Lições de Latim - DTRL 16

I. Dominus Dies (Dia do Senhor).

Por toda a catedral fazia-se um silêncio profundo, com os fiéis acompanhando solenemente o momento em que o sacerdote erguia os braços de maneira cruciforme e proclamava as palavras do livro vermelho no altar.

- Orai Irmãos e irmãs para que esse nosso sacrifício seja aceito por Deus Pai... – ele continuou, sem tirar os olhos do missal, embora soubesse a oração de cor. Ao seu lado, estava um coroinha relativamente alto, chamado Fábio. Era um jovem esguio, de cabelo encaracolado bem escuro e um rosto fino que brilhava ligeiramente devido às velas próximas a ele e ao suor em sua testa. Suas mãos estavam trêmulas e possuía um olhar perturbado que não desviava das hóstias prestes a serem consagradas.

Não era a primeira vez que Fábio acolitava Estevão, ou a primeira vez que era coroinha em uma missa com tanta gente na igreja, o que inclui o prefeito da cidade, mas quem o visse naquele instante, veria alguém nervoso e abalado. O padre continuou a oração eucarística, lendo os parágrafos que eram respondidos pela assembléia nos momentos prescritos e, chegado o ápice, se ajoelhou acompanhado pelos fiéis e pelo coroinho com um sino dourado que deveria tocar nos momentos certos. Estevão dizia uma sentença e ouvia o tilintar ressoar, enquanto ele olhava para o cálice e demais objetos sacros. No último momento, esperou o tilintar do sino, mas não ouviu nada. Discretamente, virou o rosto para o lado a tempo de ver o sino abandonado no chão e o coroinha se afastar do altar, caminhando em direção à entrada da sacristia.

Fábio entrou no recinto e diminuiu o passo. Podia respirar um pouco mais aliviado, apesar das palpitações continuarem. Ele olhou ao redor, para as imagens e cômodas com livros e paramentos, o guarda-roupa cheio de túnicas e casulas, o crucifixo na parede. Conhecia bem o lugar, mas tudo parecia diferente, como tudo na sua vida nos últimos dias. Podia ouvir alguma coisa da missa. O padre devia estar chateado com sua inesperada saída, ainda assim, Fábio sabia, ele prosseguiria com a cerimônia o melhor que pudesse sem o coroinha. Possivelmente alguém entraria após ele, indo chamá-lo. Demorando um pouco mais do se esperaria para uma ida ao banheiro, alguém viria procurá-lo, podia ser um dos membros do coral, aquela coordenadora de pastoral chata, uma que sempre sentava no primeiro banco, ou um catequista qualquer. É uma pena que não o encontrariam mais.

Ele entrou em outro cômodo, e subiu uma escadaria para o andar superior do templo. Percorreu uma distância, chegando a um ponto onde, se quisesse, poderia ver a nave principal, através de uma espécie de sacada, mas é claro que não faria isso. Podiam vê-lo, e ele definitivamente não queria que isso acontecesse. Continuou caminhando e chegou a uma porta que dava para a torre, ele entrou e subiu uma escada em caracol, em direção aos sinos. Curiosamente o lugar estava vazio, provavelmente por que não esperariam que alguém fosse lá. Mais um pouco e ele estava na torre, tendo uma visão panorâmica da praça do relógio e dos arredores da igreja, com o movimento de poucos carros. Ele desceu um pouco e saiu por uma pequena porta para uma área ampla em cima da catedral. Quando estava nas festividades do padroeiro da cidade, com as pessoas acompanhando as missas do lado de fora, alguns felizardos observavam tudo dali. Eram poucos, apesar da área não ser pequena. Olhavam para baixo, com as mãos apoiadas no peitoril. Fábio chegou e olhou para baixo. Se não fosse um pouco a vertigem, ele apreciaria mais a visão, até calcularia a altura. Ele pôs as mãos no peitoril e suspirou. Por um breve instante, não mais que um lampejo, ele se perguntou se queria realmente aquilo. Mas não se demorou em pensamentos por muito tempo. Fez força e subiu no batente. A alva de coroinha não ajudava, mas tirá-la estava fora de questão. Era sua marca, um símbolo do simulacro de dignidade que lhe restava.

De pé na beirada, ele levantou os braços para manter o equilíbrio e virou as costas para a altura. À frente a torre erguia-se muito alta, de contornos delicados e uma cor muito clara, como toda a catedral, parecia que tinha sido esculpida em uma nuvem. E no cume, acima de tudo, estava uma cruz. Fábio olhou para ela e fechou os olhos cheios de lágrimas. Os braços continuavam abertos e permaneceram assim, mesmo quando o corpo do coroinha pendeu para trás e ele se deixou ser engolido pelo espaço.

II. Vade Mecum (Vem Comigo).

Doze dias antes.

Na entrada do velho convento, após aquelas portas espessas, feitas de uma madeira escura e muito bem trabalhada, o monge permanecia com sua serenidade imperturbável. Sem jamais desviar os olhos do alto, para além das preocupações mundanas e dos desejos da carne, ele segurava um livro aberto, como um sinal dos longos anos que passou enclausurado, inteiramente dedicado aos estudos e à meditação, enquanto que com a mão direita erguia solenemente uma pena, em uma menção de escrever petrificada no tempo, impassível e indiferente ao garoto que acabava de chegar, saindo do sereno fino e intermitente que caía naquela tarde.

Antes de seguir convento adentro, Vicente fez uma reverência com um sinal-da-cruz em frente à imagem do monge, que parecia aguardar pacientemente o visitante. O menino era familiarizado à figura santa e benigna de Patrício Loreto, como eram todos na cidade de Nova Florença. Muito se falava sobre o monge dominicano que tinha vivido naquele mesmo convento, um século antes, e considerando o que se comentava de sua sabedoria, do cuidado paterno com que cuidava dos noviços e dos paroquianos e de sua fé, não foi de surpreender que ele tenha sido beatificado há dez anos e o processo de canonização estivesse seguindo o mais rápido possível, esperando apenas um segundo milagre comprovado para levá-lo em definitivo à honra dos altares.

Vicente seguiu seu caminho através dos corredores cavernosos do convento, o pacote embrulhado que trazia estava devidamente seguro entre seus braços, pronto para ser entregue ao dono, o que era um alívio para o garoto. No domingo anterior, durante a missa, ele tinha acidentalmente deixado cair vinho na casula do bispo e o ato de distração o tinha feito ficar lívido. Era um dos poucos coroinhas que tinha a honra de acolitar Dom Lourenço e o medo de perder esse privilégio não era maior de o bispo o excomungar, ou o fazer ir jejuar em algum ermo distante, ou outro exagero tecido por sua mente de menino de catorze anos. Felizmente, o revendo não interrompeu a celebração para lhe dar broncas, nem sequer fez cara feia. No momento, fez apenas um ruído descontente, bem menos do que Vicente merecia, e prosseguiu como se nada tivesse acontecido.

Quando estavam na sacristia, ao término da missa, Vicente insistiu para que o bispo o deixasse levar a casula para casa, para que sua mãe a lavasse. Lourenço disse que a lavadeira da paróquia cuidaria daquilo, mas acabou cedendo e lhe entregando o paramento, não vendo motivo para negar esse pedido do garoto.

