COMO CRIANÇA
(Carlos Henrique Fernandes Gomes)
(Carlos Henrique Fernandes Gomes)
O que se dá é que as crianças logo que se
transformam em gente grande fingem não
mais acreditar no que acreditavam.
Monteiro Lobato
Férias! Que felicidade! Como é gostoso tirar férias e viajar com a família! Não, não! Não é a miiiinha famííííília daquele gesto largo em torno da árvore genealógica e seus agregados! Falo da minha família: esposa e filha!
Depois de sei lá quanto tempo conseguimos tirar férias juntos, reservamos vaga numa pousada no meio do mato, fizemos as malas e pegamos a estrada. Que mágico! A cidade ficando pra trás, as neuras ficando pra trás, as preocupações ficando pra trás, as buzinas cada vez mais longe até sumirem, o tempo cada vez menos meu dono, nosso momento cada vez mais perto, nossa alegria cada vez mais alegre, o descanso logo ali! Logo ali!
Numa estrada de terra, uma pousada simples, um lugar lindo, com passarinhos, borboletas, céu azul, árvores, arbustos, plantas, terra pra pisar descalço, grilos, vaga-lumes de noite e estrelas, e ar puro! Ar puro! Um paraíso! Tinha até um pomar!
Não programamos nada para o dia seguinte, mas o universo da pousada conspirou ao nosso favor: Gabriela, minha filha, viu uma vara e quis pescar, eu vi uma pipa e quis soltar, Clara, minha esposa viu um livro e quis ler. Pedimos emprestado para a dona da pousada - com aquela pele de gente tostada pelo sol, rugas mais fundas quando sorria, faltando alguns dentes, rosto magro como ela toda, vestido marrom, lenço na cabeça; nada demais, se não fosse aquela presença que faz a gente se sentir em casa – pedimos tudo emprestado e ela nos cedeu com recomendações:
— Cuidado cum esse papagaio, moço, qui é do meu fio, a senhora não vá fazê oreia no livro da minha fia e a mocinha tome muito cuidado cum a vara di pescá que é do meu marido! Intenderam?
— Entendemos!
— Intão oceis leva essa cesta aqui prum piquinique: torta di frango, suco di maracujá, prá fica todo mundo carminho, e essa rapadura pra adocicá a vida. Toma aqui a tuaia xadrêis prá forrá o chão. Ôceis vão pelo caminho da isquerda e quando chegá na praca “área de pesca” é só entrá na tria.
Pegamos o equipamento de diversão e o almoço - pesado, aliás - e fomos pelo caminho indicado até a margem de um rio de água calma e transparente. Clara sentou debaixo de uma árvore e abriu o livro, Gabi caçou suas minhocas, colocou uma no anzol, com cuidado, e já que ninguém precisava de mim, deixei a pipa subir na mão do vento.
Como andar de bicicleta e outras poucas coisas, empinar pipa a gente não esquece; mas fica enferrujado com o tempo, é verdade. Aos poucos as memórias foram acessadas e comecei a fazer manobras radicais, com puxõezinhos - tipo quando a criança quer alguma coisa e puxa a saia da mãe – e dando um pouco de linha, a pipa começa a rebolar. Aí você escolhe o lado que quer que ela vá e puxa a linha e a pipa vai, com a rabióla traçando uma reta no céu, pra lá ou prá cá ou prá baixo, ou de enviesado, e pra parar é só dar um pouco de linha e segurar.
Dei mais linha e a pipa foi longe, longe, até ser um pontinho no azul do ar e cruzar o céu de um lado ao outro. Como eu queria ser assim! Parecia criança gritando exclamações a cada atravessada que a pipa dava de uma ponta à outra do horizonte!
— Paiê! Assim os peixes vão embora!
— Amor! Num consigo me concentrar no livro.
Elas recolheram minha linha e eu não estava mais lá riscando uma reta no céu; só a pipa estava. Voltei a ser adulto, achando aquilo normal...
Clara sorria. Meu Desus! Aquelas covinhas na bochecha...
— Que livro é esse?
— O Pica-Pau Amarelo do Monteiro Lobato.
