À meia noite no Madame Satã - DTRL 25

- Ei cara, tiramos a sorte grande.

- Aonde?

- Ali, entrando no beco. - Diz um homem negro corpulento enquanto aponta em direção a uma bela mulher de cabelos pretos, lisos, usando um vestido curto, adentrando uma ruela mal iluminada.

- Com essa aí, eu quero me divertir também. - Complementa o seu comparsa. Um homem baixo, gordo e com uma lustrosa careca.

- No seu muquifo?

- Sem dúvidas meu chapa!

- Você a segue, enquanto eu pego o carro e nos encontramos na rua de cima.

- Fechado.

O gordo segue a jovem ao passo que o forte negro entra em um opala preto, partindo em disparada, afim de concretizar o plano.

- Ei boneca, para andar no meu beco, é preciso pagar o preço. - O gordo diz para a mulher.

- Estou apenas passando moço, não quero problemas.

- Tarde demais docinho. - Diz o gordo enquanto saca uma lâmina do bolso interior de seu jaleco.

O fio da navalha reflete a luz prateada da lua.

- Moço, pelo amor de Deus.

Nesse ínterim, o Opala freia bruscamente em frente aos dois.

- Entra no carro vagabunda! - O gordo grita.

A mulher chora muito enquanto é coagida pelo homem gordo a entrar no carro. Sadicamente, ele esbofeteia o rosto da mulher com as costas da mão. Sangue escorre no canto de sua boca.

- Ela é uma coisa não? - Diz o negro enquanto dirige.

- Sim, tiramos a sorte grande parceiro. - Responde o gordo enquanto passa a língua entre os dentes amarelados.

- Aonde estão me levando?

- Para uma festa docinho, e você é a nossa convidada de honra. - Os homens riem de forma terrível.

- Por favor moço, eu imploro, me deixem ir. Juro que não falo nada para ninguém.

- Não leve para o pessoal docinho, é a natureza da fera. Ou você caça, ou é caçado.

- Chegamos. - Diz o homem negro após dez minutos dirigindo.

- Escute boneca, você vai descer sem dar nenhum pio ou te corto ao meio aqui mesmo. – O gordo ameaça.

- Além do que, como você pode ver, a rua está deserta. Se alguém ouvir o seu grito, não vai se importar ou vai ter medo de até mesmo olhar pela janela.

Os homens conduzem a mulher para o terceiro andar de uma velha pensão caindo aos pedaços no centro de São Paulo. Já passa da meia noite e apenas alguns drogados e uma ou duas prostitutas perambulam pela rua.

- Eu vou primeiro. - Diz o homem negro agarrando a mulher.

- Tá certo brow. Vou dar uma agitada primeiro. - O gordo responde separando um pó branco na mesa da sala com um cartão de crédito.

- Prometo não demorar! E dá um empurrão na mulher, fazendo a cair no quarto. Ele desafivela o cinto e fecha a porta atrás de si. O homem gordo apenas observa enquanto aspira uma espessa carreira de cocaína.

Gemidos são ouvidos do quarto. Os sons da mulher excitam o gordo ao passo que a cocaína em seu organismo, eleva a sua adrenalina. Em instantes o gemido de prazer dá lugar ao de sofrimento e o fato de que a voz do seu parceiro é a origem dos gritos de dor o deixa em alerta. Ele vai de encontro ao seu jaleco e retira a lâmina de seu interior.

O homem gordo abre a porta e a sua frente, deitado sobre a cama, jaz o seu parceiro de crimes com a garganta retalhada. Nenhum sinal da mulher.

- Mas que diabos! - Pragueja o homem.

- Ela deve ter escapado pela janela. - Pensa.

Ao se virar, a mulher de cabelos pretos o encara. Tamanho foi o susto que a lâmina caiu de sua mão saindo do seu alcance. Instintivamente ele tenta golpeá-la, entretanto o seu soco é frustrado pela mão da mulher, que de forma inumana, o detém com extrema facilidade. Os olhos da mulher estão completamente pretos, sua boca tingida de vermelho sangue, sangue do seu comparsa.

- Quem é você? - Pergunta o gordo ainda com a mão presa a da mulher.

