Juvêncio e o Pé Preto

(TTAlbuquerque)
 
Calisto era caixeiro viajante. Vivia perambulando os interiores revendendo quinquilharias das mais diversas, como: rendas, relógios de parede, imagens sacras e várias outras inutilidades cheias de ágio.
 
Sempre fazia suas viagens tentando gastar o mínimo possível, pois ansiava montar um negócio fixo em sua cidadezinha natal. A vida que levava era difícil e solitária, mas sua vontade de enriquecer o mantinha firme mesmo quando se metia em algum problema como o atual.
 
Estava viajando pelo sertão do nordeste sem conhecer os caminhos e confiando somente em sua experiência, mas acabou se perdendo no meio da caatinga. Cada metro percorrido, entre as árvores secas e cheias de espinhos, cobrava um imposto pesado em sua pele e roupas. Somado a isso, o calor e sede lhe tiravam a paz, fazendo imaginar seu corpo morto secando como as carcaças das criações vencidas pelo rigor do agreste.
 
Ficou vagando a esmo sob o céu azul e sem fim até que os astros brilharam distantes, indiferentes ao padecimento do homem, na cortina negra da noite.
 
Com a chegada da escuridão, o caixeiro sentiu seu ânimo revigorar e usando de uma lamparina que tinha entre seus produtos, continuou a girar pelo meio do mato espinhoso, assim como uma mariposa faria ao redor da chama de uma vela.
 
Vagou, cada vez mais perdido, até que ouviu uma voz de criança que fugia da escuridão. Esperançoso, seguiu a origem da voz e após alguns minutos de caminhada, encontrou um garoto sentado ao lado de uma pequena fogueira armada rente a um paredão de rocha onde uma cruz de madeira puída pela inclemência da terra árida, se mantinha erguida de forma desafiadora.
 
Aproximou-se do menino de maneira cautelosa, pois temia que o garoto fugisse ao lhe ver, mas para sua surpresa, o rapazote sorriu para ele e gesticulou convidativo.
 
-Noite, sinhô. Qui um homi de feitio tão distinto faz aqui no meio da Parede de Juvêncio? Tá perdido?
 
Calisto deu um sorriso amarelo como resposta enquanto se sentava em frente ao menino, que parecia tranquilo demais com a presença de um estranho no meio do nada. Tentando ser o mais amável possível, começou a falar.
 
-Boa noite, menino. Sim, perdi-me tentando chegar a algum povoado. Parede de Juvêncio? É o nome dessa região?
 
O molecote sorriu, um sorriso debochado de quem sente graça da ignorância alheia.
 
-Logo apercebi que tava perdido. Não sinhô, a Parede é esse pedaço de chão aqui. Tempo atrás, teve uma peleja danada e uma tropa de macaco inteira levô a pió bem aqui. A cruz é pamod’as alma dos mortos achá paz.
 
O viajante, sem entender o motivo, engoliu em seco. Algo deslizava por sua espinha, algo frio e convulsivo: o medo. Sem entender o motivo da sensação, tentou ir direto ao ponto.
 
- Que horrível. Não é um lugar dos mais atrativos e creio que seus parentes não gostariam que você ficasse sozinho por aqui. Há alguma propriedade aqui perto?
 
 O moleque novamente sorriu, seu sorriso tomava linhas estranhas, semelhantes as de uma gato ante um calango ferido.
 
-Meus parente inté gosta, nun sabe? E sim sinhô, tem uma vilazinha logo rente daqui, se quisé, pudemo arribá. É uma caminhada di duas horas.
 
O rosto do vendedor se iluminou e cheio de vigor renovado, ele se ergueu do chão rachado.
 
-Pois eu ficaria muito grato por sua ajuda. Podemos ir então?
 
O menino seguiu o exemplo e começou a caminhar na frente. Apesar da escuridão, caminhava com desembaraço entre as folhas marrons e as hastes agudas. Calisto o seguia com dificuldades, apesar da luz do lampião, o mato ainda lhe castigava, fazendo seus passos incertos. Tentado ser amigável, perguntou sobre a tal peleja ocorrida e para sua surpresa, ouviu uma voz estranha ser cuspida pelo garoto. Uma voz calma, culta e com trejeitos de uma idade incompatível com a do seu emissor.
 
