ADRAMELECH – DTRL 26 Duplas

“Árduos são os caminhos da verdade, e duros de trilhar”

John Milton

1

Um... dois... três... Combustível... Comburente... Calor. As labaredas azuladas tomavam conta de tudo ao meu redor. Quando abri os olhos senti o inferno me envolver num abraço terno. Tentei me erguer apoiando na base de metal da cama, bolhas levantavam nas palmas das mãos instantaneamente, como em um torresmo na gordura. Eu conhecia o poder do fogo, ouvi falar. Quem não ouviu? Quem não experimentou colocar o dedo na chama de uma vela? Quem nunca passou horas a admirar uma fogueira? É fascinante. O fogo é como um ser vivo, se move, se espalha e devora quase tudo que toca. Dentro de uma casa, ele não rejeita nada, engole tudo. As paredes de madeira, o colchão de espuma, as cortinas de tecido e a carne. Carne queimando, torrando. Um... dois... três...

Da cama caí de costas no chão, sem ação, hipnotizado pelas chamas ao meu redor. Em minha cabeça ecoavam gritos estridentes de desespero e choro. Não conseguia raciocinar, parecia um pesadelo, um filme de terror. Levantei e cambaleei até a porta, pedaços do teto já se desprendiam e despencavam sobre mim, até mesmo o chão não parecia firme o bastante. No corredor uma fumaça espessa e escura formava uma nuvem negra. O cheiro de carne queimada era insuportável. Lembrei do meu filho, de minha esposa. O choro, as lágrimas.

Olhos, nariz e traqueia inflamavam como brasa, eu começava a delirar e o quadro inerte na parede dizia para eu ficar calmo, que logo a dor iria embora, que em breve estaríamos todos juntos. Agora o menino da pintura não chorava, ele ria, ria do fogo.

Não sabia, mas já estava perdido e em segundos estaria no chão, sem oxigênio, o peito ardendo e ouvindo as sonoras batidas do meu coração cada vez mais escassas. Antes de apagar vi o quadro cair da parede, deslizar na superfície lisa de concreto e parar no chão. Virado ao contrário, aquilo parecia impossível, na pintura, não mais aquela criança, mas sim uma figura assustadora. Um, dois, três... O próprio demônio... Combustível... Comburente... Calor. “Venha comigo”, dizia a besta do quadro. Um, dois, três... Até hoje não se sabe onde nem como o incêndio começou. Restaram apenas cinzas, os pesadelos que me atormentam todas as noites e o quadro, misteriosamente intacto.

2

Propriedade particular, não entre. Letras escritas à mão, pintadas nas paredes das casinhas daquele antigo condomínio. Todas iguais dispostas em uma fileira simétrica, portas e janelas trancadas. Pareciam abandonadas, não fosse pela grama impecavelmente cortada, jardins floridos e alguns panos brancos no varal.

Cadeiras de descanso permaneciam recostadas na varanda ao lado fumaça que ainda saia da caneca de alumínio em frente a única casa aberta.

De fora era possível ver parte do interior, os moveis opacos, toalhas desbotadas, estátuas de santos com os olhos brancos e cantos quebrados. Ali não havia nada que remetesse a juventude. O vento soprava pela fresta da janela e chacoalhava uma cortina de contas que se debatia quebrando o silêncio mortuário.

Eu estava em pé na soleira da porta, um nó bem no meio da garganta e a esperança de encontrar uma resposta. Quando dei o primeiro passo em direção a escuridão uma senhora encurvada apareceu segurando um cálice prateado. Fui tomado pelo medo. Um calafrio percorreu minha espinha. Fechei os olhos e contei até três...

E o cálice ainda rodava manchando o piso bem encerado quando a velha mulher desapareceu atrás das contas. Paralisado encarei o objeto no chão. Não é possível, sussurrei ao lembrar do sonho. Um... dois... três...

“Vá embora! Por favor, vá embora.” Uma voz rouca vinha do outro cômodo.

