Sob a Luz dos Holofotes
Ele não conseguiu acreditar quando ouviu os boatos sobre o Circo do Eremita. Diziam que estava para chegar na cidade na calada da noite. No compasso da melodia insectóide e do sereno abrasador.
Ninguém sabia como faziam. Diziam ser apenas um trailer. Era circo de verdade. Trazia em sua lona um retalho de cada história contada, um pedacinho de espetáculo e o suor de seus espectadores. Era fruto do esforço descomunal, e também da trupe que labutava dia e noite, sempre sorrindo. Uma família feliz.
Não eram todos que os viam chegar. Eram precisos olhos de lince. Olhos que viam além do que se pode ver, e ouvidos que ouviam além do que se pode ouvir.
André era felizardo. Aguardou durante três noites até ouvir o barulho da buzina. Um arranhado entre notas musicais e chiados de um alto-falante decrépito. Não era trailer, mas um belo carrinho de palhaço O farol rodopiava luzes de cores impensáveis. Talvez apenas ainda não nominadas. Cortou a estradinha de terra e passou pelo rapaz estagnado. O palhaço sorriu, apertou o nariz e a corneta soou. A fumaça deixada pelo escapamento tinha cheiro de tutti-frutti.
André correu, desesperado, e viu o carro parar. O descampado era abandonado. Em volta, lixo era companhia. Do carro, saiu o palhaço. E o trapezista. E a mulher barbada. E o domador de leões, junto da jaula, e do leão.
Ele viu tudo sair. Uma lona gigantesca sendo estendida. De um lado, os homens puxavam, do outro, a porta do carro cedia pano. Os retalhos eram couro. Amarelado e resistente. Uma única cor, para diferenciar. Era um circo especial. Circo de verdade. Voltou para casa enquanto os artistas lhe acenavam. Sabia que sua presença era aguardada ali, no dia seguinte. Chegou e dormiu, sonhando com luzes de néon e cheiro de pipoca.
No despontar da hora, seus olhos despertos encaravam o teto. Acordou cedo. As horas arrastaram-se eternamente. Para cada uma eram duas, e assim foi até a noite chegar. Avizinhou-se invadindo, sem pedir licença. Os holofotes perscrutavam as nuvens, como em busca de espectadores. Do céu não desceu ninguém, mas André estava lá. E não estava sozinho. O povo tinha ido, mas o povo certo. Não era para qualquer um. Quem estava ali era escolhido. Á dedo do palhaço. Não era circo como os outros. Era circo de verdade.
O show começou. Despretensioso como qualquer um começa. O primeiro a se apresentar foi o dito cujo. O palhaço rodopiava pelo picadeiro, dançando e sorrindo insano. Jogava umas bolas para o alto enquanto pedalava um monociclo. Levantou o dedo e fez um gesto em direção à plateia. Queria um convidado.
Uma mulher se levantou, caminhou como uma mariposa em direção à chama. O Arlequim saltou de seu transporte efetivo. Jogou as bolas para cima e elas desapareceram. Lançou os braços em volta da voluntária, sempre sorrindo, e pediu que sua assistente entrasse. Entrou o palhaço. O mesmo, trajado um vestido azul, com seus pompons verdes em forma de coque, enfeitando a cabeça alva. Trazia uma mesa e um serrote.
O artista principal agradeceu. Reverenciaram-se como iguais, sorrindo de uma brincadeira secreta. A mulher, infectada pela felicidade contagiante, deitou-se sem hesitar. O palhaço virou-se e enquanto todos piscaram, ele já era mágico. A capa preta escondia os losangos. Pediu para que os tambores rufassem, e levantou a ferramenta o máximo que conseguia. Pedia uma benção dos deuses. Ou do que quer que fosse complacente àquilo. O público aplaudiu, eufórico. O som morto e as respirações devidamente – e divertidamente – apreensivas; o serrote foi encaixado no meio da cintura. O mágico olhou para plateia, piscou e fez a mágica acontecer.
Começou despretensiosa, como qualquer mágica começa. Mas o sangue tornou realidade. A mulher que ria, agora gritava. A gosma vermelha escorria como cascata por entre os vãos. O palhaço sorria, satisfeito com o vai-e-vem. Na multidão, os berros eram de alegria. Olhos irrequietos, impossíveis de decifrar as nuances das ilusões. Sabiam que um mágico nunca revelava seus segredos. Terminou o trabalho com uma pose teatral. Abaixou-se, tocou o rosto do cadáver deitado na caixa, e a separou. O intestino despencou ao chão, emporcalhando-se na terra vermelha.
Aplausos!
A pipoca passando de mão em mão. O pipoqueiro alegre gritava seu produto aos ventos. Braços levantados como esporões em uma caçada. Era pipoca de verdade. Não precisava chegar na metade do pacote para cair, duro como gelo. E enquanto o show continuava, a plateia adormecia, para sempre.