— Eu assistia na TV quando era criança. Sabia que ainda era em preto e branco?
— Sabia sim; eu também assistia. Imagina só que a Dona Benta recebeu uma carta do Pequeno Polegar dizendo que todo o mundo da fábula queria ir morar lá no Sítio!
— Todos eles?
— Todos, até os heróis e monstros da mitologia! Acredita?
— E o sítio era grande assim?
— Não, mas a Dona Benta comprou duas fazendas vizinhas. O resto ainda não sei.
E continuou lendo e sorrindo. Havia tanto tempo que ela não conseguia ler um livro! Minha atenção voltou-se para Gabi que acabava de levantar a vara com um lambarizinho se debatendo com a boca enganchada no anzol. Conheço tanta gente que passa a vida se debatendo com a boca no anzol... Ela pegou o peixinho com as mãozinhas gordinhas e começou a tirar o anzol da boca dele.
— Quer ajuda, amorzinho?
— Não papai, tudo bem. Eu sei fazer isso.
Soltou o peixe e devolveu ele na água, pegou outra minhoca e pôs no anzol com habilidade de pescadora veterana.
— Gabi, onde você aprendeu a pescar?
— Com o moço da televisão, papai.
— Moço da televisão?
— Ela adora aquele programa de pescaria que passa sábado de manhã.
— Ah, sei. Sábado de manhã, né? Sei qual é.
— Num se preocupa amor, ela ainda é a sua menininha.
— Mas ela já sabe pescar aos seis anos! E aprendeu na TV! Só falta ela tá namorando! Que risadinha é essa, Clara? Vocês estão escondendo alguma coisa de mim?
— Bobinho! Você num sabe nem da metade!
Puxa vida! Como a Clara é linda! Ainda está linda! Não havia me dado conta de como ela protege a família ensinando a viver e deixando viver; esse é o seu estilo! E continua linda, com seus calebões castanhos volumosos caindo pelos ombros até o meio das costas, a carinha de sono – ou seria tranquilidade, serenidade? –, as covinhas na bochecha quando ela sorri, e os vincos nas poucas vezes que ficou brava, o andar agateado, o bom gosto discreto de se vestir... Que mulher linda!
Enquanto isso a Gabi fisgou outro, tirou o anzol da boca do peixe e devolveu ele no rio, espetou outra minhoca e jogou o anzol na água. Eu precisava conversar mais com a minha menininha, conhecê-la melhor. Com seis aninhos já assistia programas de pescaria e eu achando que ela só assistia desenho!
— Relaxa amor. Ela ainda é a sua menininha. E fica calmo, tá, que ela ainda não namora.
Clara continuou com o livro e eu continuei olhando pra ela. O livro apoiado na barriga subia e descia de leve com a respiração calma; acho que foi por isso que me apaixonei por ela: essa calma toda.
— Que foi!?
— Só tava te olhando...
— Olhando tipo o quê?
— Olhando tipo... você...
Ela balançou a cabeça de um lado pro outro sorrindo, com as covinhas nas bochechas, e continuou a ler. Olhei pra Gabi. Ainda bem que é a carinha da mãe; só os cabelos pretos puxou de mim. Sorriso fácil, sabe se comportar em sociedade e... deve ser curiosa, não sei bem! Quanta coisa não sei sobre essas duas!
Voltei a voar com a pipa riscando o ar azul de lá pra cá, de cá pra lá. Aquela pipa era bem feita e a rabióla comprida fazia as manobras serem mais fáceis e o vento estava robusto e constante. Comecei a viajar na possível história das pipas, dos quadrados, dos papagaios, que deve ser coisa de chinês; eles que inventavam essas coisas estranhas há uns tantos mils anos atrás. Outros deviam ter usado essa obra de engenharia para tantas coisas, e as imagens surgiam na minha cabeça:
Egípcios empinando pipa com as oferendas para os deuses penduradas na linha, cientistas europeus e americanos usando a pipa para descobrir as teorias da física, da eletricidade, do para raio, as primeiras máquinas voadoras - pipas com motor -, os moleques da rua de baixo com cortante na linha, que vinham cortar a minha, cortar o meu sonho de voar...