- Eu? Eu sou o seu fim. Estalos parecidos com o de gravetos sendo pisoteados reverbera no cômodo mofado, os ossos da mão do homem são reduzidos a fragmentos. A dor excruciante faz sua visão escurecer.

- A mulher ri.

- Sabe seu gordo asqueroso, até que gostei de algo que vocês falaram:

"Não leve para o pessoal docinho, é a natureza da fera. Ou você caça, ou é caçado".

Os gritos do homem passam desapercebido pela trépida vizinhança.

Ainda com os lábios manchados de sangue, a mulher desce com os corpos dos dois homens nas costas, os joga no banco de trás do velho opala e vai embora.

Um quarto de hora depois, o carro estaciona de frente a um casebre na região da Aclimação - São Paulo. Ela abre um portão de ferro e estaciona o carro na garagem, que fica em um pavimento inferior a casa. É uma garagem espaçosa, possui diversos carros de diversos modelos e fabricantes, assim como uma porção de motocicletas que certamente atenderiam os mais variados gostos.

Ela sobe um lance de escadas, que leva até a porta da residência, quando uma luz é acessa do lado de dentro.

- Mamãe? - Pergunta um jovem cuja aparência não ultrapassa os quinze anos de idade.

- Sim filho, tudo bem?

- Estou com sono. - Ele diz.

- Adivinha? – A mulher diz com um sorriso.

- Jantar? – O garoto pergunta.

- Sim! Mamãe trouxe o jantar.

- Você veio cedo mãe.

- Sim, eu tirei a sorte grande essa noite.

- E ... aonde estão? – O garoto pergunta.

- Em um Opala lá embaixo.

- Uma boquinha agora até que não cairia mal. - O jovem diz acariciando a barriga enquanto desce as escadas.

Pela manhã, a mulher de cabelos pretos prepara o café enquanto o seu ainda sonolento primogênito senta-se ao seu lado.

- Alimentou-se bem, filho?

- Sim mamãe.

- E o que fez com os corpos?

- Preparei-os no porão, junto com os outros.

- Sem bagunça?

- Nenhuma.

- Muito bem filhinho. Pelo tamanho deles, acho que temos umas duas semanas até uma nova caçada.

- Posso ir na próxima mamãe?

- Você está muito novo, filho.

- Mas mam...

- Prometo pensar a respeito. Suas habilidades ainda não estão fortalecidas o suficiente. Você sabe disso. – A mãe o interrompe.

- Eu acho que estou pronto. – O jovem retruca.

- Você se lembra que, no último inverno, tive um trabalho danado para limpar a sujeira que você fez naquele acampamento?

- Foi sem querer mãe. Acabei me deixando levar.

- Eram crianças filho, e você quase foi pego. Imagina lidar com adultos. Humanos são presas que quando se veem em perigo, tornam-se perigosas. É necessário ter cuidado com esses animais. Agora tome o seu café para não se atrasar para o colégio. Prometo pensar a respeito.

- Tá bom.

O jovem pega o seu material escolar e parte rumo a escola, que fica a poucos quarteirões de sua casa. Após a saída do jovem, a mulher lava a louça, acende um cigarro e desce para o porão da casa afim de inspecionar o trabalho do seu filho com os corpos.

Ela observa os cadáveres ressecados ornando as paredes do porão e dentre os incontáveis corpos, ela reconhece com certa dificuldade, os dois sujeitos da noite anterior.

- Meu filho está crescendo, ele estava faminto. - A mulher admira o trabalho do seu pequeno, enquanto expira uma fumaça branca no rosto esquelético do homem outrora gordo, caçado e morto há poucas horas atrás.

- Logo ele precisará caçar por conta própria. - A mulher conclui.

Os dias se passam e com eles a fome infinita de mãe e filho, aumentam a cada dia, instigando instintos seculares, despertando uma necessidade implacável, fazendo-a planejar a próxima caçada. Cabelos pretos, lisos e perfeitos, mini saia e uma blusinha destacando um volumoso decote, exibem um corpo intocado pelo tempo. A perfeita arma de caça, mortal e imbatível, pronta para fazer o que faz de melhor, o que foi moldada para fazer. Seduzir e matar. Ela precisa comer e mais que isso, precisa alimentar sua prole.

