Gugalanna - DTRL21

“E diziam que Gilgamesh junto com o teu amigo Enkidu haviam lutado e vencido o poderoso Gugalanna, cujos pés fez a terra tremer. Ele foi desmembrado e seus pedaços foram atirados em diferentes cantos do planeta. Uma de suas partes caiu no mar, dando origem a uma nova criatura, um semideus. Uma divindade antiga e esquecida por incontáveis eras, aonde apenas um povo sabe de sua verdadeira história e os meios para uni-lo. Um estranho culto profetizou a união do seu corpo e a transmutação em um ser ainda mais terrível. E nesse dia, sua sede por sangue e vingança trará o fim de tudo o que conhecemos e o início de uma nova era, aonde o povo da antiga Uruk se reerguerá sob o comando do seu Deus Rei. ”

Antiga profecia suméria.

Se eu não tivesse efetuado o resgate pessoalmente da vítima desse estranho naufrágio, seria cético sobre os relatos fantasiosos descritos. Mais de um ano se passou e minha curiosidade não me fez deixar de procurar essa insólita embarcação, e para isso, passei a utilizar até mesmo, recursos próprios, como meu avião mono motor e um pequeno grupo de patrulha pagos com o meu salário como piloto.

Nem mesmo os meus dezenove anos de corporação demonstraram não ser suficientes para tentar ao menos compreender o que aquela assustada jovem me disse naquela noite chuvosa de novembro. Para ganhar a vida, sou piloto de aeronaves a serviço do corpo de bombeiros, e após uma chamada afim de vasculhar o atlântico a procura de dois casais desaparecidos em uma lancha, pude, por um golpe de sorte, ver o metal reluzente da manta metálica que essa moça utiliza para atenuar o frio em meio ao mar aberto.

O ano era 1981 e me lembro como se fosse ontem, cada segundo daquele resgate e sobretudo, o depoimento singular e minucioso da única sobrevivente.

Tentarei reproduzir com o máximo de exatidão o que a jovem Alice relatou de forma metódica e inexpressiva, devido ao choque dos eventos que vivenciara e que ainda reverberavam em sua mente perturbada.

Alice, o noivo Miguel e um casal amigo, resolveram por alugar uma lancha de médio porte para comemorar a sociedade dos dois em um promissor escritório de advocacia. A ideia da liberdade conferida a quem navega pelo oceano sempre foi um dos sonhos de Miguel, e por isso ela havia feito o curso de pilotagem de embarcações e ansiava mostrar sua habilidade em navegação e pilotagem.

A criação da sociedade foi o evento perfeito para colocar em prática todo o aprendizado e após alugar um barco confortável e veloz, rapidamente o grupo saiu do Píer Mauá tencionando conhecer toda a costa do Rio de Janeiro. A permissão que Miguel tirara, o permitia avançar até cerca de oito milhas mar adentro, e lá estavam rasgando a vastidão oceânica enquanto bebiam e papeavam alegremente. Flávio gostava de provocar Miguel, sempre que podia lançava joguinhos mentais alimentados por testosterona e neste caso, muito álcool. Se Alice o tivesse impedido, talvez nada disso teria acontecido.

- Miguel, acho que você comprou essa permissão na internet. - Disse o Flávio.

- Por que parceiro? - Miguel responde.

- Pô cara, mal saímos da costa e tu já quer parar, olha lá, quase que vejo terra firme daqui. - Flávio disse de forma sarcástica.

- Já te falei que minha permissão só me deixa guiar até aqui. É a legislação, você mais do que ninguém deveria saber disso.

- Mas é um frangote mesmo, se algo acontecer, eu advogo por ti, o que acha? - Flávio disse sorrindo.

- Eu acho que o álcool está falando por você. Isso sim.

- Só mais um pouquinho amor, afinal ninguém está vendo e eu prometo não te processar. Alice disse entrando na brincadeira.

- Vamos lá parceiro, hoje é o nosso dia. Avance mais um pouco para termos a certeza de que ninguém irá nosso incomodar. - Complementou Flávio.

- Tudo bem. Miguel finalmente cede, com um semblante um tanto quanto apreensivo.