Aí as barrigas começaram a roncar! Recolhi a pipa, a Clara terminou o último capítulo do livro e a Gabi enrolou a linha, prendeu o anzol, encostou a vara numa árvore e devolveu as minhocas que sobraram no mesmo buraco que havia cavado. Lavamos as mãos no rio, estendemos a toalha xadrez debaixo de uma árvore, abrimos a cesta de piquenique com torta de frango, suco de maracujá, prá ficar todo mundo calminho, e rapadura, prá adoçar a vida. Um banquete!
Sensacional: a torta deliciosa e o suco docinho, o vento refrescava e o sol, entre as folhas das árvores, fazia pontos de crochê na toalha. Sensasional, não fosse...
— Paiê! Por que você trouxe formigas? — Gabi gritou. Quase engasguei.
— Não fui eu, não!
— Então quem foi? — ela ergueu seu pedaço de torta acima da cabeça.
— Não sei, mas dessa vez não fui eu!
Esses monstros invadiram nosso mundo – ou o contrário, não sei bem. Eu precisava proteger minha família daquele terror! Fiquei de pé e levantei acima da cabeça meu pedaço de torta e meu suco, decidido a não me render! Gabi fez o mesmo e a Clara nos seguiu, mas não era o suficiente. Aquelas criaturas invadiram nossa toalha e ameaçaram nossa torta de frango, nosso suco de maracujá e... quase chegaram na rapadura! Enfiei o pedaço de torta na boca e peguei a cesta colocando-a no ombro. As formigas invadiram toda a toalha, oferecendo um perigo real à nossa posição. Eu precisava assegurar uma retirada sem riscos; Clara e Gabi em perigo, o piquenique invadido! Precisávamos bater em retirada.
— Segura aqui — e coloquei a cesta no ombro da Clara — e segura aqui. — e dei meu suco para a Gabi segurar e saí correndo pela trilha afora.
— Já volto!
— Aonde você vai, paiê?
— Sejam corajosas! Já volto!
Corri a trilha planejando nossa retirada da frente de batalha e fazer o piquenique em outro lugar. Em menos de dois minutos voltei carregando uma madeira quadrada, passei correndo por elas e não pude evitar a cara de i’m the best, I know, entrei no rio, coloquei a madeira na água e me posicionei de modo a segurá-la para que a correnteza não levasse nossa mesa. Fiz sinal para elas entrarem na água, uma olhou para a outra e pra mim.
— Vem logo, tô com fome.
— Que tábua é essa?
— A placa de “área de pesca”.
— Não acredito! — a Clara ficou arrepiada com a água fresca. Puxa vida! Como ela é linda! Ainda está linda!
Os peixes nos rodeavam querendo a almoçar conosco; o cardápio deles: migalha de torta de frango. Gabi adorou a companhia e fazia de tudo para soltar bastante farelo na água. E quando pensávamos que o perigo acabou...
Olhamos para a margem ao mesmo tempo e vimos um homem com bigodes enormes, pose de açucareiro – que de doce não devia ter nada -, calças jeans, botas pretas de couro, camisa azul e o chapéu fazia sombra nos olhos. Aquela aparição levantou a aba do chapéu e com expressão severa perguntou:
— Por acaso essa mesa não é a minha placa de “área de pesca”?
— É, é, é sim senhor. — gaguejei.
— É que as formigas estavam nos atacando. — Clara respondeu, sem jeito, quase sem calma.
O homem acertou os bigodões, levantou um pouco mais a aba do chapéu e disse:
— Sabiam que vocês não podem tirar a placa do lugar?
— Sim, sim! Peço desculpas por isso, mas estávamos em perigo. – tentei descontrair.
— Preciso colocar a placa no lugar.
— O senhor quer almoçar torta de frango com a gente? Ah, e tem rapadura também, ó! — Gabi, com sua incomum habilidade nas relações públicas, sorriu para o homem de bigodões mostrando a rapadura. Eu não resistiria a um convite desses porque adoro crianças, mas aquele homem com certeza não! Tive medo. Os bigodões do homem se levantaram num movimento de bochechas causado por um sorriso e o medo escorreu correnteza abaixo.
