Só Resta a Guerra

Por: Pedro T

O aspirante a oficial Paulo seguia o capitão Ricardo por uma vereda estreita, em uma corrida silenciosa, aspirando o cheiro da terra recém-molhada por uma forte chuva de verão, que se misturava com o de esgoto a céu aberto. O sol começava a se por, e os policiais tinham uma missão a cumprir. Executariam o traficante conhecido como Mocotó.
 
           Tal ação seria a cereja do bolo de uma operação que havia consumido meses para ser gestada: a de ocupação da Favela Mina do Mato, com a qual o capitão contribuíra decisivamente, tanto no planejamento quanto na execução.
 
            Ricardo era um lamurioso viúvo da Ditadura Militar. Com seu corte de cabelo escovinha e o ódio por comunistas servindo como cartão de visita, o veterano policial se enxergava como um Dirty Harry tupiniquim, um anti-herói injustiçado. Sua expressão corporal era a de alguém sempre de prontidão para arrombar uma porta a chutes.
           
            O militar acalentava um ambicioso projeto, o de integrar o BOPE. A operação que visava concluir com sucesso naquela noite, eliminando o último líder do tráfico no Morro da Bananeira, seria o item mais vistoso de seu currículo. O trampolim para seu maior salto.
 
            Além disso, ele empenhava-se em convencer seu subordinado Paulo, apelidado de “Alemão” por sua aparência nórdica, a tentar também o ingresso no Batalhão de Operações Especiais. Desejava ver o brilhante rapaz integrando as fileiras da guerra contra o tráfico em uma tropa de elite.
 
            Ao notar o desconforto do aspirante a oficial diante de práticas como a tortura, dizia irritado:
 
            – Aqui não tem lugar pra bobo, Alemão. Quando não é possível o entendimento, só nos resta a guerra. Matar o inimigo. É assim que funciona meu amigo. Não pode ter pena de vagabundo. Se não tá gostando, pede o boné.
 
            Mas o veterano não queria que Paulo desistisse. Suas palavras constituíam uma tentativa de psicologia reversa. Entretanto, nesses momentos, o jovem policial lembrava de uma canção entoada pelo BOPE, a qual dizia ser missão da tropa  “entrar na favela e deixar corpos pelo chão”. E limitava-se a balançar a cabeça negativamente em resposta às provocações.
 
            Ricardo acreditava que essa postura constituía apenas um detalhe a ser resolvido, ou o aspirante já teria largado a corporação. Para convencê-lo definitivamente, ganhar sua alma, bastaria confrontá-lo com a realidade das ruas, jogá-lo na batalha. Isso o convenceria de que naquela profissão era matar ou morrer. Por isso o recrutou para a ação. Seria seu batismo de fogo.
 
             Tratava-se de uma iniciativa arriscada, que não havia sido autorizada pelo comando a que o Capitão se subordinava. Na verdade, seus chefes sequer tinham conhecimento da incursão que ele levaria a cabo. Havia um motivo para isso: o veterano suspeitava que o coronel Fagundes mantinha negócios com o traficante, envolvendo armas e drogas.
 
***
 
            Os policiais aproximavam-se do alvo, subindo até o topo do morro pelas labirínticas ruelas da favela, caminhos enlameados que se estreitavam ainda mais nos trechos em que o entulho e o lixo os margeavam. As janelas multicoloridas dos barracos pelos quais passavam se assemelhavam a olhos observadores saídos de alguma pintura modernista, que acompanhavam o avanço daqueles intrusos em um território hostil. Os ratos gordos que faziam dos montes de detritos seu lar fugiam ao perceber a aproximação dos invasores.
 
            Com suas armas em punho, os policiais finalmente chegaram à maloca onde Mocotó se ocultava, no alto do morro, e postaram-se junto à porta do barraco, meio agachados. O esconderijo havia sido revelado por um fogueteiro após uma sessão de socos na boca do estômago e afogamentos.
 
             Por meio de gestos, o capitão indicou a seu subordinado qual seria o procedimento. Três segundos depois, o jovem arrombou a porta com um chute e se posicionou com a pistola apontada para dentro do casebre. Galgaram juntos os ásperos degraus de uma escada de cimento que ficava logo após a entrada quando o aspirante viu alguém surgir subitamente no alto, apontando-lhe uma arma. A reação foi automática e Paulo disparou contra o homem que o ameaçava, acertando-o na testa. O corpo do agressor caiu para trás e uma poça de cor escarlate começou a se formar com o sangue que vertia do rombo aberto na nuca, fazendo sua cabeça parecer uma bizarra ilha cercada por um lago rubro.
 
            No instante seguinte, eles ouviram o ruído de uma janela se abrindo, seguido do som de passos de corrida. Era Mocotó fugindo.
 
            O veterano rapidamente saiu e avistou o traficante tentando se embrenhar na mata que separava a favela do asfalto. Fez mira com seu fuzil e o acertou nas costas. Mocotó rodopiou como num passo desajeitado de balé e caiu.
 