A embarcação sob o comando de Miguel ultrapassou os limites estabelecidos pela sua habilitação e já deixavam a marca de 19 milhas para trás. De fato, quanto mais avançavam, mais o tom azul exuberante do mar se acentuava e deixavam todos maravilhados.

- Que vista linda pessoal. - Comenta Alessandra.

- Sim, fantástica. - Miguel responde já visivelmente alterado pela bebida, chegando até a trocar algumas palavras de ordem.

Miguel lança as duas ancoras da lancha, a principal e a de popa. Logo o grupo começou a assar alguns pedaços de carne embalados por música pop, que tocava em um volume alto em um rádio portátil.

- Você sabe por que uso duas ancoras Flávio? - Miguel diz aos tropicões.

- Não faço a mínima ideia, amigo. - Flávio responde.

- É para o vento ou o movimento da água não girar a lancha.

- Você fez a lição de casa hein. Nota dez meu garoto! - Flávio diz rindo para Miguel.

- Ah, não me enche o saco. - Miguel responde, dando um empurrão no ombro de Flávio.

- Miguel, até gosto de rir de você quando está bêbado, mas se me permite, vou me juntar aquela bela jovem ali. - Flávio Disse apontando para Alessandra.

- Acho que farei o mesmo amigo, levarei a minha tripulante predileta, Alice, para uma visita ao interior do meu barco. - Miguel responde dando uma piscadela.

O fim de tarde colore o céu com belas cores, misturando tons de azul e laranja-avermelhado em meio ao pôr do sol. Junto do belo espetáculo, a brisa marinha, acompanhada do suave balanço que as ondas produziam na embarcação somados com a ingestão exagerada de bebidas alcoólicas, foi um verdadeiro convite ao mundo dos sonhos, o grupo acabou por dormir profundamente.

Um forte lampejo precedeu um estrondo que fez o barco todo tremer e acordou todos os tripulantes. A completa escuridão engolia a lancha e para qualquer direção que se observava, nada podia ser visto.

- É melhor voltarmos, uma tempestade está chegando. - Flávio disse esfregando os olhos.

- Sem dúvidas, acabamos desmaiando, não? - Miguel respondeu.

Ao virar a chave no contato, o som esganiçado do motor demonstra que a reserva de energia do banco de bateria se exauriu.

- Não, não, não. Pragueja Miguel.

- Eu falei que não deveríamos ter deixado o som ligado por tanto tempo. Complementa.

- O que vamos fazer? Pergunta Alice?

- Me deixe pensar um pouco.

Neste instante um raio atinge a água próximo a lancha, no breve momento que o céu ficou iluminado, uma gigantesca tempestade foi avistada pelo grupo há não mais que uma milha de distância.

- Estamos perdidos. Disse Alessandra já aos prantos.

Miguel gira a chave no contato uma vez mais. O motor não responde. Nesse ínterim a tempestade se aproximava cada vez mais.

Miguel abraça Alice. Flávio faz o mesmo com Alessandra.

A tempestade os atinge em cheio. A lancha sacoleja com a força do vento, os trovões rasgam o céu noturno com e a ventania surra a capota do barco com violência.

A tormenta seguiu furiosa por toda a noite, poderosas ondas invadiam o convés inundando boa parte do barco. Flavio que nunca foi religioso, rezava junto com a sua esposa ao passo de que Miguel consolava Alice abraçando-a. Eis que uma onda ainda mais forte, fez a lancha ranger como se fosse quebrar em duas.

- É o fim! Eu não quero morrer. Alessandra disse aos prantos.

- Tenha calma, tudo vai acabar bem. - Flávio tenta consola-la

- Estou sentindo o barco se mover. - Diz Miguel.

- Sim, acho que posso sentir. - Alice responde.

O primeiro raio de sol toca o rosto de Alice, que dormia nos braços de Miguel, anuncia que a noite terminou e que sobreviveram a fúria primitiva da natureza. Ela cutuca Miguel que logo desperta com um grande sorriso estampado no rosto.

- Não acredito! Sobrevivemos.

- Rezei tanto essa noite, pensei que não veria a luz do dia outra vez. Disse Alessandra.

- Essa foi por pouco. Agora precisamos dar um jeito de ligar essa lancha.