— É claro que aceito, mocinha.
E suas botonas de couro ficaram deformadas debaixo da água, lavou as mãozonas no rio, enxugou na própria camisa, sorriu para nós, pediu licença e pegou um pedaço de torta. Enquanto mastigava, os bigodes dançavam, engraçados.
— Uma delícia! Foi a senhora quem fez?
— Não senhor, foi a dona da pousada.
— Bem que eu senti um gosto familiar. Ela é minha esposa. – e os olhos até brilharam na sombra da aba do chapéu.
Um casal diferente! Ela com uma presença simples, ele imponente, falam idiomas distintos – ou quase –, ela de altura normal, ele botava medo. Conversamos e rimos até não sobrar nenhuma migalha da torta, nenhum farelo da rapadura e nenhum gole de suco.
— Prezo um homem que protege a família. – fiquei sem jeito. – Vocês duas tem sorte. – elas ficaram sem jeito – Bom, agora preciso levar a mesa de volta. – ele ficou sem jeito.
Enquanto recolhíamos as coisas - livro, pipa, vara de pescar, toalha xadrez, cesta – pensei no que o homem de bigodões disse. Tenho quarenta e uns, a Clara também, somos bem sucedidos nas carreiras, adiamos a Gabi até chegarmos a esse nível, mas depois de ouvir aquilo do homem de bigodões senti a necessidade de tomar algumas decisões. Mas só depois das férias!
Chegando ao final da trilha, vimos que algumas pessoas passaram da entrada com suas varas de pescar, olhando para os lados, à procura da placa.
— Vou distrair eles enquanto vocês penduram a placa no lugar. — abaixou um pouco e perguntou pra Gabi: — Você me ajuda?
Correram até os pescadores perdidos – ele era desengonçado e ela uma gracinha -, puxaram assunto, conversaram um pouco e indicaram o local. Os pescadores vieram na nossa direção e olharam para nós, olharam para a placa pingando água, olharam para nós, olharam para a placa pingando água:
— Como não vimos a placa?
Fomos até onde estavam o homem de bigodões e a Gab e rimos até a barriga doer. Acho que a última vez que ri assim ainda era criança.
Depois de sei lá quanto tempo conseguimos tirar férias juntos, reservamos vaga numa pousada no meio do mato, fizemos as malas e pegamos a estrada. Que mágico! A cidade ficando pra trás, as neuras ficando pra trás, as preocupações ficando pra trás, as buzinas cada vez mais longe até sumirem, o tempo cada vez menos meu dono, nosso momento cada vez mais perto, nossa alegria cada vez mais alegre, o descanso logo ali! Logo ali!
Numa estrada de terra, uma pousada simples, um lugar lindo, com passarinhos, borboletas, céu azul, árvores, arbustos, plantas, terra pra pisar descalço, grilos, vaga-lumes de noite e estrelas, e ar puro! Ar puro! Um paraíso! Tinha até um pomar!
Não programamos nada para o dia seguinte, mas o universo da pousada conspirou ao nosso favor: Gabriela, minha filha, viu uma vara e quis pescar, eu vi uma pipa e quis soltar, Clara, minha esposa viu um livro e quis ler. Pedimos emprestado para a dona da pousada - com aquela pele de gente tostada pelo sol, rugas mais fundas quando sorria, faltando alguns dentes, rosto magro como ela toda, vestido marrom, lenço na cabeça; nada demais, se não fosse aquela presença que faz a gente se sentir em casa – pedimos tudo emprestado e ela nos cedeu com recomendações:
— Cuidado cum esse papagaio, moço, qui é do meu fio, a senhora não vá fazê oreia no livro da minha fia e a mocinha tome muito cuidado cum a vara di pescá que é do meu marido! Intenderam?
— Entendemos!
— Intão oceis leva essa cesta aqui prum piquinique: torta di frango, suco di maracujá, prá fica todo mundo carminho, e essa rapadura pra adocicá a vida. Toma aqui a tuaia xadrêis prá forrá o chão. Ôceis vão pelo caminho da isquerda e quando chegá na praca “área de pesca” é só entrá na tria.