Cinco dias se passaram e ali estava ele, pronto para devolver a casula limpinha e demonstrar sua competência e dedicação, isto é, se encontrasse o bispo. Já havia rondado metade do prédio, andando nos corredores cujas paredes ostentavam imagens de santos, dos papas e dos bispos anteriores, tinha batido na porta do escritório do bispo, que estava trancado, e tinha chegado ao pátio interno, chamado de claustro, sem vê-lo e praticamente sem ver qualquer outra pessoa.

Não era comum encontrar o convento cheio. No tempo de Patrício Loreto, no século passado, muitos monges viviam aqui, mas com o passar dos anos a ordem foi escasseando e atualmente o convento servia apenas de casa paroquial para o bispo e uma meia dúzia de padres. Ainda assim, Vicente estava surpreso com a calmaria.

Estava caminhando em direção ao refeitório, quando viu a empregada Vânia, saindo com uma cesta de frutas para a cozinha.

- Oi, Vânia.

- Oi, Vicente. O que faz aqui?

- Estou procurando o reverendo. Você o viu?

- Sim. Ele está na capela – ela disse e entrou para a cozinha, para seus afazeres.

O coroinha deu meia volta e seguiu pelos corredores até encontrar as portas laterais da capela abertas. Através delas podia ver os bancos de madeira envernizados voltados para o altar, e as imagens das estações da via sacra na parede oposta. Entrando no recinto, Vicente foi tomado se surpresa por uma visão um tanto curiosa. Um homem estava parado, impassível como as imagens ao redor, olhando para o altar. Não era o bispo, não era ninguém que ele conhecesse ou tivesse visto na vida. Uma roupa, como uma túnica, negra como piche, lhe cobria inteiramente o corpo, do pescoço aos pés. De costas, era possível ver o cabelo castanho longo e enrolado se suas mãos voltadas para trás brancas como mármore.

O menino parou a meio caminho, dividido entre ir embora tão silenciosamente quanto havia chegado e ir falar com ele. Caso seguisse a última escolha, não sabia se o cumprimentava, ou se dizia um “olá”, ou outro tipo de saudação religiosa que ele se esforçava para se lembrar. Na verdade, estava encantado e um tanto chocado ao mesmo tempo. Durante sua vida, mesmo vivendo em meio eclesial como acólito, nunca tinha visto um padre de batina. Sabia que era um padre. Mesmo vendo pessoalmente pela primeira vez, ele soube identificar por assistir a filmes e ver em quadros sacerdotes com aquela roupa preta e longa e sentiu algo diferente do que pensou que sentiria quando visse alguém com o hábito. Não foi piedade, ou admiração, não de início, mas uma sensação incômoda. Na sua imaginação, estava a figura esquisita de um exorcista e não sabia se deveria se sentir bem perto de um.

Ainda estava observando absorto quando o padre se virou, o encarando com um rosto jovem, marcado por uma barba rala, da mesma cor do cabelo. Naquela distância, dava para ver que os olhos eram claros através dos óculos de aros prateados.

- Olá – ele falou.

Vicente se aproximou, passando entre os bancos, e estendeu a mão.

- Sua benção padre.

- Deus o abençoe.

- Desculpe interromper. É que eu pensei que Dom Lourenço estava aqui – o garoto falou, fazendo um lembrete mental de avisar à Vânia que com reverendo ele estava se referindo ao bispo, não ao padre.

- Não está. Ele saiu ontem para um sínodo em Roma. Vai demorar uns dias por lá.

- Ah... Bem, eu queria entregar isso a ele. Entrego depois.

- Espere – o padre falou, antes de Vicente dar meia volta – É importante?

- É uma casula que fiquei de entregar a ele.

- Pode deixar comigo. Peço para a arrumadeira por nos aposentos dele depois.

Pensando por um breve instante, Vicente não ver motivo para não confiar no sacerdote e o entrega o embrulho.

- Meu nome é Humberto. Cheguei essa manhã de Lisboa, para ser o novo pároco.

- Bem vindo. Prazer em conhecê-lo. Meu nome é Vicente – disse o garoto, tentando ignorar a timidez e ser simpático. Ele não conseguiu reparar se o padre tinha um sotaque que demonstrasse origem estrangeira – Ah... Onde estão os outros padres?

- Saíram para as comunidades vizinhas e alguns estão em outras cidades. Disseram para eu descansar da viagem, mas resolvi explorar o lugar. É um belo convento, sem dúvidas, e olha que já vi muitos na Europa. Vocês são pessoas de sorte por tê-los.

- Sim. Somos.

- Você participa na Igreja, Vicente? É coroinha?

- Sou sim – o garoto confirmou.

O padre coçou a barba, visivelmente satisfeito com a resposta.

- Que bom. Você vai poder me ajudar.

- No que seria?

- Antes de vir para cá, conversei com Dom Lourenço sobre celebrar missas tridentinas aqui.

- Missas... Como? – Vicente já tinha ouvido aquela palavra estranha em algum lugar, mas não sabia o seu significado.

- Tridentinas. Bem, como eu posso explicar? São celebrações em um rito antigo. Em latim. Você sabe?

- Não. No que posso ajudar nisso?

- Então. Falei com o bispo sobre celebrá-las aqui e que seria uma experiência enriquecedora para os paroquianos. Ele concordou, apesar de achar que as pessoas e os acólitos iriam estranhar, e assim eu não teria muita ajuda.

- Mas e os outros padres? Não podem ajudá-los?

- Eles não sabem latim. Essa língua deixou de ser ensinada nos seminários e escolas há anos. Além do mais, eles são ocupados, de modo é melhor ter a ajuda dos coroinhas nas celebrações, como você, por exemplo.

- Mas eu também não sei latim.

- Eu ensino. Era isso que eu queria pedir. O que acha de ter aulas comigo?

- Aulas? Como um curso?

- Sim. Não se preocupe. Não é como se eu fosse ensiná-lo a falar esse idioma fluentemente. É apenas o básico para vocês não estranharem demais e possam responder melhor nas orações. Uma horinha, uma vez por semana. O que me diz?

Vicente hesitou. Não era o que se poderia chamar de um apreciador de atividades extracurriculares fora da escola, ainda mais envolvendo línguas mortas, mas preferiu não receber o padre novo com uma negativa, principalmente considerando sua aparência saída de filmes de terror sobre possessões demoníacas.

- Por mim tudo bem.

- Muito bom – o padre estendeu o braço e ele e o garoto trocaram um aperto de mão, não era mais uma benção, era apenas o gesto comum de um acordo selado – Fico feliz que tenha aceitado. Não vai se arrepender – Humberto falou, e Vicente soube, talvez pela calma sonolenta da capela e da luz mortiça dos vitrais acima deles que geravam um clima nobre, que estava fechando um grande compromisso.

III. Puelvis et Umbra Sumus (Somos Pó e Sombra).

Deitado sobre a cama, Vicente encarava uma discreta rachadura saindo do canto da parede de seu quarto e serpenteando pelo teto branco, ramificando-se em pequenas veias como rios em um mapa. Ele estava absorto em pensamentos indefinidos, que se misturavam e se recombinavam em cenários oníricos, dando ao menino a sensação de estar à deriva em um mar de nuvens, e assim ele teria permanecido por mais tempo, se uma iluminação não o tivesse despertado. Descendo o olhar, o garoto viu a luz dourada do sol que vinha da janela perto da cama incidir na parede oposta, jogando um reflexo esbranquiçado em seu rosto.