Alice e Alessandra se encarregaram de contar as provisões de água e comida ao mesmo tempo que Miguel e Flávio, traçavam planos para saírem daquele pesadelo aquático. As mulheres constataram uma cruel realidade. Suas provisões, na melhor das hipóteses, durariam três ou quatro dias.

- Essa banheira não tem rádio? GPS? Nada? - Alessandra pergunta.

- Nada funciona, aparentemente estamos em uma área de sombra. O grupo passou grande parte do dia executando frustradas tentativas de sair daquela situação, foi quando Flávio, que estava na proa tentando capturar algum sinal de celular foi quem avistou primeiro, seguido dos demais.

Um estranho navio destoava a linha do horizonte, com sua chaminé cuspindo uma densa fumaça branca a uma distância de 2 milhas no máximo.

O grupo começou a acenar freneticamente para o navio, entretanto após aguardarem um quarto de hora, parecia que o navio não se moveu um centímetro sequer.

- Precisamos nos aproximar. Disse Flávio.

- Sim, acho que vi alguns passaguás no compartimento na popa, e acho que se colocarmos algum tecido impermeável cobrindo-os, podemos utiliza-los como um remo improvisado.

- Esses aqui? Disse Alessandra.

- Exatamente.

Por um golpe de sorte, precisamente quatro passaguás em ótimo estado foram encontrados por Alessandra e após cobri-los com calça de nylon e outros materiais do mesmo tipo, o grupo pôs a lancha a movimentar-se lentamente e com certa dificuldade.

A medida que a lancha desengonçadamente se aproximava do navio, Miguel pode observar em detalhes a gigantesca embarcação.

- O que posso dizer é que um barco muito antigo e a chaminé indica que o que impulsiona o navio são um ou dois motores a vapor.

- Cabedelo. Tenho certeza que já ouvi em algum lugar. - Miguel conclui.

O casco de ferro extremamente enferrujado, dava uma impressão atemporal ao estranho navio e cada vez que o grupo se aproximava mais, a certeza de que o navio estava inabitado crescia cada vez mais.

- Olá! Gritou Alice.

Ninguém apareceu no navio.

- Se está soltando fumaça é porque alguém iniciou o motor. Disse Alessandra.

- Tem razão. Deve ter alguém aí, um navio de proporções colossais como esse, além do que, avistar uma pequena lancha como esta deve ser muito difícil. - Diz Miguel.

- Vejam, parece uma escada de cordas ali. Tenho certeza que conseguimos subir por ela. Observa Flavio.

- Flavio, esse navio deve ter uns seis metros de altura, uma queda dessa não deve ser nada agradável. Disse Miguel.

- Não esquente sócio, a sorte esteve ao nosso lado até agora, você acha que justo agora ela nos deixará na mão? - Responde Flavio se precipitando a escada improvisada. Em poucos instantes, Flávio venceu os seis metros de altura, desaparecendo dentro do navio logo em seguida.

- Flávio? - Alessandra o chama, após alguns minutos.

Ele não responde.

- Aonde será que ele se meteu? - Miguel pergunta.

- Estou ficando preocupada. - Alessandra responde.

- Venham, é seguro. Flavio grita da borda da embarcação.

- Você quer me matar do coração? - Alessandra diz aliviada.

Alguns minutos depois o grupo se encontra no convés do navio. A suspeita de Miguel sobre a idade do navio confirma-se, devido ao desgaste do madeiramento do convés e os acessórios antiquíssimos de navegação jogados ao léu junto há um mapa datado de 1942.

- Olá! - Grita Alice uma vez mais.

Apenas o silencio e um longínquo som de motor é ouvido.

- Vamos pessoal, deve ter alguém aí dentro. - Diz Flavio.

O grupo adentra a embarcação com cuidado, vasculhando cabine por cabine a procura de algum tripulante. Ao chegar na cozinha, pratos, talheres e copos estavam postos como se tivessem sido abandonados subitamente. Eles partem então para a cabine do capitão afim de encontrar ao menos algum vestígio de pessoas. Tal como a cozinha, a cabine jazia no mais crépido silêncio. O leme antigo estava travado e todos os mecanismos de controle do navio, parecia que não funcionavam há décadas. Em uma prancheta ao lado de uma porta, havia uma nota amarelada com itinerário do navio, tendo como origem a Philadelphia U.S.A e o destino, Rio de Janeiro.