-Já que o moço deseja, vou lhe contar sobre o caso. Sobre o cangaceiro Juvêncio e o Pé Preto.
 
E como se estivesse lendo algum cordel rebuscado, o moleque contou:
 
A caatinga ressecava sob o Sol de verão fazendo os espinheiros estalar ante a aragem seca e cheia de pó. Largado sobre o piso rachado do açude seco, uma carcaça de gado tinha suas carnes bicadas pelos urubus e carcarás, que após o repasto mirrado, seguiam suas evoluções no céu límpido e tão vasto quanto o distante mar.
 
Os calangos corriam por entre as sombras da vegetação marrom perseguindo as formigas-de-fogo, seu alimento e inimigo. Seguiam alheios aos sons que o criminoso fazia ao fugir em desembalada carreira. Juvêncio corria com todas as forças ignorando os espinhos que lhe talhavam as carnes e a dor aguda em seus pulmões. Perdera as sandálias a uns bons dois quilômetros e apesar dos cortes profundos e dos cacos de árvores que se prenderam neles, não olhava para trás. Cada passada elevava aos céus densas nuvens de um marrom avermelhado, que para uma possível testemunha, mais se pareceriam com seu sangue virando vapor ao tocar o piso esturricado.
 
Ele fugia e se amaldiçoava, pois fora um covarde dos mais xibungos ao largar seus companheiros quando estes pelejavam com os soldados. Mas o que poderia fazer? Se para cada um de seu bando havia três Volantes e todos armados com carabinas Papo Amarelo. Foram pegos de surpresa ao amanhecer e logo na primeira rodada de pipocos dados pelos soldados, seis de seus companheiros morreram como se fossem garrotes no cepo do matadouro. Juvêncio tentou lutar, mas como ele costumava dizer: a macacada estava com o sangue nos olhos. Mas não era pra menos, o bando do cangaço havia invadido o casamento da filha de um coronel, humilhado todos os convidados os colocando para dançar pelados. Antes de irem embora ainda os roubaram e estupraram a noiva.
 
O latifundiário ofereceu duzentos mil réis por cada cabeça de cangaceiro que lhe fosse apresentada e oitocentos mil réis pela de Juvêncio, e essa premiação fazia os praças do governo se agigantarem, tamanha era a cobiça pelos cobres.
 
Durante quase toda a manhã, o cangaceiro correu em fuga até que seu corpo lhe traiu e a escuridão da estafa total lhe derrubou no chão seco. Quando acordou, já era noite alta, as estrelas corriam no céu sem Lua e os bichos do escuro corriam a caatinga em busca de comida e água. Olhou em seu redor a procura de algum soldado, mas após alguns instantes, sorriu por se ver livre e vivo. Tentou se colocar em pé, mas a fuga pelo mato seco destruiu lhe as solas, que apesar de grossas, foram talhadas e perfuradas demais e secretavam líquidos em prévia de infecção. Sem ter como caminhar, começou a arrastar o corpo em direção do que parecia ser um pé de xique-xique. A sede era tamanha que a garganta parecia cheia de areia quente. Após grande esforço, chegou ao pé de pau e para seu desespero, constatou o erro cometido ao cavar o solo duro, com a ajuda de seu punhal, e não encontrar o bulbo cheio do líquido precioso.
 
Praguejou contra Deus e os homens e uma risada leve, que parecia ser trazida pelo vento frio da noite do sertão reverberou em seus ouvidos. O riso era mau e inumano, o cangaceiro se benzeu e pediu arrego para todos os santos que conhecia. Ficou calado no escuro, esperando que algum soldado da volante saltasse sobre ele, mas o único ser que apareceu foi um preto velho. O homem usava uma calça feita de estopa - saca de farinha-, amarrada com uma corda grossa na altura da cintura magra com ossos salientes e feios. A testa proeminente e tão vincada quanto o chão quebrado pela secura do verão cuja carapinha branca contrastava com a brasa do pito de barro pendido nos grossos lábios tais quais os olhos que refletiam profundos a mesma vermelhidão. 
 