Vicente se ergueu, ficando sentado, e olhou para seu relógio de pulso. Não pensava ter passado tanto tempo na cama e achava que estava cedo demais para o sol estar tão baixo, praticamente sumindo atrás das casas do outro lado da rua. Claro que estava enganado.

O dia tinha praticamente ido embora e seus livros, lápis e canetas ainda estavam espalhados em sua escrivaninha, o denunciando e lembrando que ele não tinha terminado suas tarefas. Por pouco não se amaldiçoou em voz alto por ser tão distraído. Bastou dar uma pausa de cinco minutos nos estudos para seus pensamentos o fazer viajar por horas.

Ele se levantou, e puxou a cadeira para se sentar. Pegou seus lápis e folheou seu livro de cálculos, tentando retomar de onde parou. No seu caderno, arranjos de equações com letras, números e sinais matemáticos tomavam as folhas em inúmeras tentativas de solucionar um problema algébrico. Olhando para aquelas fórmulas, puxando as folhas para mais perto, Vicente sentiu seu ânimo e vontade de estudar se esmaecerem ainda mais.

Não conseguia se concentrar por mais que tentasse. Fechou o caderno em um baque e uma leve baforada de ar que levantou a borda de uma folha e o pôs de lado. Pegou outro livro e folheou rapidamente umas páginas, em um capítulo que deveria cair em uma prova no final do período escolar. Este também foi para o lado, e de repente, Vicente estava guardando todo o seu material, colocando os livros em uma pilha e canetas e lápis em um copo. Sua escrivaninha estava ficando limpa e organizada novamente, quando levantou um livro e encontrou embaixo dele um pequeno caderninho de capa dura em que escrevia anotações. Era o caderno com o qual tinha ido à primeira aula de latim do padre Humberto. Vicente o abriu, lendo na primeira folha seu nome completo abaixo de “Lições de latim”.

O garoto virou a página, recostando-se mais confortavelmente na cadeira, e contemplou sua caligrafia formando as palavras dos antigos romanos em garranchos belos apenas o suficiente para serem legíveis. Não eram muitas palavras. Havia umas poucas frases curtas e simples, relacionadas principalmente a orações litúrgicas. E havia também algumas regras. “Não existem artigos definidos ou indefinidos em latim” dizia uma. Ele tinha aprendido que latim é uma língua essencialmente semântica, e a função de uma palavra é determinada por sua terminação.

Ele virou algumas folhas e viu uma pequena questão que não estava devidamente respondida. Perguntava sobre a conversão de uma palavra do gerúndio para o possessivo. O garoto pôs o caderno sobre a escrivaninha, pegou um lápis de um estojo e ajustou a luminária de mesa para ver melhor. Debruçando-se sobre suas anotações, o garoto encostou a ponta do lápis no papel e logo estava formando as palavras, sua mão conduzindo a escrita cuidadosamente. Estava terminando quando a sensação estranha e opressora ascendeu pelos seus dedos, braço, e foi de encontro ao seu peito.

Vicente suspirou, tomando fôlego. Talvez fosse o cansaço, ou a postura. Ficou ereto na cadeira e tentou escrever, mas não conseguiu. Sua mão estava trêmula. Ele piscou os olhos e tentou focar no caderno. Estava lagrimejando e sua visão ficava turva. A face esquentava, gotículas de suor afloravam na pele avermelhada e escorriam até caírem na escrivaninha.

O lápis começou a pesar ao mesmo tempo em que sua mão se recusava a soltá-lo. Seus dedos – que estavam paralisados como o resto de seu corpo – não afrouxavam o aperto ao redor do objeto e sem desviar os olhos, ele viu faíscas surgirem inesperadamente no canto das palavras e percorrerem as linhas de canetas e lápis, incandescendo a tinta e a grafite, preenchendo as palavras de luz.

Seria uma visão bela, se não lhe causasse o que poderia ser descrito como uma verdadeira tortura. O ar se fechou ao seu redor, como se um manto invisível o cobrisse. A agonia dilacerante faria qualquer outro desmaiar, o que curiosamente não acontecia com ele. Estava desperto o suficiente para continuar lendo as palavras em latim. Não apenas ler. As palavras vinham por si só até ele, sussurros que iam diretamente para sua alma.

Vicente fez esforço para se afastar, se levantar e correr, mas não conseguia. A dor que não era corpórea, que de uma maneira estranha crepitava em seu espírito, o impedia de fazer movimentos bruscos e nenhum som audível saía de sua boca. Porém, tudo chegou ao ponto que nem mesmo o torpor e a paralisia o impediram de cair sobre a escrivaninha, derrubando os livros, e indo ao chão quando sua cadeira virou. Ele se arrastou pelo carpete, e se virou para cima, de costas contra o piso, vendo a cama ao lado, que mesmo perto não conseguia alcançar, e a luz do sol na parede sumindo até desaparecer, mergulhando o quarto na penumbra, onde ele foi entregue à solidão e a visão aterradora dos seus pecados surgindo para ele na medida em que a dor avançava. Todos os rancores, todos a escolhas erradas que tenha tomado, mesmo que pequenas, mesmo que parecesse sem importância no começo, vieram para ele e eram como vermes lhe devorando a carne. Sua esperança e toda pretensão de felicidade se esvaiam até serem reduzidas a nada, como ele próprio era um nada. Era poeira no vazio, e antes de cair na escuridão e perder os sentidos completamente ele foi capaz de perceber, como um último fôlego de lucidez, que depois de tudo a morte não parecia tão ruim, afinal.

IV. Valle Lacrimarum (Vale de Lágrimas).

Nova Florença era uma cidade pequena, de ar provinciano e casas históricas, onde homens fumavam seus cachimbos sossegados em suas cadeiras e jovens mulheres observavam das janelas as ruas pouco movimentadas calçadas de paralelepípedos.

Para Vicente, essa tranqüilidade das ruas, cujo trânsito era mais feito de carroças do que de carros, era uma vantagem, já que era mais seguro para se andar distraído. Conhecia tão bem o caminho para o convento, que saia de casa perdido em pensamentos e quando dava por si, estava lá, mal tendo prestado atenção por onde tinha andado.

Naquele dia, estava ainda mais desconcentrado. As lembranças atormentadoras daquela tarde fatídica tomavam sua mente de assalto, sendo quase impossível esquecê-las, mesmo se as dores por seu corpo por ter dormido no chão não colaborassem para trazê-las à tona. Depois que perdeu a consciência em seu quarto, sucumbindo à dor e à tristeza angustiantes, ele acordou no carpete, percebendo com constrangimento que estava com as calças molhadas. Os livros estavam caídos no chão, e ao se aproximar pegou o caderno e viu a resposta escrita, como um sinal de que tudo tinha sido real, e não um pesadelo. Ainda assim era difícil de acreditar. Sentia calafrios somente em fechar os olhos, como se voltasse para aquele momento.

Tinha lavado o rosto pela manhã, tentando disfarçar o semblante abatido, os olhos fundos e a vista espantada. A mãe dele tinha feito um comentário sobre seu aspecto e falta de apetite, pondo a mão em sua testa para tentar identificar alguma febre, mas não insistiu no assunto, pondo a culpa do abatimento do filho no clima frio e lhe dando uma aspirina.