- Esse navio transporta carvão. - Diz Alessandra.

- Ou melhor, transportava, veja a data desta nota. Quatorze de fevereiro de mil novecentos e quarenta e dois. - Responde Miguel.

- Mas que diabos faz aqui? - Pergunta Alice.

- Quem sabe. - Flávio responde dando de ombros.

Nesse interim, Flavio força a porta ao lado da prancheta quando subitamente algo cai do pequeno cômodo que servia de closet para o capitão da embarcação. E para o horror de todos, um corpo com as vestes parecidas com a de um capitão, tomba aos pés de Alice. O grito dela ecoa por todo o navio.

- Meu Deus.

- Acho que as condições marítimas preservaram o cadáver. Disse Flavio após analisar o corpo.

- Olhem em sua testa, provavelmente um disparo de arma de fogo. Complementa Miguel, enquanto revista o corpo do capitão.

Do antigo cadáver, ele encontra um maço de cigarros, o revólver que provavelmente foi utilizado para cometer suicídio, mas que devido a ferrugem é inutilizável e uma espécie de diário de bordo.

- Precisamos fazer algo com ele. Disse Alessandra.

- Vamos deixa-lo aonde encontramos, assim quando as autoridades nos encontrarem poderão investigar melhor o que ocorreu. Levaremos apenas o diário. Completa Alice.

- Acho que é melhor procurarmos algo para comer e para nos dar alguma iluminação, pois não tardará a escurecer.

- Tem razão sócio. Responde Flavio.

- Eu acho que vi em um armário próximo a cozinha, algumas varas de pesca e um garrafão com algo que parecia ser querosene, se este navio tiver quarenta anos de fato, não acharemos nada aqui para comer. - Complementa Miguel.

A suspeita de Miguel estava correta, havia de fato querosene e algumas varas de pesca prontas para uso. Alice rasgou alguns sacos de grãos e utilizando velhos cabos de vassoura, preparou alguns archotes e os espalhou entre a cozinha e os dormitórios no pavimento inferior ao passo de que Miguel e Flavio se empenhavam em pescar algo no convés. A noite começava a cair quando os homens trouxeram meia dúzia de peixes wahoo e um ou dois pequenos peixes espada. O produto de pesca foi logo preparado pelas mãos habilidosas de Alessandra, sendo que a refeição logo foi servida, com porções de sobra para ao menos dois dias. Revistamos dois dormitórios no piso inferior e decidimos que cada casal ficaria com um, assim devido ao cansativo dia, cada par foi para o seu quarto.

Miguel não tardou a dormir pesadamente enquanto Alice arrumava algumas coisas no cômodo, quando percebeu que havia ficado com o diário do capitão. A curiosidade fez com que ela se debruçasse sobre o caderno próximo ao archote que amarelava ainda mais aquelas velhas páginas com sua chama.

Enquanto discorria sobre as linhas do diário, um som baixo aguçou a audição de Alice, algo similar ao coaxar de sapos, talvez gorgolejos, ecoavam sutilmente de algum canto do navio. Alice no momento não deu importância ao ruído e no momento que seus olhos alcançaram a linha que iniciava com "Onze de Fevereiro de Mil Novecentos e Quarenta e Dois" sua atenção ficou concentrada naquele simplório manuscrito.

"Onze de Fevereiro de Mil Novecentos e Quarenta e Dois

Os marinheiros já carregaram todo o carvão para dentro da Cabedelo e estimo que dentro de dois dias partiremos sem maiores contratempos. Não posso deixar de registrar a sensação estranha que me atacou quando trombei com o grupo de taifeiros que meu imediato arrumou nas imediações do porto. Era um grupo esquálido, de feições rudes e pele escura. Todos tinham a barba por fazer e se meu palpite não faltar com a verdade, acredito que esses sujeitos tem o oriente como origem, e dado a suas vestimentas, Iraque ou Líbano como pátria mãe.

O fato é que não os mandei porta afora apenas por vaidade e para não demonstrar fraqueza frente a minha tripulação, mas que algo nesses sujeitos me assustou, isso não posso negar."