Pegamos o equipamento de diversão e o almoço - pesado, aliás - e fomos pelo caminho indicado até a margem de um rio de água calma e transparente. Clara sentou debaixo de uma árvore e abriu o livro, Gabi caçou suas minhocas, colocou uma no anzol, com cuidado, e já que ninguém precisava de mim, deixei a pipa subir na mão do vento.
Como andar de bicicleta e outras poucas coisas, empinar pipa a gente não esquece; mas fica enferrujado com o tempo, é verdade. Aos poucos as memórias foram acessadas e comecei a fazer manobras radicais, com puxõezinhos - tipo quando a criança quer alguma coisa e puxa a saia da mãe – e dando um pouco de linha, a pipa começa a rebolar. Aí você escolhe o lado que quer que ela vá e puxa a linha e a pipa vai, com a rabióla traçando uma reta no céu, pra lá ou prá cá ou prá baixo, ou de enviesado, e pra parar é só dar um pouco de linha e segurar.
Dei mais linha e a pipa foi longe, longe, até ser um pontinho no azul do ar e cruzar o céu de um lado ao outro. Como eu queria ser assim! Parecia criança gritando exclamações a cada atravessada que a pipa dava de uma ponta à outra do horizonte!
— Paiê! Assim os peixes vão embora!
— Amor! Num consigo me concentrar no livro.
Elas recolheram minha linha e eu não estava mais lá riscando uma reta no céu; só a pipa estava. Voltei a ser adulto, achando aquilo normal...
Clara sorria. Meu Desus! Aquelas covinhas na bochecha...
— Que livro é esse?
— O Pica-Pau Amarelo do Monteiro Lobato.
— Eu assistia na TV quando era criança. Sabia que ainda era em preto e branco?
— Sabia sim; eu também assistia. Imagina só que a Dona Benta recebeu uma carta do Pequeno Polegar dizendo que todo o mundo da fábula queria ir morar lá no Sítio!
— Todos eles?
— Todos, até os heróis e monstros da mitologia! Acredita?
— E o sítio era grande assim?
— Não, mas a Dona Benta comprou duas fazendas vizinhas. O resto ainda não sei.
E continuou lendo e sorrindo. Havia tanto tempo que ela não conseguia ler um livro! Minha atenção voltou-se para Gabi que acabava de levantar a vara com um lambarizinho se debatendo com a boca enganchada no anzol. Conheço tanta gente que passa a vida se debatendo com a boca no anzol... Ela pegou o peixinho com as mãozinhas gordinhas e começou a tirar o anzol da boca dele.
— Quer ajuda, amorzinho?
— Não papai, tudo bem. Eu sei fazer isso.
Soltou o peixe e devolveu ele na água, pegou outra minhoca e pôs no anzol com habilidade de pescadora veterana.
— Gabi, onde você aprendeu a pescar?
— Com o moço da televisão, papai.
— Moço da televisão?
— Ela adora aquele programa de pescaria que passa sábado de manhã.
— Ah, sei. Sábado de manhã, né? Sei qual é.
— Num se preocupa amor, ela ainda é a sua menininha.
— Mas ela já sabe pescar aos seis anos! E aprendeu na TV! Só falta ela tá namorando! Que risadinha é essa, Clara? Vocês estão escondendo alguma coisa de mim?
— Bobinho! Você num sabe nem da metade!
Puxa vida! Como a Clara é linda! Ainda está linda! Não havia me dado conta de como ela protege a família ensinando a viver e deixando viver; esse é o seu estilo! E continua linda, com seus calebões castanhos volumosos caindo pelos ombros até o meio das costas, a carinha de sono – ou seria tranquilidade, serenidade? –, as covinhas na bochecha quando ela sorri, e os vincos nas poucas vezes que ficou brava, o andar agateado, o bom gosto discreto de se vestir... Que mulher linda!