Ele estava indo para mais uma aula do padre Humberto, o que não era o que desejava. Queria dizer que estava doente e por isso faltaria, o que não era um absurdo, dada sua aparência. Mas sua mãe havia insistido, dizendo que não seria educado faltar às aulas do padre e que isso só o faria bem. Inicialmente relutante em sequer pegar no caderno, ele acabou obedecendo, saindo pelas ruas tortas e estreitas da cidade com um andar ligeiramente trôpego, sem se importar com o olhar de alguns passantes que pareciam olhar para um garoto alcoolizado.

Vicente virou em uma esquina não muito movimentada e viu a fileira de copas das árvores elevando-se como uma muralha verde sobre o longo muro de fachada do convento, onde, no centro, estava o portão negro de ferro. O garoto chegou, abrindo o portão e entrando ao passar por ele no pátio com grama, cortado por um caminho calçado de pedras que levava até a porta do convento.

O coroinha entrou, e após a costumeira reverência a Patrício Loreto que continuava silenciosamente no mesmo lugar, seguiu pelo corredor e entrou em uma sala que em muito lembrava uma sala de aula. Havia uma lousa perto da porta e na parede oposta estavam as janelas de cortinas abertas através das quais era possível ver o pátio externo e os troncos das árvores perto do muro.

Outros cinco jovens estavam espalhados pelo recinto, sentados nos bancos voltados para o quadro negro. Compartilhavam com Vicente, além do fato de serem coroinhas e estarem ali para a aula do padre, o aspecto desanimado e o olhar deprimido. Parecia que o ânimo de todos tinha sido varrido por um vendaval.

Sem falar nada, nem mesmo um “oi”, Vicente se sentou perto de seu amigo Ítalo, que estava encolhido na cadeira, curvado de cabeça baixa e mãos entre as pernas, como se estivesse com frio.

- O padre já vem? – perguntou ele, a voz diminuta, quase sumindo.

- Não o vi – Vicente respondeu, pondo o caderno na mesa e olhando para o colega. Mesmo ele se surpreendeu com o aspecto do amigo.

- Está gripado também?

Ítalo se virou, olhando para ele.

- Não sei. Não estou me sentindo bem esses dias. Tive um pesadelo horrível.

Vicente poderia não compreender como um pesadelo faria alguém ficar tão abatido, se não fosse sua experiência pessoal. Surpreso com a coincidência, ele percorre o olhar pelos outros na sala. Perto deles, Fábio olhava pela janela, ombros caídos, cabeça ligeiramente baixa em uma postura tão decaída e tristonha que fez Vicente se sentir ainda pior. No fundo da sala, Ivan estava encostado na parede de braços cruzados, também cabisbaixo. Outros dois estavam sentados. Um loiro, de óculos, apoiava a cabeça nas mãos, enquanto o segundo demonstrava um interesse peculiar pelo piso. O clima era fúnebre no ambiente, e Vicente conteve a vontade de perguntar o que estava acontecendo para deixar todos daquele jeito. Não tinha certeza se obteria a resposta, e duvidava de que os outros a possuísse. Ele se virou na cadeira e viu o padre entrar na sala segurando seus livros antigos, a barra negra da batina esvoaçando pelos tornozelos. Vicente não deixou de olhar para ela, achava que um tempo se habituaria à vestimenta do sacerdote, mas infelizmente esse tempo ainda não havia chegado.

- Boa tarde, gente! – falou Humberto, obtendo grunhidos desanimados como resposta. Ele reparou na cara de velório dos seus alunos – Aconteceu alguma coisa?

- Frio – disse Ivan, como se a palavra explicasse muita coisa.

- É – o padre comentou – Parece que o inverno afetou vocês mais do que pensei. Venham mais para perto. Por que estão tão espalhados? – ele fez gesto para os garotos se aproximarem.

Vicente se levantou e sentou na cadeira da frente. Mesmo sem vontade, os outros também se levantaram e foram para as primeiras fileiras, perto da lousa. Depois que fizeram as orações iniciais, o padre falou.

- Bem, sem querer ser um mestre chato, mas vocês fizeram as lições que mandei?

Os coroinhas se entreolharam, olhando furtivamente para os cadernos dos outros que permaneciam fechados em frente aos seus respectivos donos, intocados, como se pudesse explodir se fossem abertos.

- Fizeram?

- Sim – disse o loiro de óculos, de nome Robson – Eu tentei, mas não sei se compreendi tudo. Acho que os outros também.

- Tudo bem. Tentar já é um ótimo começo. Abram seus cadernos.

Vicente olhou para a capa do seu e, suspendendo a respiração, o abriu. As palavras estavam onde deveriam estar. Nada da dor fulminante, nada de ter seus erros jogados contra ele em chamas invisíveis, o que fez Vicente pensar se tudo não teria passado de uma simples alucinação.

A aula transcorreu normalmente. Humberto corrigiu os deveres anteriores e explicou mais as regras do latim, ressaltando as exceções que o idioma possui. Ele passou um pouco mais de vocabulário, principalmente as palavras ligadas à religião, como “ecclesia” que era Igreja, “dominus” que quer dizer senhor e “verbum” que é palavra. Parecia estar realmente disposto a fazê-los entender aquela língua.

Sem deixar de sentir certo mal-estar, Vicente ficou grato quando a aula terminou. Eles se despediram, com mais uma oração para encerrar, e saíram pelo corredor, tendo o padre tomado outra direção, para ir aos seus aposentos. Vicente parou no claustro, esperando Ítalo ir ao refeitório beber água e reparou que Fábio ainda estava ali, sentado em um batente, seu ombro estava encostado em uma coluna e ele olhava para o chão, a auréola de cachos negros caída sobre a testa, quase bloqueando a visão de seus olhos e escondendo sua expressão.

Vicente caminhou até ele. Não queria ser inconveniente, mas parecia que algo estava errado.

- Oi, Fábio. Você está bem? – perguntou.

Fábio olhou para ele e mexeu os lábios, lutando com a resposta.

- Sim. Estou bem – disse, por fim. A mentira quase o fez engasgar. O rapaz se levantou não muito disposto a conversações e, sem se despedir, saiu desanimado pelo corredor, carregando o caderno com a mesma gravidade de quem carregava uma culpa. Vicente acompanhava sua partida em silêncio, quando Ítalo chegou ao seu lado.

- O Fábio está estranho – comentou Vicente – Parece triste.

- É verdade – concordou Ítalo – Mas, não sei se você reparou – ele continuou – Estamos todos tristes.

V. Cecidit Angelus (Anjo Caído).

O marasmo do dia de domingo foi abalado por uma notícia chocante que se espalhou boca a boca pela cidade, fazendo pessoas saírem incrédulas de suas casas, interrompendo suas vidinhas pacatas e suas rotinas sem graça para irem para o local ver com os próprios olhos o que se comentava e se acumularem ao lado da igreja matriz, cochichando uns com os outros, o burburinho se elevando feito o barulho de um enxame.

Vicente estava em casa, assistindo televisão, quando ouviu alguém chegar à calçada e comentar com sua mãe o que tinha acabado de acontecer. Quem falava, ou como essa pessoa soube o que aconteceu, Vicente não conferiu. Pegou sua bicicleta e saiu em disparada pelas ruas em direção à catedral, mas ao chegar não encontrou mais o corpo e ninguém diria que aquele lugar era o cenário de uma tragédia, se não fossem as pessoas dispersas pela praça e pela calçada da igreja, testemunhando e confirmando o boato de que um jovem coroinha tinha acabado de se jogar do teto da catedral.