Nesse meio tempo, os volumes dos gorgolejos aumentavam, assim como a sua intensidade, mas mesmo assim a leitura prendia Alice de uma forma hipnótica. Ela seguia:

"Quatorze de Fevereiro de Mil Novecentos e Quarenta e Dois.

Saímos hoje cedo do porto na Filadélfia o clima está ameno assim como o mar está calmo, seguimos em velocidade cruzeiro. Novamente me sinto na obrigação de registrar algo me chamou a atenção quando passei por dois daqueles há alguns minutos atrás. Eles conversavam em um dialeto que jamais ouvi em vida, discutiam de forma austera e no momento em que me viram, dissimularam e voltaram ao trabalho. Minha impressão é de que está errado"

Os gorgolejos ficavam cada vez mais altos, Alice se indagava se o casal ao lado não estaria ouvindo o mesmo que ela. Seu conhecimento em biologia básica sabe que é impossível anfíbios que produzem sons similares, sobreviverem em água salgada, sendo assim ela se convenceu de que algum maquinário obsoleto possa ser o causador desse ruído e até mesmo o envelhecido encanamento de metal. E continuou a leitura atentamente.

"Quinze de Fevereiro de Mil Novecentos e Quarenta e Dois.

A minha suspeita confirmou-se hoje, dois marinheiros desapareceram sem deixar vestígios, o restante da tripulação está amedrontada e culpa os taifeiros estrangeiros. O cozinheiro também ouviu conversas em uma língua estranha e dois deles, um alto bem magro e um outro, baixo com um leve problema na perna direita que o faz mancar de forma desengonçada em passadas singulares, foram vistos pelo próprio cozinheiro durante uma caminhada enquanto fumava um cigarro, realizando um ritual arcano na proa do navio. A tripulação exige que eu faça algo. Sinceramente, não sei o que fazer, a única arma que possuo é um velho revólver calibre .32 e seis balas, nada mais, ainda ais que o restante da tripulação temem esses homens como o diabo teme a cruz, qualquer retaliação a este bando fica impraticável."

As linhas adiante, fizeram o coração de Alice disparar:

"Dezesseis de Fevereiro de Mil Novecentos e Quarenta e Dois.

Será que estou perdendo a sanidade? Juro que ouvi o coaxar de sapos em algum lugar do meu navio. Esses malditos estrangeiros estão me deixando louco. Hoje o dia foi estranhamento tranquilo, mal vi esses homens hoje. Será que tramam algo?"

Dezessete de Fevereiro de Mil Novecentos e Quarenta e Dois.

O coaxar infernal me acordou novamente essa madrugada. Quisera que esses sons estranhos fossem a única causa de meu temor. Terríveis gritos partindo dos alojamentos me fizeram saltar da cama às pressas e municiar o meu revólver.

Se toda essa sequência de eventos horríveis não fosse o bastante, o navio bateu em algo em mar aberto. Pude sentir algo rasgando o casco de metal. O que diabos será?"

A escrita a partir desse ponto estavam completamente tremula e algumas ideias estavam fora de ordem racional:

"Ao me aproximar, o coaxar ecoava por toda a embarcação, pude ouvir com clareza, vozes inumanas pronunciarem em conjunto as palavras que jamais ouvi falar e tampouco entendi do que se trata, mas que com toda a certeza jamais esquecerei:

Alla Xul! Alal... Elu...Usella Mituti Ikkalu Baltuti...Gugalanna! Gugalanna! Gugalanna!

Eu vi, juro que vi no que esses malditos se transformaram, e meus homens! Ó Deus misericordioso, o que fizeram com eles. O meu senso de dever me fez ir até a casa de maquinas. Foi lá que eles se alojaram e foi lá que aquela coisa rompeu o casco. E o cheiro, aquele odor infernal indutor de vômitos. Por sorte corri o máximo que pude e acho que consegui trancafia-los lá dentro...

Não é possível, estou ouvindo aqueles coaxares novamente, será que escaparam da casa de máquinas? Que tolo fui em pensar que uma simples porta prenderia aquelas coisas. Continuo escrevendo essas linhas por dois motivos: Para que quem encontra-las saiba do terrível e insano perigo que cerca este navio e para despedir-me, pois o que eu vi aquelas coisas fazendo com a minha tripulação eu não quero de forma alguma para mim, sendo assim, um balaço em minha testa, trará um final para a minha vida.