E em uma noite quente Paulistana, ela decide caçar. Vai até a garagem e dentre os veículos de sua coleção, retira uma capa acolchoada, exibindo um Trans Ann 1975 conversível, preto, brilhante, impecável. O ronco potente do motor traz à tona lembranças a mente da mulher. Recordações de uma caçada, onde conseguiu o carro e o guarda até hoje como um troféu. Uma relíquia.

Ela sai à noite pela cidade, procurando em bares, esquinas e boates a sua próxima refeição. Um letreiro em vermelho fogo desperta a sua atenção e o nome do estabelecimento a faz sorrir levemente.

- Madame Satã. - Ela sussurra retocando a maquiagem no espelho retrovisor do carro. Estaciona próximo ao lugar e vai em direção a entrada da casa noturna.

Com sua beleza hipnotizante, não teve dificuldade nenhuma para adentrar o lugar. O fato de levar um cigarro a boca, fazia diversos homens estenderem seus isqueiros afim de acende-lo. Muitos atropelavam-se para lhe pagar um drink, e talvez ganhar ao menos um sorriso seu como recompensa.

- Os garanhões não me interessam nesse lugar, tendem a ser muito populares. Preciso de alguém só, uma ovelha desgarrada. - Pensa.

Foi quando ela o avistou, sentado sozinho em uma mesa de canto, trajando preto e calça jeans, um jovem de não mais que vinte anos, bebendo uma cerveja. Ela sentou na mesa ao lado e começou a usar os seus truques. Em questão de instantes, o rapaz juntou-se a ela, derramando elogios sobre sua beleza ímpar.

- Sabe o que eu quero gato?

- Não. - Ele responde.

Com a mão direita, ela vai de encontro a virilha do jovem. Um gemido escapa de sua boca.

- Venha comigo.

O rapaz a segue sem dizer uma só palavra. O pobre coitado nunca mais foi visto.

A famosa boate passou a ser o lugar preferido de caça. Ao menos uma vez por mês, ela se deleita no safari urbano, escolhendo vítimas solitárias, que procuravam ali, espaço para dar vazão aos seus problemas, esquecer de algo ou alguém no fundo de um copo. Infortunadamente, muitos que procuravam uma espécie de escape da vida, acabavam por encontrar o fim. Literalmente.

A casa noturna, era cada vez mais frequentada. Diversos estilos se misturavam em uma mixórdia de tribos. O som alto, a fumaça de gelo seco e os flashes e as luzes, tornavam o lugar perfeito para ela. E lá, ela se movia como uma sombra. Desaparecendo aqui e aparecendo acolá, junto com os seus alvos, os seus troféus de caça. Homens, mulheres e as vezes casais, saciavam a fome de mãe e filho. É certo que ela tinha afinidade com o estilo musical que tocava no lugar. Bandas como Ira e Titãs apresentavam-se na casa regularmente, e ela se permitia apreciar de um bom rock n' roll entre uma mordida e outra.

Em uma dessas noites, a mulher havia seduzido um casal de homens para uma "festinha a três" em sua casa. Seu filho havia tirado nota máxima em matemática no colégio, e como apostado entre os dois, ela levaria alimento fresco para ele praticar. Qual foi a sua fúria, quando viu o lugar que havia estacionado o seu precioso Trans Ann de estimação vazio, apenas com alguns cacos de vidro, indicando um arrombamento.

- Meus amores, aconteceu um imprevisto e temo que teremos de adiar a nossa festinha. - Ela diz para os homens se despedindo.

- Mas por que gata? - Um deles pergunta.

- Depois nos falamos. - Ela responde. E vai em direção a um beco que fica na lateral do Madame Satã.

Após confirmar que não havia ninguém nas proximidades que possa ser testemunha do que virá a seguir, a mulher se concentra e seu corpo aos poucos começa a tomar uma outra forma, suas costas se curvam, sua pele escurece e é coberta por espessos pelos negros como a noite que recai na cidade. As orelhas se alongam, o nariz se achata e dentes pontiagudos escapam da boca que que espuma e saliva enlouquecidamente. Os sons de Guinchos estridentes anunciam o fim da transmutação e precedem o som do couro das asas que golpeiam o ar, deixando para trás, o vestido preto e o sapato de salto alto que ela trajava a pouco.