Uma ambulância já o tinha levado para o hospital, muito embora todos soubessem que seria impossível ele ter sobrevivido àquela queda e teorias se avolumavam na tentativa de entender o que se passou, se teria como alguém ter o empurrado e quem e porque faria isso. Nos círculos de conversas, pessoas que estavam na missa, e que após a benção final saíram, encontrando o corpo do coroinha ainda vestido com a alva caído, disseram que ele apresentava um comportamento estranho antes e durante a celebração, tanto que sem avisar e sem motivo aparente abandonou a celebração e correu para a sacristia, deixando o sacerdote atônito. Todas as teorias convergiam para a hipótese mais plausível: Suicídio.

A razão exata que o tinha levado a cometer tal ato era desconhecida, até mesmo pela família que em meio ao luto tinha dito que mesmo um pouco melancólico, Fábio era um garoto como qualquer outro. Vicente também preferia guardar as suposições para si. Falava pouco e diziam que seu jeito recluso e fechado se devia ao fato de ter perdido um colega, ainda mais de uma maneira tão brutal. Seu pai sugeriu que o delegado que estava averiguando o caso, falando com todos os conhecidos, lhe fizesse poucas perguntas, o que Vicente não considerava uma má idéia. Não estava em condições para interrogatórios, já que tinha seus próprios problemas para lidar desde seu pesadelo, como a agonia, as lembranças aterradoras e a tristeza que inundava seu interior, ameaçando afogá-lo, por mais que ele tentasse se livrar dela, por mais que tentasse sorrir.

Depois do enterro, ele se afastou, deixando seus pais dar os pêsames aos familiares de Fábio e saiu do cemitério, sem mais suportar os cochichos de pessoas que se questionavam se seria conveniente um suicida ter uma missa de corpo presente e ser enterrado como um cristão. Ele se sentou em um banco fora do cemitério e fechou os olhos, sentindo a luz do sol da manhã tocar seu rosto. Atrás dele, lápides e asas de anjos de pedra dos túmulos se sobressaiam por cima do muro.

- Oi – veio uma voz familiar. Vicente soube quem era antes de abrir os olhos e ver Ítalo se aproximar para se sentar ao seu lado.

- Faz o quê aqui sozinho?

- Nada – Vicente falou – Não estava me sentindo muito bem. Queria só pegar um ar que não tivesse cheiro de rosas ou velas.

Ítalo se virou e olhou para os portões, onde pessoas de preto saiam e entravam, trocando condolências e se consolando mutuamente.

- Foi um dia e tanto.

- É. Foi.

- Bem, é... – começou Ítalo, como se pensasse na melhor maneira de tocar no assunto – Você já parou para pensar se tudo isso teria acontecido por um motivo?

- O quê? Está falando do Fábio?

- É. Sobre o que ele fez.

- Não. Prefiro não ficar pensando nisso.

- Eu penso. Até cheguei a uma conclusão, mas não sei se quero estar certo.

Vicente olhou para ele.

- Como assim?

- E se... – Ítalo baixou a voz, confidenciando – E se o padre estiver por trás disso?

- Que padre?

- O Humberto.

- Não estou entendendo. Por que acha que ele tem algo a ver com a morte do Fábio?

- Você não percebeu que estamos diferentes desde que ele chegou? Eu, você e todos os outros coroinhas. Estamos mais esmorecidos desde que começamos a ir naquelas aulas dele.

- Deve ser impressão. Vai ver que é o frio, como o Ivan falou – disse Vicente, apesar de sentir que era algo mais.

- Não sei. Parece que tem uma força, sei lá. Não é natural.

- Não dever ser ele. Como ele faria isso?

- Ora, ele não usa aquela roupa preta? Talvez ele seja um exorcista e esteja nos influenciando para não pecarmos mais.

- Isso é ridículo, Ítalo – falou Vicente, se sentindo impelido a defender Humberto, mesmo não simpatizando com ele. Talvez porque lhe incomodava a idéia de um sacerdote, alguém que costumava admirar, esteja de alguma forma lhe fazendo mal – Bem, é melhor eu ir falar com meus pais. Eles devem estar me procurando – disse Vicente, se levantando.

- Eu tive um pesadelo – Ítalo falou e Vicente se deteve – Eu estava fazendo os deveres do padre, no meu quarto, e depois senti uma dor como se eu fosse esmagado. Não sei explicar. Tive a impressão de que as palavras brilhavam... Eu vi...

- O que você viu? – Vicente fitou o amigo.

- Não sei. Coisas ruins sobre eu mesmo, como um espelho.

Vicente não sabia que reação deveria ter. Não parecia ser uma simples coincidência. Não poderia ser.

- Isso deve ter alguma coisa a ver com esse padre e com as aulas dele – Ítalo finalizou.

- Não dever ser – disse Vicente, sabendo que estava indo contra as evidências – Por enquanto não podemos acusar ninguém. Não temos certeza, nem como provar.

- Pode ser. Mas não quero me arriscar. Não vou mais nessas aulas e sugiro que você faça o mesmo.

- Você não pode fazer isso. Não seria justo. O padre Humberto nunca nos deu um motivo forte para desconfiar dele.

- De todo modo, eu não estou em condições de encarar mais latim. Sinto muito, mas não vou mais nessas aulas e talvez até evite ficar muito perto desse padre. Ele já começou a celebrar essas missas em rito antigo?

- Não. Ele estava deixando para quando estivéssemos mais familiarizados com o latim e depois de tudo, não sei se ele vai começar logo.

- E você? Ainda vai nessas aulas?

- Não quero me afastar assim. Ele pode ser estranho, mas é uma boa pessoa.

Ítalo se levantou.

- Espero que saiba o que está fazendo. Tem certeza de que confia nele?

- Sim. Eu tenho – disse Vicente, tentando exprimir o máximo de sinceridade em suas palavras. Estava disposto a ir contra seus temores e manter alguma fé, uma fé que deveria o impedir de enlouquecer, que o faria permanecer de pé, uma fé que estava prestes a ser novamente abalada.

VI. Pax (Paz).

O caminho por onde Michele andava subia um aclive em direção a sua casa no alto da colina e na subida ela podia ver os telhados avermelhados de algumas casas do bairro e uma estrada asfaltada, cercada do verde da vegetação. O lugar não era muito longe da área mais urbana da cidade. Com uma caminhada de quarenta minutos se estava no centro de Nova Florença, e mesmo a cidade não sendo nenhuma metrópole, ou ela ficando mais longe das principais lojas, a garota gostava de morar ali, um pouco mais afastada, em um recanto de tranqüilidade onde ainda se ouvia o canto dos pássaros.

Ela passou pelo terreiro de sua casa e abriu a porta com a mão que não segurava a sacola de compras que carregava.

- Ivan! – ela chamou pelo irmão mais novo. Como eles viviam sozinhos com a mãe que passava o dia trabalhando no salão, os dois tinham que dividir as tarefas domésticas, o que Ivan sempre evitava, de uma forma ou de outra. Tinha sempre uma desculpa. Era uma missa em que precisava ir, a reunião de coroinhas, um trabalho da escola na casa de um colega. Recentemente, ele inventou umas aulas de violão e como se não fosse suficiente, arrumou também umas aulas de latim com um padre novo que chegou da Europa.

Michele dizia que talvez fosse melhor o irmão caçula deixar o trabalho na Igreja, desocupando o lugar para outros meninos mais novos. Implicava dizendo que Ivan nunca conseguiria uma namorada se continuasse sendo, como dizia ela, um rato de sacristia, ou um beato dos altares. Para sua frustração, ela não conseguia o efeito desejado com as piadas, e Ivan continuava preferindo acolitar missas a lavar a louça.