Á Posterioridade

Capitão Pedro Veloso da Silveira".

Assim que Alice leu a última palavra, o grito de Alessandra no corredor acordou Miguel aterrorizando-o.

- O que foi Alessandra? - Miguel pergunta.

- Flavio! Ele foi ao banheiro e até agora não voltou. Resolvi procura-lo e vejam o que encontrei. - Disse Alessandra mostrando estranhas marcas no chão.

As marcas, ou melhor, pegadas de algo que não eram nem pés e nem patas, deixaram um rastro molhado até a escadaria que leva ao porão e a casa de maquinas. Essas pegadas não mediam mais do que doze centímetros, o que leva a crer que o dono delas, seria algo ou alguém de baixa estatura. As palavras contidas naquele diário ecoaram na cabeça de Alice, mas por algum motivo, ela resolveu guardar para si, ao menos por enquanto o que havia lido.

O restante do grupo procurava Flavio por toda a parte, entretanto pareceu que ele simplesmente evaporou. O único lugar que não foi vasculhado foi a casa de máquinas, e esta, Alice a todo custo tentou evitar, chegando até a mentir dizendo que a porta se encontrava trancada. Alessandra encontrava-se inconsolável e enquanto Miguel e Alice traçavam um plano para sair daquela armadilha letal, ela continuava a procurar o seu amado pelo navio. Alice havia sido incisiva sobre a casa de maquinas, entretanto, o som quase inaudível dos gorgolejos ou coaxares chegou ao ouvido de Alessandra, e atraída pelo singular som, adentrou a casa de maquinas.

Seu grito abafado chamou a atenção do casal na cabine do capitão.

- Isso é loucura. - Disse Miguel coçando a cabeça.

- Miguel, preciso contar algo. - Responde Alice.

Ela o impede de ir atrás de Alessandra, já sabendo do trágico desfecho e relata o conteúdo do diário para Miguel, que ouve cada palavra, fazendo seu corpo suar frio.

- Precisamos sair daqui o mais rápido possível. - Exclamou Miguel.

- Eu acho que vi uma lancha movida a diesel na proa, coberta por uma lona, se pudermos lança-la ao mar e conseguirmos uma reserva de combustível, podemos navegar até encontrarmos terra firme. E segundo consta, o interior desse navio ainda abriga a carga de carvão, além de sair daqui, quero queimar este navio até as cinzas. - Disse Alice.

- Parece um bom plano. - Conclui Miguel.

O casal partiu para a proa do navio e encontraram a barca de alumínio em um bom estado, com um motor movido a diesel. Entretanto a reserva de combustível que foi encontrada próxima a cozinha, não se faz suficiente para navegar por tempo indeterminado, o que obrigou o casal a procurar por mais. Após vasculhar cada canto da embarcação, novamente o único lugar que restou a procurar, era a casa de maquinas.

O temor do que pode estar abrigado no interior daquele pavilhão faz o casal ceder por vários minutos. Infelizmente uma análise realista da situação atual, fez com que o combustível para navegar até serem resgatados, o item primordial da empreitada.

- Vamos levar archotes e aquela faca de cozinha que a Alessandra conseguiu afiar. Se tiver algo lá dentro, encontrará nossa resistência. - Diz Miguel.

- Miguel, me prometa que ao menor sinal de perigo, fugiremos sem ao menos olhar para trás.

- Você tem a minha promessa, meu amor.

Com os archotes em chamas e faca em punho, Alice abriu cuidadosamente a porta de metal. Uma lufada de ar malcheiroso causou um desconforto no olfato do casal, fazendo Alice vomitar um liquido ralo em seus pés. Miguel ajudou a sua esposa a se recompor e os dois finalmente adentraram a casa de máquinas. O lugar estava na mais completa escuridão, e a origem daquele odor malcheiroso de carniça permaneceu oculta.

Próximo há um amontoado de sacos de carvão, eles encontraram o combustível que procuravam com tanto afinco. Dois barris de ao menos cem litros ao lado de alguns galões de quinze litros. Resolveram por ignorar o mal cheiro e trabalharam com seriedade no transporte do combustível e na armadilha final que reduziria o navio a pó.

