguns grunhidos, dei mais alguns passos e cheguei próximo ao alpendre da porta. Na penumbra que imergia de seu quarto Harry me observava. De soslaio, fitou-me com um olhar diabólico e cruel. Um sorriso maligno e repulsivo lentamente brotava em seus lábios empalidecidos pela crueza. Ouvi ainda um suspiro esganiçado, semelhante ao debater d’uma alma próximo do fim da sua própria existência. Ao observar novamente Harry, fiquei estremecido em um tétrico horror!Em suas mãos pequenas jazia morto um pobre animal.Era Nikolai nosso gato de estimação. Seu semblante cadavérico com os globos oculares esbugalhados causou-me uma aversão de imediado. De sua boa entreaberta escorria uma massa disforme e branca, borbulhava por aqueles bigodes densos e negros, a qual segundo minhas impressões tratava-se de suas tripas e restos da massa digestiva.

Um misto de repulsa e nojo acossou-me. Pela fresta mínima da janela, um lânguido feixe da pálida luz noturna alumiava o quarto. O semblante de Harry crispou-se sob aquela argêntea luminosidade, e percebi de sobressalto que sua expressão de prazer era maligna. Havia algo de maléfico em meu filho. Não se tratava daquelas traquinagens pueris, mas sim de algo mais nefasto e cruel. Ao avistar-me defronte a porta, de maneira sorrateira tentou desfazer-se do cadáver da criatura, enrolando-o em um cobertor e assim crendo que poderia ocultar de mim aquele gesto demoníaco.

Com certo ímpeto aproximei-me de Harry e com a voz trêmula disse:

- Porque fez isso com Nikolai, explique-se Harry!Ele permaneceu imutável, apenas observando e talvez analisando minha reação, mas naquele instante uma fagulha de ódio apossou-se de mim e eu esbravejei com o garoto: - Não se faça de surdo Harry.Que diabos fizestes com o pobre animal?Porque matou-o?

- Não o matei papai, retrucou com a voz calma. Eu apenas estava brincando com ele, redarguiu serenamente. Talvez Nikolai tenha dormido...

- Mentira!-esbravejei possesso.Você matou o pobre animal. Porque cometeu tamanha crueldade? Eu havia me descontrolado.Aquela dissimulação me irritara. Estava fora de mim. Peguei Harry pelos braços e comecei a sacudí-lo violentamente e enlouquecido gritava: - Responda-me! Porque o matou? Como pode ser tão cruel...!Naquele momento o olhar de Harry exultava uma sensação estranha em mim. Suas pupilas negras se tornaram dilatadas, franziu o cenho.

- Quer mesmo saber porque fiz isso papai?Replicou-me com um tom sarcástico e perverso na voz. – Sim quero saber!E então para meu horror e espanto que até hoje me atormentam ele respondeu-me assim: - O senhor se lembra daquele filho que você pediu para abortarem? Aquela criança era eu.

opoetakurita
Enviado por opoetakurita em 03/07/2016
Código do texto: T5686294
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