Na sala, a televisão estava ligada sem ninguém estar assistindo. Ela desligou o aparelho e foi para a cozinha, deixando a sacola sobre a mesa.

- Ivan, cadê você? – Michele foi até o quarto dele, bateu na porta e sem obter nenhuma manifestação da parte dele, abriu. A cama estava desarrumada e o violão estava encostado na parede ao lado, quieto e desolado. “Onde esse garoto se meteu?” ela se perguntava. Certamente teria recebido o telefonema de um amiguinho e saído para encontrá-lo. Ela foi até o banheiro e o encontrou também vazio. Michele já preparava um discurso exagerado com o qual comunicaria à sua mãe que o irmão tinha deixado a casa sozinha e talvez nem chegasse a tempo de ajudá-la no jantar, quando resolveu dar uma olhada no quintal. “Dessa vez ele não escapa” ela pensou, saindo pela porta dos fundos e indo para fora.

Estava tudo com uma calma que chegava a ser desconfortante, assim como no interior da casa. Nos arredores, não se ouvia um pio de uma ave e nada parecia diferente no ambiente, a não ser um pequeno elemento que se destacou na sua visão: um pequeno retângulo branco sobre a grama perto do tronco da mangueira, quase no fundo do quintal. Ela se aproximou e pegou o caderno cheio de anotações do irmão. As folhas estavam cheias de notas musicais, abaixo de letras de músicas tristes. As composições de Ivan falavam de sentimentos obscuros. Eram verdadeiros poemas sobre melancolia, incluindo palavras em latim nos versos. Ela levantou o olhar das folhas e ao procurar ao redor, notou uma corda amarrado em um dos galhos da mangueira. Dando passos lentos, ela deu a volta no tronco da árvore, se deparando atrás dela com o corpo suspenso pelo pescoço. Olhando para o irmão, Michele deixou o caderno cair e seu grito rompeu a quietude.

VII. Confitemini (Confesse).

Onde Vicente se encontrava, andando de um lado para outro perto de umas das colunas da nave principal, era possível ouvir o cântico entoado pelo coral ecoando pela catedral, o que ele apreciaria se não estivesse agitado como estava. Depois que a igreja foi desinterditada, após as investigações concluírem que o que aconteceu com Fábio foi mesmo suicídio, o coral fazia seu primeiro ensaio depois do acontecimento, e o padre Humberto tinha marcado um horário para atender a confissões. Ao saber que ele estava ali, Vicente foi depressa esperá-lo, o livro de anotações em mãos. O garoto não sabia exatamente o motivo que o fez trazê-lo. Talvez esperasse mostrar ao padre, ou entregar para ele, se livrando assim daquele tormento interior. Vicente não sabia ao certo o que deveria fazer. Com mais uma morte, ele precisava desesperadamente falar com alguém e, por não poder falar com seus amigos e Dom Lourenço demorando a voltar de Roma, tinha concluído que esse alguém deveria ser o próprio Humberto. Precisava tirar essa dúvida da cabeça, ou enlouqueceria.

A figura trajada de preto do sacerdote apareceu entrando pela porta e caminhou pela igreja no lado oposto ao lado em que Vicente estava. O garoto passou pelos bancos e foi correndo encontrá-lo.

- Padre! – ele chamou – Preciso falar com você.

- Sim? – o padre o olhou através dos óculos – No que posso ajudar?

- É... – Vicente apertou o caderno entre as mãos – Bem, quero confessar...

- Ah... Sim – Humberto olhou para o relógio de pulso – Estava planejando começar apenas daqui a pouco, mas posso lhe atender. Venha comigo.

Sem falar nada, Vicente acompanhou Humberto até onde estava o confessionário. O coral se silenciava, terminando os ensaios do dia. Vicente se sentou, enquanto o padre entrava na cabine de madeira. Após impor as mãos, fazendo uma oração, o sacerdote falou:

- Pode falar.

Vicente, no entanto, permaneceu calado. Agora que deveria expor o que tinha habitado seus pensamentos, simplesmente não encontrava as palavras certas. Não sabia como falar da sua alucinação, em seu quarto, da sensação de estar afundando em um lodo de desesperança, e, principalmente, da suspeita de Ítalo – que passava a ser também dele – de que o homem responsável por tudo estava ali, diante dele, pedindo que confessasse seus pecados para perdoá-los.

- Tem muita coisa acontecendo, padre.

- Sim – Humberto falou – Imagino que seja difícil para você.

- Difícil?

- Ter perdido os colegas dessa maneira, em um espaço tão curto de tempo.

- Será... – disse Vicente, acumulando coragem – Fico pensando se tudo isso não teria acontecido por um motivo – falou finalmente, lembrando-se das palavras de Ítalo.

Humberto ficou um instante em silêncio. Era impossível identificar sua expressão através da fina grelha de madeira que os separava.

- O que quer dizer?

- Não sei... Talvez eu me sinta inclinado a culpar algo pelo que aconteceu... Ou alguém.

- Eu compreendo que quando pessoas, ainda mais da sua idade, se deparam com situações como essa, elas sintam revolta e queiram culpar alguém ou a si mesmas, mas não podemos responder pelas atitudes dos outros. Seja lá o que tenha se passado na cabeça deles, eles tomaram a escolha e provavelmente não poderíamos fazer muita coisa.

- Está dizendo que seria inevitável?

- Não diria inevitável, mas foi tudo muito inesperado... Ninguém sabia o que eles pretendiam. De qualquer forma, vamos confiar na providência divina. Deus deve ter um plano maior para tirar um bem de tudo isso.

Vicente ficou quieto, refletindo. “Um plano maior para tirar um bem de tudo isso”. As palavras reconfortantes flutuavam em sua mente e ele tentava se agarrar a elas como uma tábua de salvação em meio a uma correnteza de angustia que o levaria, talvez, a um fim que ele não ousava mencionar em voz alta, algo que Fábio e Ivan experimentaram.

O garoto suspirou.

- Suas aulas... – ele começou, escolhendo as palavras – Sabe, sobre latim...

- O que têm elas?

- Você vai continuar com elas... Depois de... Você sabe?

- Oh... Está difícil depois que tudo aconteceu. Não tenho mais alunos – falou o padre, o que era verdade. Fábio e Ivan estavam mortos, Ítalo tinha desistido completamente, Robson estava doente de cama e outro coroinha, chamado Flávio, tinha misteriosamente se mudado às pressas da cidade, sobrando apenas Vicente – Mas pretendo retomar assim que possível. Provavelmente vou recomeçar dando aulas para o coral.

- Para o coral? – Vicente falou, de sobressalto.

- Sim. Algum problema?

- Não – disse o garoto, repreendendo a si mesmo pela reação abrupta – Mas por que o coral?

- Bem, canto gregoriano é uma parte importante da missa tridentina e é cantado em latim.

Sem que conseguisse evitar, Vicente visualizava em sua imaginação os membros do coral definhando de tristeza um a um, alguns chegando ao ponto de acabar com a própria vida e ele afastou aquelas imagens de sua mente.

- Acha que eles irão a essas aulas?

- Sim. Por que não iriam?

- É – o coroinha concordou – Por que não?