            Os policiais acercaram-se dele, que bufava. Ricardo virou-se para Paulo e ordenou:
 
            – Alemão, finaliza esse vagabundo matador de criança.
 
            O aspirante, com uma expressão dura, mirou na cabeça de Mocotó, que implorava, cuspindo sangue, para que não atirassem no seu rosto. E disparou.
 
            Ao ver aquela cena, o capitão sentiu-se satisfeito. Tinha a certeza de que sua guerra contra o tráfico ganhara mais um convicto combatente.
 
            – Bóra ver o que esse merda estava guardando aí – disse, dirigindo-se novamente ao barraco. Seu subordinado o seguiu.
 
            Dentro da maloca, encontraram uma quantidade considerável de cocaína e um baú abarrotado de fuzis M-16 e AK-47, além de pistolas e farta munição.
           
            – Tá vendo Alemão, é por isso que vagabundo tem que morrer. O filho da puta já tava articulando alguma coisa em outro lugar e ia levar esse arsenal. O Fagundes deve mesmo ter alguma coisa a ver com isso – esbravejou o militar, diante do baú aberto a sua frente, de costas para o aspirante.
 
            O jovem era de poucas palavras. Por isso, quando ele respondeu, a surpresa de Ricardo foi dupla:
 
            – Capitão, estava pensando sobre o que o senhor me falou antes. Temos que matar todos os assassinos de crianças, inclusive os fardados?
 
            – Que pergunta é essa, enlouqueceu aspira? – respondeu enquanto se virava para encarar Paulo. Quando o fitou, percebeu nos duros olhos azuis uma raiva contida prestes a explodir.
 
            – Sabe por que pergunto? Por lembrar de um rapaz inocente assassinado há dez anos. O único crime dele foi ser um cagão e correr de um grupo de policiais vestidos à paisana.
 
            Ricardo percebeu que Paulo havia tomado certa distância e que o aspirante tinha em suas mãos a pistola ponto 40 do traficante morto na invasão do barraco. Notou também que as pupilas do policial estavam cada vez mais dilatadas, a íris azulada perdendo espaço para o branco. Sabia o que isso significava: o rapaz estava pronto para matá-lo.
 
            – Do que tu tá falando Alemão? – perguntou, tentando ganhar tempo.
 
            – Estou falando de um garoto de 17 anos que ia a pé para a faculdade quando foi barrado pelo senhor e mais alguns policiais. Vocês estavam fazendo uma ronda à paisana. O guri, morrendo de medo, saiu correndo, pensando que era um assalto. E o senhor, capitão, atirou nele pelas costas. O nome do rapaz era Giovani.
 
            O veterano, subitamente, sentiu-se paralisado. Sim, ele lembrava. Era uma mancha que acreditava ter ficado no passado. No início a recordação incomodava muito. Depois a morte foi se tornando banal, com tudo o que vira desde então, e as fortes cores daquele fatídico dia foram se desbotando. Até que se convenceu de que tudo havia sido um acidente de trabalho, um erro justificável diante das condições em que exercia sua profissão.
 
            – Eu já paguei por isso. O processo foi um inferno. Olha, Alemão, tu sabe como funciona essa porra. Estamos todos na mesma merda. Falta treinamento, equipamento, dinheiro. Falta tudo! Eu errei, admito, mas pode acreditar que desde aquele dia eu rezo todas as noites pelo garoto.
 
            – Não é o bastante. Você não pagou.
 
            – Mas, afinal, porque tu se importa tanto com isso? O que ele era teu?
 
            – Era meu irmão. Meio irmão. Nosso pai, o velho Maneca, aos 65 anos, teve que enterrar um filho. Sabe o que é isso?
 
            No exato momento em que o rapaz concluiu essa frase, Ricardo jogou o corpo para o lado enquanto tentava fazer mira no aspirante com seu fuzil. O jovem reagiu rapidamente efetuando dois disparos, que atingiram o policial de raspão no pescoço e ombro, derrubando-o.
           
            Um terceiro tiro destroçou a mão direita do veterano. Paulo então apontou a arma para a cabeça de seu chefe, que em meio a urros de dor vociferava:
 
            – Tu é um homem-morto, Alemão. Morto.
 
            – Aprendi muito com suas palavras capitão. Afinal, quando não há como se entender com o inimigo, precisamos matá-lo, não é? Guerra é guerra.
 
            E apertou o gatilho.
 
            Depois disso, armou cuidadosamente a cena do crime. Devolveu a pistola que havia tomado emprestada do traficante morto. Posicionou os corpos de modo a gerar a dedução de que o militar havia agido sozinho, matando primeiro Mocotó, e depois o outro ocupante do barraco após levar deste três tiros, acertando-o na cabeça no mesmo momento em que este efetuava o disparo fatal.
 
              E depois saiu, sob o olhar perscrutador das corujas, a passos apressados.
 
              Afinal, a guerra precisava continuar.
 
 
 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 13/04/2015
Reeditado em 18/05/2015
Código do texto: T5205542
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