Medo da Escuridão

Aquela menininha tão pudica e sardenta se prepara para mais uma noite de sono.

Bem sabe que tem muito medo da escuridão e lá nos confins do mundo, as únicas luzes que restam são as lamparinas a óleo que se apagam quando todos vão dormir.

Ela tem em torno de meia hora até que todas as luzes da casa se apaguem, se não dormir até isso, terá que enfrentar a escuridão que tanto teme.

Ela pensa no bicho papão que se esconde atrás das portas do guarda-roupa, pensa no padre falando dos demônios que amaldiçoam as pessoas na Terra, pensa nos vampiros e bruxas que andam soltos por aí.

Tentando se acalmar e se concentrar para dormir, lembra que a noite hoje não tem lua, então o lobisomem não poderá pegá-la, mas inevitavelmente pensa que não haverá nem a claridade da lua para acalmá-la.

Sabe que se chamar sua mãe no meio da noite, seu pai provavelmente lhe dará uns cascudos. Às vezes ela pensa que o pai é tão perigoso quanto os monstros que a habitam.

Perdida em seus pensamentos, ouve o ranger da porta do quarto de seus pais simultaneamente à descarga de adrenalina que toma seu pequeno corpo indefeso e inerte.

A última luz que rompia o telhado sem forro se apaga e ela esconde a cabeça embaixo do cobertor. Trêmula, fecha os olhos com todas suas forças e passa a observar os barulhos da casa.

Não sabe quanto tempo passou desde que apagaram as lamparinas, mas ouve o pai roncar profundamente. Tenta se concentrar no ronco dele, mas seus ouvidos teimam em ouvir o vento que açoita as árvores lá fora. Ao longe, ouve o uivo dos cachorros.

As táboas do assoalho antigo rangem com o frio e seus dentes rangem com o medo. O calor de respirar embaixo das cobertas começa a ficar insuportável e ela terá que pôr o rostinho para fora se quiser um pouco de ar fresco.

Com as mãozinhas delicadas, começa a deslizar vagarosamente as cobertas para baixo enquanto força ainda mais seus olhinhos. Já sente o ar gélido tocar sua testa, mas antes que a coberta liberte seu nariz, ouve os porcos do curral começarem a grunhir.

Gritos e mais gritos dos porcos agora ecoam por toda sua mente e traída por seus próprios olhos, ela abre os abre. A sua maior vontade nesse momento era de correr para o colo da sua mãe, mas o que ela vê a deixa petrificada.

Seus olhos teimosos vêem a imensa escuridão que habita seu entorno. Fecha os olhos e volta a abrí-los, porém não nota nenhuma diferença entre a escuridão que suas pálpebras proporcionam e o ambiente escuro. Evita olhar para a porta do guarda-roupa e também para a janela, recorrendo então à porta que tanto conhece.

Olha fixamente por alguns instantes e percebe que não há mais ventos nem grunhidos. Se esforça para lembrar quando foi que os cachorros pararam de uivar, porém não obtém sucesso.

Crente de que tudo não passa de mais uma imaginação infantil lhe pregando uma peça, tenta ouvir o pai falando que nenhum monstro perderia tempo em ir até os confins do mundo para atormentar uma pobre criança.

Os olhos piscam pesadamente e a menininha sente a leve dormência que antecede o sono, eis que a maçaneta da porta se mexe.

Um grito de desespero morre em sua garganta e ela se enfia na coberta novamente. Prende a respiração, temendo que qualquer coisa que viva lá fora possa escutá-la ou vê-la. O barulho para.

Fica nessa posição, respirando em goles curtos e sentindo os seus pulmões arderem por bastante tempo. Ela tem certeza que escutou a maçaneta da porta mas absolutamente nada aconteceu. Apavorada e suando de calor, resolve começar novamente o ritual de abaixar a coberta e promete pra si mesma que não abrirá os olhos dessa vez.

Se põe a ouvir com maior atenção pra ter certeza de que realmente não tem nada lá fora e quando se dá por satisfeita, começa a abaixar as cobertas novamente.

Quando termina, ainda de olhos fechados, sente o prazer de respirar o ar noturno e resolve abrir os olhos. Percorre o ambiente rapidamente e começa a contar mentalmente para ver se pega no sono:

- Um, dois, três, quatro, cinco, seis....

Sua contagem é interrompida pela dilatação do assoalho e mais uma dose de adrenalina a desperta completamente. As lágrimas correm silenciosamente pelos cantos dos olhos e a exaustão física começa a ficar mais latente:

Sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze...

Os porcos grunhem em desesperos novamente, alertando os cachorros que começam a latir. Tentando não se importar com isso, ela continua:

- Quatorze, quinze, dezesseis...

Os porcos param e os cachorros também, o vento lança um galho de árvore no telhado:

- Dezessete...

A maçaneta parece imóvel:

- Dezenove, vinte, vinte um, vinte dois...

Barulhos de passos no assoalho começam a romper o silêncio.

Tensão e medo percorrem seu corpo todo. Os pêlos ouriçam-se e ela teme que o mal a absorva. Com os olhos semicerrados ela tenta vislumbrar a porta.

Sua mente sente as piores coisas que possam haver: Monstros com bocas saliventas enormes pronta para devorá-la, ladrões armados até os dentes prontos para estripá-la, ET's de outras galáxias que romperam as barreiras da natureza somente para pegá-la e tudo mais que lhe causava medo.

A porta do seu quarto se abre de sopetão, fazendo-a encolher em posição fetal. Seu corpo treme por cada músculo contraído. Os passos avançam em direção a sua cama e ela sente uma mão tocar seu cobertor. Ela sabe que um daqueles seres vieram e acabarão em definitivo com o que lhe resta.

Desfalecida de medo e pânico, sente uma mão comprimindo ou apertando sua perna.

Imobilizada de medo, rende-se aos ataques e investidas, aceitando que não sobrará nada depois desse ataque. Bem longinquamente ouve uma voz rompendo o silêncio:

- Bom Dia, meu anjo! Vamos acordar? - Sua mãe lhe chamava ao amanhecer.

Arthur Barbosa
Enviado por Arthur Barbosa em 25/09/2014
Código do texto: T4975637
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