Enquanto isso a Gabi fisgou outro, tirou o anzol da boca do peixe e devolveu ele no rio, espetou outra minhoca e jogou o anzol na água. Eu precisava conversar mais com a minha menininha, conhecê-la melhor. Com seis aninhos já assistia programas de pescaria e eu achando que ela só assistia desenho!
— Relaxa amor. Ela ainda é a sua menininha. E fica calmo, tá, que ela ainda não namora.
Clara continuou com o livro e eu continuei olhando pra ela. O livro apoiado na barriga subia e descia de leve com a respiração calma; acho que foi por isso que me apaixonei por ela: essa calma toda.
— Que foi!?
— Só tava te olhando...
— Olhando tipo o quê?
— Olhando tipo... você...
Ela balançou a cabeça de um lado pro outro sorrindo, com as covinhas nas bochechas, e continuou a ler. Olhei pra Gabi. Ainda bem que é a carinha da mãe; só os cabelos pretos puxou de mim. Sorriso fácil, sabe se comportar em sociedade e... deve ser curiosa, não sei bem! Quanta coisa não sei sobre essas duas!
Voltei a voar com a pipa riscando o ar azul de lá pra cá, de cá pra lá. Aquela pipa era bem feita e a rabióla comprida fazia as manobras serem mais fáceis e o vento estava robusto e constante. Comecei a viajar na possível história das pipas, dos quadrados, dos papagaios, que deve ser coisa de chinês; eles que inventavam essas coisas estranhas há uns tantos mils anos atrás. Outros deviam ter usado essa obra de engenharia para tantas coisas, e as imagens surgiam na minha cabeça:
Egípcios empinando pipa com as oferendas para os deuses penduradas na linha, cientistas europeus e americanos usando a pipa para descobrir as teorias da física, da eletricidade, do para raio, as primeiras máquinas voadoras - pipas com motor -, os moleques da rua de baixo com cortante na linha, que vinham cortar a minha, cortar o meu sonho de voar...
Aí as barrigas começaram a roncar! Recolhi a pipa, a Clara terminou o último capítulo do livro e a Gabi enrolou a linha, prendeu o anzol, encostou a vara numa árvore e devolveu as minhocas que sobraram no mesmo buraco que havia cavado. Lavamos as mãos no rio, estendemos a toalha xadrez debaixo de uma árvore, abrimos a cesta de piquenique com torta de frango, suco de maracujá, prá ficar todo mundo calminho, e rapadura, prá adoçar a vida. Um banquete!
Sensacional: a torta deliciosa e o suco docinho, o vento refrescava e o sol, entre as folhas das árvores, fazia pontos de crochê na toalha. Sensasional, não fosse...
— Paiê! Por que você trouxe formigas? — Gabi gritou. Quase engasguei.
— Não fui eu, não!
— Então quem foi? — ela ergueu seu pedaço de torta acima da cabeça.
— Não sei, mas dessa vez não fui eu!
Esses monstros invadiram nosso mundo – ou o contrário, não sei bem. Eu precisava proteger minha família daquele terror! Fiquei de pé e levantei acima da cabeça meu pedaço de torta e meu suco, decidido a não me render! Gabi fez o mesmo e a Clara nos seguiu, mas não era o suficiente. Aquelas criaturas invadiram nossa toalha e ameaçaram nossa torta de frango, nosso suco de maracujá e... quase chegaram na rapadura! Enfiei o pedaço de torta na boca e peguei a cesta colocando-a no ombro. As formigas invadiram toda a toalha, oferecendo um perigo real à nossa posição. Eu precisava assegurar uma retirada sem riscos; Clara e Gabi em perigo, o piquenique invadido! Precisávamos bater em retirada.
— Segura aqui — e coloquei a cesta no ombro da Clara — e segura aqui. — e dei meu suco para a Gabi segurar e saí correndo pela trilha afora.
— Já volto!
— Aonde você vai, paiê?
— Sejam corajosas! Já volto!
Corri a trilha planejando nossa retirada da frente de batalha e fazer o piquenique em outro lugar. Em menos de dois minutos voltei carregando uma madeira quadrada, passei correndo por elas e não pude evitar a cara de i’m the best, I know, entrei no rio, coloquei a madeira na água e me posicionei de modo a segurá-la para que a correnteza não levasse nossa mesa. Fiz sinal para elas entrarem na água, uma olhou para a outra e pra mim.