- Há algo mais que gostaria de falar? – Humberto perguntou, após uma pausa.

- Não, padre. Era só isso mesmo. Obrigado.

- Está bem.

Embora não tenha sido verdadeiramente uma confissão, o padre impôs as mãos e pronunciou a sentença de absolvição. O padre saiu do confessionário e antes de sair para a sacristia, encarou Vicente.

- Tudo vai melhorar, você vai ver – ele disse e saiu, deixando o garoto sozinho. Ele não sabia se sentia mais aliviado com a confissão, e lutava interiormente para não se perturbar demais com sua covardia por não ter dito tudo. Ele saiu caminhando e encontrou, na nave principal, meninas que permaneceram na igreja após o ensaio. Duas delas conversavam encostadas a uma coluna, enquanto outra, que Vicente conhecia da escola, estava sentada em um banco, organizando as folhas com as letras dos cânticos em uma pasta. Ele passava por ela, em silêncio, quando algo lhe ocorreu. Era uma idéia um tanto absurda, mas muito persuasiva. Era uma maneira de tirar a prova se Ítalo estava certo ou não.

- Priscila! – ele se aproximou dela.

A garota fechou a pasta e se levantou.

- O que é?

- Você conhece o padre Humberto, não conhece?

- Não é aquele que estava aqui agora a pouco? Um que usa vestido.

- É uma batina.

- O que tem ele?

- Ele ensina... Quero dizer, ensinava latim para os coroinhas, e me disse que vai ensinar para o coral também.

- Ensinar? Em aulas, você dizer?

- Sim.

- Será que vai ser obrigatório? Já tenho muitas tarefas.

- Bem, não sei. Mas ele vai ser o novo pároco. Vai assumir quando Dom Lourenço chegar. Ele pode exigir.

- Ah... – Priscila fez uma careta – Ainda mais essa.

- Olha, para mostrar que sou teu amigo, vou te deixar ficar com meu caderno – Vicente estendeu o caderno e Priscila o olhou com estranheza – Para você ir vendo o que ele passa – ele completou – Talvez a ajude.

A garota pegou o caderno.

- Não vai precisar dele?

- Não. Ele não dá mais aulas para os coroinhas. Fique com ele para dar uma olhada e depois me devolve.

- Se você diz – Priscila olhou o caderno, virando frente e verso, como se julgasse sua utilidade – Obrigada.

- Não precisa agradecer – Vicente falou. Não estava nem um pouco orgulhoso de estar fazendo aquilo, usando a garota como cobaia, mas a curiosidade de saber o que aconteceria era maior que ele. Era seu maior pecado.

VIII. Mea Máxima Culpa (Minha Grande Culpa).

Aquele jantar era uma das raras refeições que a família Aquino fazia reunida. Sentados à mesa, estavam Vicente, seu pai, sua mãe, seus dois irmãos e seu tio, se servindo da comida que Bárbara havia passado a tarde preparando. O garoto estava mais calado que o habitual, remexendo seu prato e levando uma ou outra colherada à boca, mais para agradar sua mãe do que por vontade. Ele se sentia indisposto e a amargura que parecia estar entranhada em sua alma estava maior do que nunca, mas nas poucas vezes que disse que queria se levantar e subir para seu quarto, Bárbara havia lhe lançado um olhar afiado e disse que era uma refeição em família, por isso todos deviam estar juntos. Vicente se encolheu em sua cadeira e, conformado, continuou remexendo seu prato, bebendo goles de seu suco de maracujá. O barulho de bater de colheres era entrecortado por falas avulsas de seus familiares, em tentativas de iniciar uma conversa. Em dado momento, Bárbara olhou para os presentes.

- Pois é, parece que houve uma epidemia de loucura nessa cidade. Não sei o que houve com esses jovens.

- É mesmo. Acho que isso é algum tipo de imitação – disse o pai de Vicente – Um vê o outro e acaba imitando por causa do trauma. Só espero que essa fase tenha acabado.

- Ah! Vocês não souberam? – disse Bárbara, como se tivesse acabado de se lembrar de algo importante que deveria dizer – A Priscila, aquela filha da Dona Rute que canta no coral... Conhecem?

- O que tem ela? – perguntou o irmão mais velho.

- Queria cortar os pulsos ontem. De uma hora para outra bateu a depressão na menina, a mãe dela me contou hoje na mercearia.

Vicente deixou a colher cair na mesa. Os outros olharam para ele, vendo seu rosto pálido com uma expressão de choque.

- Preciso... Vou ao banheiro – ele se levantou em um arrastar de cadeira e saiu sem terminar seu prato.

- Ele não parece bem.

- As duas mortes afetaram muito todo muito – disse Bárbara – Ele os conhecia.

- Vai ver ocorreu o mesmo com essa tal de Priscila. Ela deve ter ficado muito abalada – especulou o tio. Assim, começaram uma discussão sobre traumas, juventude e sobre se não seria melhor afastar totalmente Vicente dos trabalhos na Igreja para que se recuperasse.

O garoto não voltou para conferir o final da conversa e o que haviam decidido sobre ele. Lavou o rosto na pia do banheiro e se olhou no espelho, vendo o rosto abatido de quem tinha acabado de receber um golpe. Uma dor afiada no peito o fazia sentir sangrar interiormente e sem esperar pela sobremesa e sem dar boa noite à sua família, ele subiu para seu quarto, se jogando na cama. Esgotado, se virou sobre seu edredom para pegar seu telefone na mesinha ao lado, encarando o aparelho na mão. Considerava se seria conveniente telefonar para Ítalo, nem que fosse apenas para ouvir uma voz familiar. Mas o que poderia falar? Que o amigo estava certo e que era verdade que as lições do padre provocavam a dor a quem a tivesse? Que ele comprovou isso emprestando seu caderno consciente das possibilidades, o que o fazia de certo modo o culpado pela tentativa de suicídio de Priscila?

Vicente devolveu o telefone à mesinha e se recolheu na cama, seus braços cruzados sobre o peito como se abraçasse a si mesmo. Ali ficou ele, suas pálpebras pesando, obrigando seus olhos se fecharem e o privando do mundo que se desbotava ao redor. O sono não demorou a vir. Foi adormecendo, se entregando à correnteza sombria e profunda como um rio subterrâneo que tinha começado naquele mesmo quarto, e ela o levou em seus braços, gentilmente. O carregou como carregou Fábio e Ivan para o mesmo fim.

Pouco tempo depois, Vicente se levantou, calçando seus chinelos que estavam aos pés da cama. Abriu a porta de seu quarto e, andando calmamente, foi até a sala de jantar, de onde viu sua família, pais, tio, e irmãos, reunidos no sofá, assistindo a um programa de televisão. Uma participante respondia perguntas e realizava provas para ganhar o grande prêmio. A platéia ria e aplaudia, e as pessoas na sala imitavam, dando sugestões para a mulher do programa, como se ela pudesse ouvir.

Vicente continuou e chegou à cozinha, passando sua mão por um balcão e tamborilando seus dedos pela pia. Foi até o armário e viu seu reflexo nos copos e taças, agora o reflexo de alguém que sabia o que queria. Ele pegou na alça de uma gaveta e a abriu, vendo a variedade de facas de diversos tamanhos. Passou seus dedos pelos cabos e acabou pegando uma, com o cabo de madeira. Lembrava que era uma de suas favoritas. Levantou a faca até a altura dos olhos e a avaliou, apreciando seu brilho metálico. “Faca, amiga ou inimiga?” quase declamou o poema, enquanto seus pais continuavam na sala, alheios ao que estava acontecendo na casa, ao que seu filho estava prestes a fazer.

