Invertido
( Sidney Muniz)
( Sidney Muniz)
Acabou, quando o sangue entrou no corpo, lentamente. A bala, após sair das costas da vítima retornou ao revólver e tão logo as mãos do assassino encontraram o coldre, enquanto ele se encolhia em um canto. A vítima ainda estava ali, andando de costas, em câmera lenta, carregando a menininha nos braços e indo em direção oposta a sua intenção anterior, como se tivesse olhos na nuca.
A estranha sensação de ser o dono do tempo se revelou ineficaz após perceber que o havia perdido no estacionamento. Restava apenas o homem armado que se escondia por detrás de uma das colunas de sustentação do piso superior, vigiando algo. Espiando alguém.
Voltar no tempo é algo que todos querem fazer. Talvez esse querer divida o pódio do desejo de qualquer homem com outros dois devaneios, o de voar e o de alcançar a fonte da juventude. Apertar um simples botão e fazer uma coisa dessas poderia ser impossível há milhares de anos, mas agora não, agora é possível voltar no tempo.
Precisamos estar atentos, ouvir cada ruído, se atentar a cada detalhe para que no fim encontremos o que procuramos. Vi o homem com a criança, ele continuava andando, olhando para os lados e segurando a bebê. Aparentemente está preocupado. Agora está a vinte metros de onde havia sido morto. Andar para trás pode não ser abrir mão do futuro, e sim visitar o passado, e aquela visita estava sendo um presente para nós.
Ao aproximar-se do carro, abriu a porta detrás e depois colocou a pequenina na cadeirinha por sobre o banco de couro, fechou a porta e se dirigiu para o porta-malas. Esse se abriu e então vimos tudo, e decidimos que era hora de ver o restante por outro ângulo.
Avançamos no tempo até o momento em que ele estava morto no chão. O assassino correu na direção dele e apanhou a criança, abraçando-a forte. Naquele momento o segurança chegou no rasto do som de um disparo pedindo que o assassino levasse as mãos na cabeça.
Tentar explicar-se em uma situação dessas é algo que foge aos padrões de segurança quando se tem uma arma apontada para sua cabeça. Certamente o que ele queria pegar no bolso de trás da calça poderia tê-lo salvo, mas naquele momento o gesto de defesa o matou.
O segurança disparou assim que o homem disse as palavras que menos esperaria ouvir. O jovem vigia nunca havia disparado com sua arma, mas quem carrega uma certamente um dia haveria de usá-la e aquele fatídico momento pareceu-lhe oportuno.
A bala acertou em cheio a cabeça da criança, que teria em torno de um mês e meio de nascida, atravessou a frágil carne, transpassou a nuca e se alojou no coração daquele que tentava protegê-la. Ambos findaram abraçados. As mãos dele segurando o corpo leve e inerte, com afeto. Ele morreu como se a colocasse para ninar, um suspiro profundo perpetuou sua trajetória e após o fim a cabeça pendeu para baixo, fazendo com que a boca tocasse espontaneamente a testa da menina, num beijo molhado de sangue.
O guarda olhou para o corpo caído ao chão, e viu o que não poderia ter visto a distância. Era um bebê morto. O outro cadáver o segurava. O terceiro morto nesse instante pouco o interessava, afinal essa vida não havia sido tirada por ele. Observou no chão, a frente do homem que matou, a arma que aquele outro não iria pegar e logo enfiou a mão no bolso de trás do que tentara avisar ser um policial, e encontrou o distintivo e um pedaço de papel tingido em sangue. Nada poderia salvá-lo.
Levou as mãos a cabeça, sentiu o cheiro da vida embriagado de morte. O calor da situação esfriou seu corpo. Era tudo tão tendencioso, tão meticuloso, tão vil. O futuro é mesmo uma droga. A vida é uma merda e ele fez a coisa mais sensata que poderia pensar em fazer após acariciar os cabelos freneticamente, em sinal de stress e entrega. Ele se entregou a ruína.
Um tiro certo, tão a queima roupa que explodiu os próprios miolos. A arma caiu no chão e o papel saltou junto, numa queda pouco vital e tão melancólica. Um corpo estatelado, desengonçado e um papel sujo escorregando pelo vento.
Avançamos cinco minutos. A cena não mudou até a hora que a primeira testemunha, uma velhinha de sessenta e nove anos viu os corpos, e gritou alto, antes de desmaiar. Mais pessoas chegaram, mais e mais. O choque era comum.
Vinte minutos depois a policia veio, o policial passou tão perto do corpo do segurança. Mal vi o papel sendo levado pelo vento, dançando, girando devagar e se misturando ao lixo mais a frente. Percebi sim a faxineira assustada passando e varrendo o local, apanhando o papel com a pá e enfiando dentro do saco preto. Como é que essa prova escapou assim de mim? Era como se o vento fosse um comparsa do destino, trazendo e levando.
Descemos as escadas e fomos até o carro. Não havia alarme. Era um carro velho, as chaves estavam caídas a três metros dele. Voltando a fita percebemos quando o homem que carregava a criança deixou-a cair de propósito. O pior foi ver o que se escondia no porta-malas, ainda que tivéssemos vislumbrado toda cena alguns minutos antes na sala de segurança.
A mãe da criança estava trancada lá dentro. Uma sacola de supermercado envolta em seu rosto morrendo apertada em seu pescoço, transparente como uma fina camada de pele. Uma pele isolada, roxa e mórbida. A boca estava engasgada em um grito que fora abafado pelo plástico. Catarro e gotículas de saliva ainda denunciavam a dor e os últimos instantes daquela pobre alma. O corpo nu era espelho de alguém jovem, bonita e atraente. Dos seios vazavam um liquido que tal qual o sangue também simbolizava a vida, branco como a paz, e agora tão sádico como a guerra.
Começou. Dentro do carro havia apenas uma foto de família, uma criança no berçário, uma mãe pálida, fraca e imensamente feliz, e os abraçando estava o pai que trajava uma farda, tão cheio de si, repleto de orgulho e com a certeza da felicidade eterna pela nova vida que acabava de chegar.
“No fim, o que precisamos é de algum inicio. De fato é tudo tão invertido.”
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