Pensei em me afastar, sair correndo e tentar outra vez recomeçar minha vida ou simplesmente bater a cabeça na primeira parede que encontrasse, só para acabar com tudo de uma vez, mas não era tão fácil assim. Sem contar que agora estava tão perto. Depois de tanto procurar pela origem do quadro... Iria desistir? Não, falta pouco, preciso entender o porquê. Sabia que se voltasse daquele jeito, os pesadelos continuariam, a angústia não teria fim e eu nunca iria me perdoar. Afinal havia trazido aquele mal para minha casa, e mesmo com os sonhos, não me livrei do quadro antes da tragédia.

“Vá embora!”

Agachei, juntei o cálice e senti o cheiro. Fiquei aliviado ao constatar que não era sangue, apenas vinho.

Adentrando a escuridão da casa e meus olhos foram se adaptando a luz escassa. Ao lado de um sofá velho, abraçando os joelhos, a senhora. Agora era possível ver melhor seu rosto, aparentava pelo menos setenta anos e tinha uma enorme cicatriz que deformava grande parte de sua face. Usava um vestido, que um dia fora branco e um pano velho amarrado na cabeça.

“Por que ele fez isso comigo?” questionei a velha, imaginando que ela já soubesse o que eu estava fazendo ali.

Ela levantou, seguiu até a pequena mesa de centro que tinha em frente ao sofá esticou os braços finos para pegar alguns frascos, sua pele parecia áspera como papel velho, tinha dedos compridos e unhas semelhante a garras. Com as mãos trêmulas, afastou os livros e enfileirou vários comprimidos depois engoliu um a um, a seco. Quando terminou, me encarou, parecia analisar todas as queimaduras que eu carregava, seus olhos brilhavam com uma vivacidade que não poderia existir em um corpo tão frágil como aquele.

“Eu só preciso ouvir a história, entender o porquê.” Disse tentando esconder a angústia palpável.

Ela se encolheu no sofá, junto com uma colcha de lã e olhou pela pequena janela. Uma brisa balançava a cortina encardida e uma sensação estranha tomava conta de todo o ambiente. Era o silêncio que antecede a tormenta, era como uma lembrança muito longínqua que se aproximava aos poucos, sorrateiramente; eram os galhos se movendo devagar, era o gato parado no canto da casa, assistindo o espetáculo; eram seus lábios abrindo e fechando sem emitir som algum; o desamparo e os olhos que me encaravam, duros como pedra. Ali, de certa forma todos estavam mortos.

Eu ansiava a verdade. Queria me livrar daquilo, vomitar tudo no papel, mas ainda assim, temia ouvir o relato.

Respirei fundo, um, dois, três. E ela começou, sua voz soava como um murmúrio distante...

3

Começou depois que o nosso filho morreu. De início eu achei que aquele sofrimento era normal, afinal, a gente tinha perdido o Carlos e ele se culpava por isso, dizia que fora o cigarro que causara o acidente e que ele era o responsável pelo fogo. “Fui eu que esqueci o cigarro acesso em cima da mesa, é minha culpa”, ele dizia. E os dias foram passando e a tristeza, o remorso só aumentou. Ele não conseguia mais dormir, dizia que toda vez que fechava os olhos, Carlos aparecia, todo queimado, chorando.

Eu fiquei com medo e tentei levar ele ao médico, mas não adiantou. Tempo depois, ele nem ficava mais na cama, passava a noite na sala, lendo livros estranhos que eu nunca havia visto, a TV ligada fora de sintonia, e a caneca de café vazia jogada no chão.

Certa noite, levantei a procura dele, estava na garagem. Não precisei perguntar o que fazia, ao me aproximar, vi disposto em uma mesa, uma enorme paleta de pintura, diversos pinceis e anotações com símbolos e números que não faziam sentido. Ao lado, sentado em um pequeno banquinho, estava meu marido, concentrado, trabalhando em uma tela. Meus olhos encheram de lágrimas quando entendi aqueles primeiros traços. Era Carlos.

Por alguns segundos achei que tudo mudaria para melhor, que aquele era um avanço. Toquei o seu ombro e elogiei o trabalho, mas ele não respondeu, apenas continuou desenhando.

Tentei tira-lo dali, mas ele me empurrou, fui ao chão e quando olhei para ele novamente, vi que o homem em minha frente não tinha quase nada daquele marido que tanto amei. Seus olhos estavam dilatados e a pele parecia ter envelhecido anos. “Eu vou trazer ele de volta” repetiu e então voltou a pintura.

