NÃO DIREMOS ADEUS NOVAMENTE

Na geladeira, a sopa já adquirira uma consistência gelatinosa, após três dias. Mesmo depois daquele tempo, o vermelho da sua coloração ainda era intenso; ou ao menos a mim, parecia. Empurrei a porta de volta. Olhei para minhas mãos crispadas e para a bíblia abandonada num canto da sala acanhada e poeirenta. Certamente se eu a abrisse haveria um versículo que minha mente embotada trataria de encaixar naquela situação. Não o fiz.

Joguei-me no sofá já exausto pelo tédio. O medo começava invadir-me. Em algum momento não daria mais para disfarçar o mal cheiro com produtos de limpeza, desinfetantes, desodorantes, sei lá, essa merda toda. Um suor frio empapou minha camiseta. Pisei num botão e senti as pás do ventilador começarem a girar. O trabalho do pequeno motor era o único barulho que se ouvia. Aquele vento poderia espalhar o odor desagradável. Tremi sob as roupas.

Fui ao guarda-roupas e apanhei o que podia. Vetei cuidadosamente cada fresta, cada passagem de ar que pudesse denunciar-me. Algumas moscas já estavam grudadas aos vidros das janelas como se me implorassem passagem. Cerrei as cortinas nas caras dos pequenos monstros. Intrusas infernais.

Voltei à geladeira e apanhei a mão direita gelada. Calcei-a com uma luva encardida que ela manteve guardada desde aquele baile ridículo em que nos vestimos à antiga. Senti como se ela e não a mão, me guiasse até o fogão. Abri uma das bocas. O cheiro adocicado do gás de cozinha invadiu minhas (ou nossas?) narinas. Deveria agir rapidamente, pois não tinha certeza de quanto tempo levaria até que me sentisse entorpecido.

Na soleira da porta que dividia os ambientes parei por instantes para reparar a legião de pessoas (ou de fantasmas?) que dançava freneticamente. Ian Curtis (ou seu fantasma?), ao fundo, contorcia-se numa performance alucinada como se quisesse convulsionar. Ignorando-os, dirigi-me a ela e abracei-a com força. O corpo flácido de inchaço acolheu-me. Senti uma forte estocada e uma dor aguda atravessar meu abdome. Sem nenhuma raiva atirei a mão enluvada na vidraça. As moscas voaram em direção ao sangue, sedentas. A voz de um dos vizinhos reclamou de algo. Fui invadido por um vazio carregado de calmaria.

Duas figuras assustadoras nos ladearam, indicando um túnel que a nós pareceu muito frio e escuro.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 15/04/2015
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