A criatura dispara o seu sonar em todas as direções enquanto fareja o ar em busca de pistas. O demônio alado vagueia pela noite de São Paulo a procura dos ladrões que roubaram o seu carro. Vinte minutos depois, ela finalmente os rastreia. Há o motorista no banco da frente, e uma jovem loira no banco de trás, bebendo e fumando.

- Se ela derrubou bebida no banco ou o queimou com a brasa, desmembrarei-a lentamente. - A semiconsciência do monstro pensa.

A fera voadora, sobrevoa o carro de modo furtivo, o volume alto do encobre o terrível som das asas. O piloto atravessa um farol vermelho e segue sentido a periferia da cidade sem se importar com pedestres ou semáforos. No momento que ele dobra uma esquina, é forçado a diminuir a velocidade bruscamente, por causa de um caminhão parado a sua frente, e neste momento, a besta investe.

A criatura dá um voo rasante e cai sobre a mulher, dentes afiados atingem o pescoço e injetam uma toxina na circulação da jovem que fica imobilizada. O motorista, ao perceber, saca da cintura um revólver calibre .38 e dispara contra a aberração, que desvia dos disparos como se pudesse prever os movimentos de seu suposto algoz. A jovem, entretanto, não teve a mesma sorte. Um dos tiros, atingiu em cheio a sua testa, espalhando massa encefálica por todo o estofado do carro.

A grotesca personificação do mal, guincha de forma ensurdecedora, o que desperta a atenção do caminhoneiro alguns metros à frente, que passa a assistir incrédulo a cena dentro da cabine pelo retrovisor do caminhão. Nesse interim, o ladrão leva as mãos nos ouvidos, afim de interceptar o som infernal que emana da garganta profana daquele ser demoníaco, porém, nesse preciso momento, a criatura investe com sua garra contra ele. A cabeça do rapaz quica alguns metros à frente. Sangue jorra das veias e artérias do pescoço, tingindo todo o carro de sangue, assim como a fera, que aos olhos do caminhoneiro, parece se regozijar com o plasma escarlate que jorra aos montes.

O caminhoneiro esfrega os olhos mais de uma vez afim de fazer com que aquela cena bizarra e surreal desapareça e quando os olhos avermelhados como as chamas do inferno o fitam, ele pisa fundo no acelerador sem olhar para trás. Uma vez mais, a transmutação acontece, a curvatura diabólica do monstro, dá lugar a uma postura humana e sinuosa. Em instantes, a mulher de cabelos negros, nua e com o corpo coberto de sangue, joga o cadáver decapitado, assim como a jovem com um buraco na testa, na via pública e parte a toda velocidade com o carro.

Ao chegar em casa, o fato que seu filho não foi recebe-la, lhe causa estranheza, ela deixa o carro cheio de pedaços de ossos cranianos, couro cabeludo e cérebro e vai ao encontro do seu primogênito. No quarto de seu filho, ela o encontra acamado, a febre o consome e seu corpo não tem forças para sequer levantar a mão ou abrir os olhos.

- Minha pobre criança. A fome é um oponente formidável para nós. Por um infortúnio, minhas presas escaparam hoje, mas prometo que a noite trarei algo para você comer. Nesse interim, alimente-se do sangue de sua mãe. - Ela diz enquanto rasga o pulso com a unha e derrama seu sangue na boca do garoto.

- A metamorfose consome muita energia, preciso descansar para caçar a noite. - Ela pensa após alimentar o filho com o próprio sangue.

O relógio marca exatamente 23:58, quando ela desperta do seu sono, muito enfraquecida, a mulher mal possui forças para se levantar. Entretanto, compelida pelo dever de mãe, ela se prepara uma vez mais. Trajando um microvestido preto, batom vermelho e salto alto, ela dispensa o uso de calcinha para não marcar o corpo. Suas armas de sedução estão prontas mais uma vez e após uma rápida visita no quarto do filho, ela desce para a garagem. Como o Trans Ann está imundo com restos humanos, ela resolve partir para o madame Satã no opala dos bandidos.