Ele trabalhou naquele maldito quadro por três meses, tinha dias que ele só saia da garagem para ir ao banheiro, preparar café ou beber seu vinho. Às vezes eu o escutava chorando, outras rindo. Um dia, tive a impressão de ouvir a voz do pequeno Carlinhos, rindo junto dele. Eu acho que ele estava ficando louco... Bom, depois que ele terminou o quadro, pude confirmar isso. Ele pendurou o quadro na sala e passava o dia todo olhando para a pintura, dizendo que nosso filho vivia ali e que em breve ele teria seu corpo novamente. “Basta eu tomar coragem” ele sussurrava para si. E ele tomou... “com sangue, eu sacrifico, realize meu desejo, com sangue...”

4

...Com sangue, eu sacrifico, realize meu desejo, com sangue...

...Com sangue, eu sacrifico, realize meu desejo, com sangue...

Fiquei estático, sem reação enquanto a velha encolhida no sofá balançava seu corpo para frente e para trás, com o olhar perdido repetindo suas últimas palavras como um mantra até se transformarem em sussurros em seus lábios finos. Porém tudo a minha volta parecia igual, minha alma jazia em silêncio, eu agora possuía a história, o papel me chamava engolindo por completo minha concentração, logo estaria livre de tudo.

Mas naquela mesma noite o pesadelo voltou...

Um... dois... três...

5

A casa, os gritos, o sangue. Eu parado na porta, acompanhando aquela cerimonia estranha. Várias velas acesas, vultos, alguém gesticulando com as mãos, apontando para um quadro na parede. Algo me dizia que aquela era a pintura que eu havia comprado de um vendedor ambulante no centro da cidade, objeto que destruiu minha vida, sem motivo aparente.

No sonho o menino não estava no quadro, mas eu ouvia seus gritos, seus pedidos de socorro. As luzes se apagavam, depois sombras. Um ataque, um baque. Um sussurro gutural me congelou o corpo “Com sangue, eu sacrifico, realize meu desejo, com sangue...” Eu corria minha mão pela parede, encontrava um interruptor e quando acendia a luz, via apenas o quadro borrado de sangue e o cálice postado em cima de estranhos símbolos no chão da velha casa.

O sangue escorria pela tela e de dentro dela, uma figura estranha, meio homem, meio bicho, surgia. Tinha chifres e focinho de animal. Uma besta, um demônio. A criatura saia do quadro, descia no chão, seu corpo com milhares de penas, também manchadas de sangue. A coisa urrava e depois se desmanchava, transformando-se em fogo, incendiando todo o ambiente. E eu contava até três para acordar, começava a sentir o fogo tomando conta de mim, combustível... comburente... calor. Depois com a respiração ofegante, voltava para a realidade.

6

Um, dois, três, respirei; um, dois, três, mais uma vez; um... dois... três... Não pode ser, outra vez o sonho.

Nenhuma foto. Na casa não havia nenhuma foto, nem do filho, nem do marido ou de parentes. Não havia vela nem flores para os santos, não. Ela não usava aliança, não tinha sequer uma marca, não mencionou o nome do marido ou explicou os livros estranhos sobre a mesa... “A maldita velha mentiu”.

Levantou num sobressalto. Um... dois... três... coração acelerado. Sobre a escrivaninha o manuscrito da história e o computador ainda ligado. Um... dois... três cliques: Banco de dados de desaparecidos, dezenas de crianças, o número vinha aumentando. Seus olhos encontraram a imagem na tela, os batimentos cardíacos aumentaram e ele segurou a respiração por um instante...

Contrastando com a pintura, na foto o menino sorria.

...Com sangue, eu sacrifico, realize meu desejo, com sangue...

A história estava incompleta.

"(...) é um estranho ódio que o fogo contém. Deve vir dos mal mortos. Os zangados." Valter Hugo Mãe

Temas: Assassinos Seriais – Casamento – Catástrofes – Possessão – Lendas Urbanas

Eliane Verica e Felipe TS
Enviado por Eliane Verica em 14/02/2016
Reeditado em 14/02/2016
Código do texto: T5543380
Classificação de conteúdo: seguro
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