Alice Preparou com cuidado um estopim improvisado, utilizando um grosso fio de um saco de farinha de modo que embebedado com diesel, levaria cerca de três minutos para percorrer sua extensão e incendiar pouco mais que duzentos litros de diesel assim como a carga com centenas de toneladas de carvão. Miguel calculou que uma provisão de cem litros seria o suficiente para percorrer ao menos duzentos e quarenta milhas com tranquilidade e passaram a transportar rapidamente o combustível.

Restando apenas uma viagem para terminarem de carregar a lancha o horror se desencadeou de forma rápida e implacável. Ao se aproximarem da casa de máquinas, o horrível gorgolejo começou a ecoar no interior do lugar. Miguel precipitou-se para carregar o último galão quando algo que Alice não pode distinguir, o atingiu em cheio na cabeça, fazendo o tombar no chão.

Faltou forças para socorre-lo, quando os terríveis sons aumentaram mais e mais. No fundo do pavilhão, uma pálida luz azulada bruxuleava no compasso dos gorgolejos. Alice, primeiro avistou um par de olhos amarelados, em poucos instantes mais dois, em alguns segundos incontáveis olhos piscavam e gorgolejavam na escuridão daquele terrível lugar. Antes de atear fogo no pavio, Alice lançou o archote para próximo de Miguel na tentativa de verificar o seu estado, quando viu o contorno daquela estranha criatura carregando-o pelo pé enquanto mancava de forma singular. As palavras daquele velho diário a atingiu como um trem descarrilhado:

"O cozinheiro também ouviu conversas em uma língua estranha e dois deles, um alto bem magro e um outro, baixo com um leve problema na perna direita que o faz mancar de forma desengonçada em passadas singulares"

Por um instante, tudo o que Alice havia lido, se conectou como um quebra cabeças completo, ela se indagou por um momento se aqueles olhos, aquelas criaturas teriam alguma relação com os estrangeiros que o Capitão havia descrito com tanto pavor? Será que essa criatura é o homem descrito?

Um sentimento primitivo de sobrevivência fez com que ela largasse o archote em cima do estopim e saísse em disparada com o galão de diesel no colo. Lágrimas corriam pelo rosto de Alice enquanto se afastava daquela sala de morte. Os gorgolejos a acompanhavam a cada passo dado e por um milagre, conseguiu alcançar a lancha e desce-la no mar com o combustível necessário. Alice puxou a corda que da ignição no motor e após cuspir uma fumaça cinza e lançar o odor de diesel no mar, a lancha se afastava do navio Cabedelo. Alice contou mentalmente os minutos até o incêndio e a explosão, entretanto um som terrível que marcaria sua vida para sempre anunciou que seu plano fora frustrado. A água em volta do navio começou a agitar-se e dessa vez um gorgolejo infernal de uma criatura que deveria ter proporções titânicas ecoaram de forma antinatural.

Mas foi o som seguinte que aterrorizou Alice completamente. Uma espécie de gargalhada diabólica de uma garganta que inumana, ecoava em tom de escárnio e deboche. Alice pilotou a lancha sem olhar para trás por alguns dias, sem comer, beber ou dormir até que por uma sorte do destino, encontrei-a a quase centro e cinquenta quilômetros da costa.

Me amaldiçoo-o por não ter levado comigo a única prova material da fantasiosa história de Alice. Talvez se tivesse pego aquele artefato, as pessoas acreditariam nela e eu conseguiria mais recursos para levar essa história ao fim. A verdade é que existiu um navio Cabedelo e o seu paradeiro encontra-se até hoje desconhecido. O fato é que apenas persigo um fantasma de relatos de uma mulher que hoje encontra-se psicologicamente instável. No entanto eu tenho plena certeza do que vi no momento do resgate e apenas um infortúnio ou um desleixo de minha parte fez com que eu ignorasse e deixasse para o oceano desaparecer em sua vastidão, uma boia com a inscrição "Cabedelo" no canto da lancha. Estou convicto de que o navio está em algum lugar no meio da vastidão oceânica caçando náufragos desprevenidos com seu gorgolejo diabólico.