Alguns minutos depois, ela caminha de forma estonteante por entre as pessoas na pista de dança em busca de uma vítima. Ela observa cada presa em potencial, assim como as leoas espreitam os cervos no serengeti africano. No balcão, sozinho, um homem de meia idade com uns quilos a mais, bebe cabisbaixo, e nele ela encontra o alvo perfeito.

Ela senta ao lado do homem, acende um cigarro e sinalizando ao barman, pede:

- Uma dose igual ao deste cavalheiro aqui.

O homem não conseguiu disfarçar o espanto ao se deparar com uma mulher tão bela, ele tenta ajeitar a postura e alinha os cabelos com as mãos, procurando ficar mais apresentável.

Assim que a bebida é servida, ela toca o copo de sua vítima, brindando cordialmente.

Poucos minutos depois, o homem completamente seduzido, se afoga no vasto decote da mulher em um sofá em um canto escuro da casa noturna, apenas alguns flashes e uma pálida luz negra são as fontes de iluminação do ambiente. Talvez fosse a fome da mulher, ou a preocupação com sua cria que fez com que ela não percebesse a chegada de dois policiais no recinto, procurando pelo suposto motorista de um certo opala preto, roubado semanas atrás por dois bandidos inescrupulosos.

O segurança da casa, que conhecia de vista a enigmática mulher de preto, por uma ou duas vezes a viu saindo do carro. Somente quando ele aponta para o fundo do salão, entre os frequentadores dançando na pista ao som do RPM, ela os avistou. Sua adrenalina sobe e os instintos se aguçam, ela sente quase sente o cheiro de encrenca no ar.

- Vamos para a minha casa, meu amorzinho. - Ela diz para o homem pegando-o pela mão.

- Sim. - Ele balbucia.

A mulher o conduz no sentido oposto dos policiais, tencionando passar desapercebida pelo segurança que na tentativa de para-la, teve a mão esmagada por ela.

Ele grita de dor, chamando a atenção dos policiais.

- O que o coitado fez para você? - O homem diz entre um arroto e outro, visivelmente embriagado enquanto é puxado pela mulher.

- Cale-se! – Ela vocifera. Empurrando-o no banco traseiro do opala. Em seguida, senta-se no banco do motorista e liga o carro. O motor ronca cuspindo fumaça cinza pelo escape, no mesmo instante, um dos policiais sai da boate e aponta para o opala, que sai em disparada cantando pneu.

Dá-se início a uma perseguição frenética. A mulher mostra uma eximia pericia em dirigir, equiparada com a determinação dos policias que estão logo atrás dela, praticamente para-choque com para-choque. Ela corta algumas ruas na região central, que despontam na avenida brigadeiro Luís Antônio. Sem o que fazer, subir a Avenida Brigadeiro na contramão é sua única opção. Por um momento, ela pensa que despistou os policiais, entretanto pelo retrovisor, ela vê a viatura derrapando, fazendo praticamente 45 graus, o assoalho da viatura brilha na noite por causa das faíscas criadas com o atrito entre o solo e o metal e o barulho pode ser ouvido por diversas quadras.

- Ela está dobrando a Avenida Paulista, sentido consolação. - Diz um dos policiais para a central, no rádio da viatura.

O opala segue em alta velocidade cruzando vários sinais vermelhos, ziguezagueando entre um ou outro veículo ao passo que a viatura o persegue implacavelmente, tocando algumas vezes o porta malas da fugitiva. Em forma de barreira, sob o viaduto da avenida Doutor Arnaldo, as luzes dos giroflex de dois carros atravessados, bloqueiam o caminho de acesso à avenida Rebouças, caminho onde a mulher pensou que teria melhores condições de escapar.

Quatro policiais apontam suas armas em direção ao carro, que sem demonstrar sinal de redução de velocidade, avança rumo ao bloqueio. O choque do metal maciço do Opala contra as viaturas, jogam os policiais longe. Dois deles não mais verão esposas e filhos e pelo menos um deles, jamais voltará a andar.