O palhaço fez traquinagens, esguichou ácido na cara de outro convidado, que desesperado, corria passando as mãos no rosto. Caiu como uma caveira sorridente. Seria atração principal, se não fosse pelo domador.
O coliseu de lona ficou em silêncio. A roupa da figura austera era idêntica à do arlequim, a diferenciar apenas pela cor escura. Os pompons de cabelo alisados para trás lhe imprimiam um ar de seriedade. Falou em voz alta, e o respeitável público, pelo menos o que restara dele, escutou atônito. As palavras dançavam pela boca do locutor piruetando nos tímpanos dos ouvintes. Uma sensação letárgica os acometia, acalentando o cérebro conflituoso que insistia em profanar tolices sobre os acontecimentos da noite. Era errado, ele dizia. O que dizia não era verdade.
André ainda vivia. Absorvia cada experiência como um caco de (ir)realidade. Os acontecimentos se passavam em sua cabeça envoltos por uma névoa tênue, amaciando o que sentia e transformando o mundo em sonho. O tempo desacelerou quando o dedo em riste apontou em sua direção. Os olhos voltados para ele o impulsionavam, ansiosos pelo grand finale. Desceu as escadas e sentiu o coração pulsando em cada passo. Os alaridos eufóricos perdiam-se pela imensidão da reflexão auspiciosa. Saltou alguns corpos, dispostos pelo chão como um mosaico intricado. Um quebra-cabeça sem solução aparente. Nada muito sério, apenas uma palhaçada. Pulou uma senhora gorda que mais parecia um barril. Espumava feito um cão raivoso. Bolsas verdes se formavam embaixo dos olhos, que fitavam um horizonte intangível.
Chegou ao picadeiro com os músculos tremulando. Um arrepio passageiro, daqueles que pulam a roleta e viajam até o ponto final, alojou-se na espinha e ali permaneceu, contrariando seu conceito de passagem. O sorriso vermelho o recebeu com ternura. Loucura contrastava no poço que transparecia a alma. Eram olhos, mas também janelas. Estilhaçadas por pedras há muito lançadas. O palhaço (que era domador) esticou as mãos. Um banquinho preparado no centro da arena era o ponto de concentração. André subiu e suspirou, banhado pela luz dos holofotes. O circense se afastou, fez um sinal com os dedos, buzinou o nariz pela última vez, e esgarçou o sorriso. Os músculos da face começavam a se romper.
A assistente – que era o próprio em vestido azul – adentrou empurrando um carrinho. As grades enferrujadas esfarelavam-se pelo chão. Rasgando o pano antes mesmo de entrar, a fera bestial saltou imponente. A carne dos dentes ainda era recente. Cheirava a carniça. Corpos espalhados era um convite apetitoso. Mas o chicote estralando chamou sua atenção. Em pé, no centro, André era a atração. Os olhos injetados da fera miraram nos seus. Soturno como um gato, ele engatinhou em direção a presa. Cheirou o ar, ainda se perdendo nas distrações, e se aproximou, saltando em seguida.
O dilacerar selvagem espirrava o fluido bordô, corroborado pelas luzes disléxicas que sambavam pela casa. O sangue plácido era como uma pintura, em seus jorros espasmódicos de Van Gogh. André gritou, sorrindo, enquanto a vida se esvaia. Do buraco do peito, o coração foi arrancado, pulsando. A casca que restou ainda guardava alegria nos lábios. Os olhos abertos e rígidos jamais se fechariam. Gostavam de ver o mundo através de uma noite de sonhos.
O público em êxtase aplaudia. Saíram como se pulando amarelinha, saltando os corpos e contando os pulos. A satisfação insana estava bem estampada, delineada pela anormalidade das bocas esganadas. Fora uma noite brilhante.
Na manhã seguinte, os corpos despelados foram deixados no terreno descampado. Uma profusão de músculos em exposição, pois a pele havia sido arrancada com a precisão de uma faca cirúrgica. Daquele dia em diante, a tenda do palhaço ganharia mais pano. Seu carrinho colorido deixou a cidade antes da estrela fogo piscar sobre a terra. Ninguém se lembrava do acontecido. O caso gerou rebuliço durante certo tempo, e os doentes infectados pelo o que os médicos chamaram de "Febre Kuru”, morreram dias depois.
A cidade voltou a ser o que era antes, e com carinho os mortos eram lembrados. André não tinha família a quem recorrer, e ficou esquecido junto ao passado. Mas onde quer que estivesse, para ele não fazia diferença. O destino havia lhe reservado seu momento de brilhar. Fora uma estrela em uma noite de espetáculo, e isso lhe trouxera uma felicidade nunca alcançada. Afinal de contas, seu maior sonho era ver um circo, e não pouparam esforços em atende-lo. Ele havia visto um, mas não era um qualquer. Era circo de verdade.