Juvêncio esticou o punhal na direção do idoso e este sorriu, mostrando uma boca vazia.
 
- Se assussegue cabôco! Teu aço e reza num pode cum eu. Pé preto viu qui tu precisa de uma ajuda. Intão Tô aqui pámode socorrê.
 
O cangaceiro, acuado, manteve a arma na direção da estranha figura em sua frente como uma cascavel prestes a dar o bote.
 
-Dexe de suas valentia. Pé Preto só qué ajudá. Tu qué ajuda, né não cabôco?
 
A vontade de ferir o Preto o deixava trêmulo, mas estava fraco e faminto. Vencido, acenou em afirmativo com a cabeça. Vendo isso os olhos do velho pareceram brilhar por si e um sorriso de satisfação surgiu entre a pele cheia de marcas do tempo.
 
-Bão! Bão mermo. Se aprochegue caboclo, Pé Preto vai ajudá vosmecê, mas carece de paga, vice? Pé Preto vai fazê vosmecê se vingá da macacada, e in troca, vosmecê vai trabaiá pra Pé Preto.
 
Novamente o bandido aquiesceu com um aceno de cabeça, pois sentia que não havia alternativa em meio do lugar tão ermo e me frente de sua fraqueza física.
 
-E de acordo nós sela o trato. Pé Preto guia a matança e dispôs vem a cobrança. Êh!!! Hummm!!! Chou! Chou! Chou! Êh!!! Hummm!!! Chou! Chou! Chou!
 
O velho puxou o fumo com força e os olhos reluziram um brilho rubi. O vento zuniu nos ouvidos do cangaceiro, nenhum animal tinha coragem de fazer um barulho sequer.
 
***
 
Os soldados já haviam acampado quando o Sol deixou o horizonte para as sombras. Estavam exaustos pela luta, mas felizes por terem matado quase todo o bando do cangaceiro Juvêncio Cabeça Louca, o pior cabra do Recôncavo Baiano. Felizes por terem vinte e duas cabeças para vender ao coronel Paulo Bezerra e assim ganharem uns bons cobres.
 
O líder do bando havia fugido pela caatinga, enfiara o rabo entre as pernas e metera os calcanhares no mato como um xibungo safado, mas era certo que lhe pegariam antes do fim do próximo dia, pois caboclo algum conseguiria viver sem mantimentos ou água no meio do sertão.
 
Os praças estavam tão confiantes que nem se deram o trabalho de postar vigias, deixando o grupo de sessenta e seis soldados despreparados para o que viria. Do meio das sombras do mato espinhoso e quebradiço, saltou algo, um homem vestido com o tradicional paletó de couro dos caboclos do norte, onde arabescos rebrilhavam de forma incomum na escuridão sem luar. Tinha por volta de dois metros de altura e corria como um pé de vento enquanto disparava a carabina. Os soldados foram pegos de surpresa e muitos nem se deram conta que algo estava ocorrendo. Os mais valentes e preparados, conseguiram combater o homem e após algumas dezenas de disparos, o atacante acabou tombando.
 
Usando de um lampião, foram verificar a identidade do assaltante e para o assombro de todos, era Juvêncio, o líder do bando cangaceiros, mas ele estava mudado. Havia crescido em tamanho, encorpado e deveria ter mais de dois metros e meio. Seu corpo estava recoberto por uma densa pelagem preta, seus pés eram como um de um bode, tinha uma calda pontuda como a de um calango parrudo, cornos grossos e recurvados, e de sua boca pendia uma extensa língua bifurcada.
 
O horror dominou o espírito dos sobreviventes e alguns se puseram em fuga, mas para a desgraça total, o cangaceiro ergueu as garras que mais pareciam punhais e correu batendo os cascos a cada vida retirada, matar era a única forma de sentir prazer que conhecia desde que se entendeu por gente.
 