A viatura segue ainda mais veloz atrás do carro fugitivo, que após a colisão, passa a soltar uma fumaça preta do motor, através de uma abertura no capô que quase se desprende da carroceria. Mesmo assim, ela não se dá por vencida e desce a Avenida Rebouças a mais de 120km/h, acompanhada da viatura em igual velocidade. O velho Opala canta pneu e derrapa subitamente, pegando a alça de acesso a Marginal do Rio Pinheiros. Inexoravelmente, a viatura continua atrás e a cada manobra, cada desvio que a mulher faz, é reproduzido com um sincronismo perfeito pela viatura. Chegando próximo a ponte da Avenida Jaguaré, o policial que ocupa o lugar do passageiro, dispara seguidas vezes contra a fugitiva. Um dos tiros atinge o vidro traseiro, estilhaçando-o, e outro disparo, atinge em cheio o pneu traseiro do lado direito do Opala, que bate no guardrail, soltando faíscas e pedaços da carroceria pela Marginal. O pneu estourado se desfaz completamente, deixando a roda metálica riscar o asfalto produzindo um som estridente de metal retorcido e, mesmo assim, a mulher não diminui. Somente um segundo disparo no para-brisas, faz a mulher perder completamente a direção. O carro bate de um lado para o outro entre as faixas da via principal da Marginal e, quando totalmente desgovernado, capota dezenas de vezes e avança direto em alta velocidade para o fundo poluído do rio Pinheiros.

Os policiais estacionam próximo ao rastro deixado pelo Opala. Parte do para-choque, lanterna, retrovisor e outros destroços, fazem uma trilha até as margens do rio. Um dos policiais saca uma lanterna e projeta a luz para a escuridão fétida, o facho de luz revela o capô do carro enquanto afunda, borbulhando, o farol ainda pisca algumas vezes, antes de desaparecer em meio a escuridão do Rio Pinheiros.

Os policiais permanecem por toda a madrugada no local, procurando pelos corpos por uma extensa faixa do Rio. Quando os primeiros raios de sol iluminam a cidade, um guindaste retira o carro da profundeza lamacenta. Assim que a carcaça encharcada do Opala toca o gramado, revela o banco da frente vazio e no banco traseiro, o corpo do infeliz que fora sequestrado na boate durante a madrugada.

Até hoje o crime encontra-se sem solução.

Mais cedo naquela madrugada.

Uma mulher vagueia pela calçada nas proximidades do bairro Jaguaré, Zona Oeste de São Paulo, quando um carro popular estacionado em frente a um condomínio, desperta a sua atenção por demonstrar não ter nenhum dispositivo de segurança. Ela força a maçaneta do carro, que logo cede a descomunal pressão de sua inumana mão. Uma rápida olhadela no espelho mostra seu rosto com algumas escoriações devido a fragmentos de vidro do para brisas, cabelos desgrenhados e um corte mais profundo no ombro. Com o restante de sua energia, ela se concentra novamente, dando início a transformação, só que desta vez, ao invés de uma criatura monstruosa oriundas das profundezas infernais, madeixas longas e loiras como uma cascata de ouro, surgem no lugar dos cabelos pretos. Sua pele clareia ainda mais, suas bochechas roseiam, suas feridas são curadas e seus lábios tornam-se mais volumosos e sedosos. Uma vez mais, suas armas de caça estão prontas. Impecáveis. Letais.

A mulher arranca os fios do contato embaixo do volante, faz conexões entre alguns deles e dá a ignição no veículo. Alguns minutos depois, já próxima a sua casa, ela estaciona em um posto para comprar cigarros e abastecer o carro com uns trocados que encontrou no console do automóvel. Enquanto o frentista enche o tanque, ela o observa fumando calmamente de frente a uma loja de conveniência. Dois rapazes que faziam um "esquenta" para a noitada, flertaram com ela.

- E aê neném, bora curtir a noite?

- Adoraria, mas vai ficar para a próxima.

- Aonde posso me encontrar com você, doçura? - Um deles pergunta.

Após soltar uma longa fumaça de cor branca pelos lábios volumosos, ela responde:

- À meia noite, no Madame Satã.

Tema: Criaturas Fantásticas.