O GRITADOR - DTRL27

"Sigo um caminho de pedras

do alto montanha neblinas é de madrugada

sigo por dentre as montanhas de pedras

só, sigo em silêncio."

(Ventania)

Viajar sozinho é divino! Eu nunca esqueço as palavras de um parceiro ermitão que conheci na estrada. Ele me batizou de Matraca, mas eu já tive muitos nomes, hippie, maluco, andarilho, mendigo, micróbio, vagabundo, sem teto e por aí vai. Cada um enxerga o que vê, no fim, o que importa é o que você é de verdade. Quem me conhece sabe minha filosofia. Costumam dizer que sou um contador de histórias, isso eu não sei, Acho que sou mesmo proseador.

Sozinho, também, o sujeito vê cada uma e acaba sem ter com quem compartilhar. Depois de tantos anos de estrada ainda têm coisas que a gente não esquece, eu tenho perdido muito pelo caminho, coisas que ficam para trás como pegadas na poeira, mas aprendi a olhar para frente e, dessa forma, ficar no lucro. Quando digo lucro não quero dizer dinheiro, já abstraí isso faz muito tempo. Sou um homem livre.

Foi na véspera de natal, eu me lembro porque passei pela cidade e estava toda enfeitada com luzes coloridas. Uma coisa linda de ver. Só que por conta disso a guarda caiu em cima do pessoal, passaram com uma van fazendo a “limpeza” e recolheram todo mundo que dormia por ali. Peguei a BR bem cedo, aos poucos fui deixando o caos da Babilônia, passando pelos calmos bairros burgueses e encontrando a reta cinza da qual eu me sentia tão familiarizado.

Seguia em direção à trilha, sempre fui bicho do mato, gosto mesmo é de pisar na terra úmida, sentir o cheiro das folhas naquele silêncio ruidoso que a mata tem. Um amigo me falou do caminho e achei que era exatamente disso que eu precisava naquele momento. Caminhava ao meio dia sob o sol escaldante, o asfalto evaporava sob meus pés, sentia a borracha do tênis grudando a cada passo. Por sorte, até um velho maluco dreadlock como eu ganha uma carona de vez em quando e o caminhão branco buzinou e parou no acostamento uns metros à frente.

Seu Alcino fazia aniversário aquele dia e trinta anos no caminhão, era da região mesmo, sorriso largo e os olhos atentos na via, ficou feliz em ajudar. Disse que não gostava desse negócio de mato e tinha muito medo de um tal de Gritador.

Contou que por aquelas bandas andava um espirito perdido que atormentava os andarilhos soltando gritos estridentes e gemidos aterrorizantes durante a noite. Era o corpo descarnado de um infeliz que se perdeu na mata na brancura da viração. A alma do pobre diabo não teve repouso, por isso não deixa os andantes descansarem.

Eu ri. Recebi seu olhar de reprovação. O sol já quase se punha quando desci do caminhão. Olhei para o seu Alcino com gratidão, ele acenou e disse para eu tomar cuidado. Comecei a trilha já com a luz escassa, estava sem lanterna por isso caminhei bem rápido, quase não via meus pés, tropecei em algo metálico que notei ser um trilho de trem, desviei o caminho e segui a linha férrea até parar próximo a uma pedra grande. A noite estava morna o céu bem estrelado, decidi dormir ali mesmo, puxei uma loninha forrei o chão e usei a mochila de travesseiro. Fiquei por horas deitado fumando e me deleitando com o privilégio de estar vivo, quando ouvi um barulho.

Foi um chacoalhar de folhas seguido de um gemido longo e constante – O gritador. O som ganhou a noite e silenciou os ruídos habituais. Uma... duas vezes, parecia eterno em sua agonia. Eu estava ali, paralisado, sentindo a garganta seca. Levantei em estado de alerta e quando o silêncio voltou, trazendo de volta os sons noturnos, tomei coragem para explorar o local. A passos lentos como se estivesse num terreno minado, olhava a minha volta em busca de respostas. Outro gemido interrompeu o resquício de minha coragem, agora mais baixo e meio engasgado. Meu coração gelou. Não sou desses caras de acreditar em assombração, não tenho medo de bicho também não sou de me esconder de gente, tenho medo mesmo é do que não entendo, das coisas que não consigo explicar.

Naquela noite decidi que ali não era um bom lugar para ficar. A gente tem essas intuições. Fui embora de madrugada mesmo, guiado pela luz branca da lua que, àquela hora já alcançava o meio do céu, peguei o caminho de volta à civilização.

Mas amigo, vou te falar uma coisa, aquele acontecido não me sai da cabeça, ficou cutucando minhas memórias igual a um espinho de laranjeira e no ano seguinte eu tive que voltar lá. Dessa vez escolhi a claridade do dia para me fazer companhia. Dia de natal.

Impressionante como a luz interfere no ambiente, tudo parecia menos hostil, os raios de sol penetravam as folhas com um brilho único, o ar puro limpava meus pulmões e cada passo para dentro parecia me colocar mais perto de mim mesmo. Saí da trilha acompanhando o trilho do trem como da outra vez e cheguei até a tal pedra. O céu estava azul por completo e o vento tocava a melodia das folhas. Me deitei e estiquei o corpo cansado, naquele momento não havia nada com que me preocupar. Estava em paz.

Dois indivíduos me tiraram do transe e levantei a cabeça. Eles estavam parados, pálidos como papel, olhos arregalados me encarando. A visão de um doido desgrenhado, sem camisa e com presas de javali no pescoço talvez seja assustadora para alguns. Cumprimentei, ofereci fumo e eles pareceram mais confortáveis. Sentaram ao meu lado e me contaram uma história de deixar o cabelo em pé:

– Um rapaz se matou enforcado bem naquela árvore – Apontou naturalmente com a mão do cigarro.

Então foi fantasma, pensei na hora.

– Faz exatamente um ano – continuou – acharam o corpo dele no dia de natal. – Encarando-me enquanto dava uma longa e demorada tragada.

Sempre fui de falar demais, mas aquele dia, eu me calei.

Tem coisas que não tem mesmo como explicar, agora eu entendia uma, mas deixava de entender muitas outras. A vida é mesmo louca.

Matraca

Tema: Cultura Latino-Americana

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 30/04/2016
Código do texto: T5621014
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