O sague jorrado rapidamente foi absorvido pelo solo fendido de seco.
 
***
 
Quando acharam o pelotão enviado atrás do bando de Juvêncio, encontram os soldados esquartejados e empilhados juntos a um paredão de pedra onde escrito com sangue se lia: Juvêncio Pé Preto esteve aqui.
 
Duas semanas depois, a casa do coronel foi incendiada, todos os jagunços da fazenda foram mortos e a filha, que havia sido estuprada em sua festa de casamento, fora encontrada nua no meio do terreiro ao lado do corpo do pai. O velho foi esfolado vivo e suas entranhas foram levadas pelo assassino.
 
A moça relou que Juvêncio na forma de Diabo havia feito tudo aquilo, mas ninguém lhe deu crédito, pois acharam que ela havia ficado louca após o crime durante seu casamento.
 
Nove meses depois, a jovem teve um menino e assim que viu a criança, ficou histérica. Tentou matar o próprio filho, pois segundo disseram as mulheres presentes no parto, acreditava que o menino era o filho do Diabo. As parteiras também ficaram impressionadas com a fisionomia do bacuri...
 
***
 
Então o garoto se calou e sumiu por alguns momentos da vista do caixeiro, que apressou o passo para não o perder. Caminhou por alguns minutos até que para sua alegria, viu na distância as luzes da vilazinha. A aragem da noite trouxe até seus ouvidos os ecos de um bolero cantado por vozes pastosas e incertas de alguns ébrios e isso lhe deu certa tranquilidade.
 
Apressou ainda mais o passo, esquecendo completamente de seu guia, rumo às luzes onde poderia encontrar descanso e segurança, mas então ouviu novamente a voz do molecote.
 
-Num qué sabê pruquê as partera ficarô cum medo do bacuri?
 
A voz vinha de suas costas e isso fez o medo novamente passar suas garras na espinha de Calisto. Cheio de dúvidas, ele se virou devagar e perguntou:
 
-Por quê?
 
O horror tomou conta de Calixto. Cercada pelas trevas do agreste baiano, uma criatura incerta, um misto de homem e bode, sorria para o vendedor itinerante enquanto batia seus cascos caprinos quebrando a terra seca, ao passo que derrubava os espinheiros com a cauda.
 
Pasmo, o homem correu em direção da vila, ignorando a dor que sentia ao ter as carnes talhadas pelas ervas ressequidas que atrapalhavam sua fuga. Correu o mais que pôde e quando estava prestes a sair do meio da caatinga, sentiu algo saltar e agarrar sua perna na altura da panturrilha. Uma dor aguda se fez quando alguma coisa raspou os ossos do membro ao rasgar a carne, tal qual se fosse manteiga no calor de fevereiro.
 
Foi puxado e arrastado pelo chão duro, levantado nuvens de poeira e ervas secas, enquanto urrava de dor e engasgava com os pedregulhos que entravam pela boca. O arrasto durou um tempo que Calisto não poderia determinar, quando foi solto, se viu novamente na Parede de Juvêncio. Apesar da dor e fraqueza, conseguiu perceber que a criatura estava empoleirada sobre a cruz velha como uma ave carniceira.  O demônio o encarava com seus olhos faiscantes, rindo da miséria do homem.
 
-Agora tu sabe o motivo das quenga véia achá o bacuri estranho. Elas me viram e tiverô certeza qui era o filho de meu pai: Juvêncio. Sou o novo Pé Preto. Hei de ser o cabra mais temido da bixiga de todo o sertão.
 

O demônio pulou de onde estava e trotou em direção a Calixto, que se encontrava empapado de suor e urina.
 
- Agora chega di tanta patestra qui Pé Preto tá querendo o que é dele.
 
A última coisa que o viajante perdido viu, foi o vulto daquela criatura pairando no negrume da noite em seu trote assassino. Uma sombra com duas brasas como olhos, que lhe tomou a luz da vida.

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 06/11/2014
Reeditado em 23/11/2014
Código do texto: T5025794
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