Rio de Cristal 2

O pergaminho narra a história da batalha que ali se travou. A aguerrida luta de um homem contra uma besta, e que ficou por muito tempo impressa na paisagem.

"Diante da recusa do cavaleiro em encerrar a sua campanha pela justiça e verdade pelas terras do Imperador, eis que o mesmo encomendou ao feiticeiro a criação de um golem que teria um único propósito: Destruir o que o cavaleiro mais amava...

E de todas as coisas que ele amou, e que o monstro destruiu em seu caminho, como as florestas, os rios e as montanhas... havia um último e maior tesouro a ser alcançado. A sua filha.

E foi então, que finalmente se encontraram no último vale que separava o monstro do seu maior amor. Pois que o cavaleiro não poderia fugir para sempre tendo a filha nos braços... Por que para onde ele ia, o monstro ia atrás, e por onde o monstro passava, nada ficava de pé.

E justamente ali, na confluência de três rios caudalosos, num vale profundo, o cavaleiro o encurralou! E correndo em direção àqueles tentáculos medonhos e potentes, o cavaleiro o enfrentou! Primeiro, escalando, estudando e prevendo cada movimento... enquanto os rios, atendendo ao chamado daquele cavaleiro que manipulava as águas, enchiam-se furiosos com ondas que assolavam a criatura.

As ondas revoltas se confundiam com os braços do monstro. E arrebentavam nele como flocos brancos de nuvens, porque começavam a se congelar.

Mas o golem era poderoso, e o gelo não o detinha! E então uma chuva começou a surgir, também convocada por aquele que dominava a fluidez da natureza... E dessa chuva brotaram lágrimas brancas em cristais de gelo, e em breve o campo verde da paisagem e tudo ao redor dele estavam brancos como mármore. E dessa tentativa de esfriar o tempo e as águas, o embate se acalorou! O chão tremeu, e o vento soprou, porque a criatura era titânica e pavorosa, e um urro seu derrubava as árvores e assolavam as pedras. Mas mesmo assim, ela não seria ignorada, porque ameaça aquilo que de mais caro ele tinha.

E choveu, e nevou, e todo o inverno do mundo desabou ali naquele dia, em meio ao fogo quase inenarrável da batalha... Até o rio se tornar cristalino feito vidro... e o imenso ser descobrir-se preso nas garras do gelo...

Tudo tinha acabado?

Estava livre a criança para seguir pelos caminhos da existência, sem ser perturbada ou perseguida?

Ainda não! Pois que o gigante era poderoso, e rompeu o gelo espatifando-o, estilhaçando-o, como se não significasse nada!

Diante daquela visão, diante da tempestade que caía branca como uma alma, e do sol verde-claro que tentava espiar por entre as nuvens, tentáculos inquietos se retorciam em meio a gritos e fúrias! E então o cavaleiro percebera que não tinha escolhas....

Ele convocou todas as águas que o rodeavam, da terra, do céu, do ar... e em meio à tempestade de frio que despencava como ondas de águas em rios caudalosos, e golfadas de ventos gelados como cortinas transparentes em gotas de chuvas como setas de gelo... Ele envolveu o monstro num abraço gelado, que se enrijecia a cada passo seu em direção à criatura.

De repente, tudo parou... apenas o assovio gelado e distante dos ventos nas montanhas... e a criatura, num esforço descomunal de quebrar o gelo... E o cavaleiro, num esforço igualmente insuportável, de mantê-lo...

Quem, dos dois, fechasse os olhos primeiro, seria o perdedor. E então, o gelo debaixo dos pés do cavaleiro tornou-se um pouco mais turvo. A imagem por trás do gelo, aos pouco ficou mais indistinta... E finalmente, a criatura fechou as suas enormes pálpebras...

As nuvens começaram a ir embora. O sol fraco da tarde refletia-se na escultura polida de repente lançada ali, como o negativo de uma foto tirada de uma batalha há muito esquecida...

O tempo trouxe curiosos... Pessoas vieram observar aquela estranha cena... Um homem imóvel, de olhos abertos, diante de um monstro preso em gelo...Porém, logo perceberam uma estranha característica: O gelo não era frio, e nem se derretia ao sol! Ele jamais se derreteu! Havia se tornado tão duro quanto uma pedra...

O corpo do cavaleiro, embora não estivesse congelado, também estava imóvel... E assim ficou, até que a sua pele e a sua carne se desfizeram no tempo... E o seu sangue, também petrificado, desmanchou-se ao soprar do vento, nas décadas seguintes... Apagando para sempre a sua imagem dali...

O tempo passou, e as pessoas daquele vale passaram a chamar o gelo perene de cristal de quartzo. E ao sangue do cavaleiro, de joias de rubi.

E é por isso, que há tantos e tão abundantes cristais de quartzo pelo mundo, e tão poucos e valiosos rubis.

Porque aquilo que se tem pouco, muito vale.

Assim como a coragem, a verdade e a justiça".