— Vem logo, tô com fome.
— Que tábua é essa?
— A placa de “área de pesca”.
— Não acredito! — a Clara ficou arrepiada com a água fresca. Puxa vida! Como ela é linda! Ainda está linda!
Os peixes nos rodeavam querendo a almoçar conosco; o cardápio deles: migalha de torta de frango. Gabi adorou a companhia e fazia de tudo para soltar bastante farelo na água. E quando pensávamos que o perigo acabou...
Olhamos para a margem ao mesmo tempo e vimos um homem com bigodes enormes, pose de açucareiro – que de doce não devia ter nada -, calças jeans, botas pretas de couro, camisa azul e o chapéu fazia sombra nos olhos. Aquela aparição levantou a aba do chapéu e com expressão severa perguntou:
— Por acaso essa mesa não é a minha placa de “área de pesca”?
— É, é, é sim senhor. — gaguejei.
— É que as formigas estavam nos atacando. — Clara respondeu, sem jeito, quase sem calma.
O homem acertou os bigodões, levantou um pouco mais a aba do chapéu e disse:
— Sabiam que vocês não podem tirar a placa do lugar?
— Sim, sim! Peço desculpas por isso, mas estávamos em perigo. – tentei descontrair.
— Preciso colocar a placa no lugar.
— O senhor quer almoçar torta de frango com a gente? Ah, e tem rapadura também, ó! — Gabi, com sua incomum habilidade nas relações públicas, sorriu para o homem de bigodões mostrando a rapadura. Eu não resistiria a um convite desses porque adoro crianças, mas aquele homem com certeza não! Tive medo. Os bigodões do homem se levantaram num movimento de bochechas causado por um sorriso e o medo escorreu correnteza abaixo.
— É claro que aceito, mocinha.
E suas botonas de couro ficaram deformadas debaixo da água, lavou as mãozonas no rio, enxugou na própria camisa, sorriu para nós, pediu licença e pegou um pedaço de torta. Enquanto mastigava, os bigodes dançavam, engraçados.
— Uma delícia! Foi a senhora quem fez?
— Não senhor, foi a dona da pousada.
— Bem que eu senti um gosto familiar. Ela é minha esposa. – e os olhos até brilharam na sombra da aba do chapéu.
Um casal diferente! Ela com uma presença simples, ele imponente, falam idiomas distintos – ou quase –, ela de altura normal, ele botava medo. Conversamos e rimos até não sobrar nenhuma migalha da torta, nenhum farelo da rapadura e nenhum gole de suco.
— Prezo um homem que protege a família. – fiquei sem jeito. – Vocês duas tem sorte. – elas ficaram sem jeito – Bom, agora preciso levar a mesa de volta. – ele ficou sem jeito.
Enquanto recolhíamos as coisas - livro, pipa, vara de pescar, toalha xadrez, cesta – pensei no que o homem de bigodões disse. Tenho quarenta e uns, a Clara também, somos bem sucedidos nas carreiras, adiamos a Gabi até chegarmos a esse nível, mas depois de ouvir aquilo do homem de bigodões senti a necessidade de tomar algumas decisões. Mas só depois das férias!
Chegando ao final da trilha, vimos que algumas pessoas passaram da entrada com suas varas de pescar, olhando para os lados, à procura da placa.
— Vou distrair eles enquanto vocês penduram a placa no lugar. — abaixou um pouco e perguntou pra Gabi: — Você me ajuda?
Correram até os pescadores perdidos – ele era desengonçado e ela uma gracinha -, puxaram assunto, conversaram um pouco e indicaram o local. Os pescadores vieram na nossa direção e olharam para nós, olharam para a placa pingando água, olharam para nós, olharam para a placa pingando água:
— Como não vimos a placa?
Fomos até onde estavam o homem de bigodões e a Gab e rimos até a barriga doer. Acho que a última vez que ri assim ainda era criança.
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