Devagar, encostou a parte cortante da lâmina em sua garganta, sentindo o metal frio em sua pele, espalhando um calafrio prazeroso por sua jugular. Bastava pouco, muito pouco. Era muito fácil acabar com tudo. Com um corte, um simples corte, a miséria de sua vida chegaria ao fim. Apenas um corte e estaria acabado.

“Não”. O pensamento lhe ocorreu tão espontaneamente que não parecia ter saído dele, como se algo lhe soprasse nos ouvidos. “Não estará acabado. Não enquanto o padre continuar vivo. É ele o perigo. Não haverá descanso se ele continuar fazendo o que faz”.

Vicente abaixou a faca. “Sim, o padre” respondeu em um diálogo aparentemente consigo mesmo. Ele escondeu o objeto sob a camisa, deu a volta e caminhou até a sala. Sua família ainda estava vidrada na televisão, a mulher estava quase ganhando o prêmio final e eles torciam para ela, não dando atenção ao garoto que abria a porta e saia para a rua com a tranqüilidade e a determinação de quem tinha uma missão a cumprir e sabia que não podia falhar.

IX. Liberta Nos a Malo (Livrai-nos do Mal).

Um crucifixo na parede era, decerto, a maior companhia do padre no quarto onde estava recluso desde o jantar. Isso além do livro que lia, sentado na cama que, com uma cômoda com poucos pertences e com o guarda-roupa, formava a escassa mobília do recinto. Não que Humberto não gostasse de estar com os outros sacerdotes que moravam no convento São Domingos, mas nesses anos de seminário e nas viagens que fazia depois de ordenado havia se acostumado a suas leituras solitárias, ocasião em que se preparava para suas homilias e refletia acerca de questões em que deveria guiar os que vinham se confessar e pedir um conselho, o que acontecia mesmo quando ele estava na rua.

No espaço de tempo de um virar de página a luz se apagou, deixando o quarto em uma escuridão ferida apenas por filetes de luz do luar que escapavam das frestas entre as cortinas da janela. Humberto deixou o livro sobre a cama e se levantou, tateando as paredes até encontrar o interruptor. Apertou para cima e para baixo, mas nada aconteceu. Ele continuou e chegou à porta. Abriu e olhou para fora, encontrando o corredor na mesma situação dos seus aposentos. Não se via praticamente nada olhando em qualquer direção. De repente, seus olhos foram atraídos por um brilho pálido, um feixe de luz peregrina vinha encontrando seu caminho pelas sombras até ele.

- Gregório – disse o padre quando o outro sacerdote chegou até ele com uma lanterna – O que houve?

- Não sei. Parece que foi uma queda de energia – Gregório falou com um pouco de desapontamento – Você estava dormindo?

- Não. Estava lendo. Só você está de pé?

- Sim. Os outros estão dormindo.

- Acha que pode demorar a voltar?

- Não sei. O estranho é que da janela do meu quarto dá para ver um poste da rua e ele está aceso. Então deve ser um problema aqui. Você tem uma lanterna?

- Tenho. Pode me ajudar a procurar?

Gregório entrou no quarto com Humberto e iluminou as gavetas da cômoda até o padre encontrar uma lanterna.

- Aqui está! – falou Humberto, acendendo ela.

- Vou verificar a energia. Pode ser um problema com os fusíveis.

- Precisa de ajuda?

- Não. Se for algo sério deixo para amanhã.

- Bem, já que me levantei vou a cozinha beber um copo d’água. Vou lhe acompanhar até o final do corredor.

- Tudo bem. Vamos.

Gregório e Humberto saíram do quarto. O padre fechou a porta e os dois seguiram pelo corredor, iluminado com suas lanternas pedaços do convento que nas sombras da noite parecia adquirir dimensões muito maiores, como um labirinto de pedra.

- Tem certeza de que não precisa de ajuda? – perguntou Humberto quando chegaram ao ponto em que deveriam se separar.

- Tenho. Vou dar apenas uma olhada – Gregório falou. Com isso, os dois seguiram caminhos diferentes.

Embora fosse novo no lugar, Humberto se guiou sem problemas até a cozinha. Tinha explorado o convento o suficiente para andar por ele, apesar da falta de luz, e encontrar as melhores maneiras de chegar onde queria. Depois que bebeu água, ele voltou pegando um atalho pelo claustro. O pátio interno era iluminado por um luar fraco, a luz de um aspecto glacial. O padre chegou nele e olhou para o céu incrustado de estrelas prateadas, apreciando a brisa fria que soprava por cima do telhado, até que um barulho veio do lado, além das sombras.

Humberto se virou, procurando de onde aquilo tinha vindo.

- Gregório? É você? – disse, imaginando se outro padre teria se levantado. Apontou a lanterna e as colunas lançavam sombras verticais que se moviam pelas paredes conforme ele guiava a luz ao redor, e tomou um susto quando ela incidiu sobre um garoto parado, olhando para ele.

- Oi? – Humberto estreitou os olhos, tentando identificar a pessoa – Vicente? – ele falou ao reconhecer o coroinha – O que faz aqui há essa hora?

O padre fez menção de dar um passo em direção ao garoto, mas se deteve quando viu o reflexo da lâmina na mão do coroinha. Antes que Humberto pudesse articular um pensamento claro ou uma pergunta sobre aquilo, Vicente correu em sua direção, o olhar inalterado e frio como o de uma ave de rapina em seu rosto não deixava dúvida do que queria. O padre se esquivou do ataque, escapando por pouco de ser esfaqueado.

- O que deu em você, garoto? – disse Humberto, se recuperando da surpresa. Sem esboçar a menor reação às palavras, Vicente se virou e investiu novamente, praticamente se jogando sobre ele. Apesar de o garoto demonstrar uma força incomum, o padre conseguiu segurar seu braço e lhe aplicar um golpe que o levou ao chão. Imobilizado, Vicente soltou a faca que foi jogada para as sombras, deslizando pela luz da lua no piso do pátio.

Humberto soltou a lanterna e virou Vicente, o fazendo olhar para ele enquanto segurava seus braços.

- O que você tem?

O garoto não falou qualquer resposta à pergunta e sua expressão facial permaneceu ilegível como uma língua morta sobre a qual não se possuía nenhum conhecimento. Porém, seu rosto mudou quando começou a pronunciar palavras inaudíveis, apenas os movimentos de seus lábios indicavam que o garoto falava algo. Os braços de Humberto afrouxaram o aperto sobre Vicente, sua respiração cessou por um momento e ele caiu para o lado quando a sensação indescritível o dominou.

Com as mãos na garganta, o padre rolou pelo chão, se esforçando para gritar, mas nenhum som saía de sua boca. Tentava tomar fôlego, mas era como se ele se afogasse. Nada que fizesse parecia adiantar para afastar a força invisível que o envolvia. Sufocando, ele viu as sombras ao redor começarem a queimar, dando lugar a um fogo imaterial que o encobria, deixando ver as misérias de sua alma por menor que fosse, ver a sombra horrenda que estava do seu lado, dentro do garoto deitado no chão.

Humberto sabia que não resistiria e de fato teria sucumbido completamente se uma luz alva não o tivesse salvado. Vinha de algum lugar, como uma trilha luminosa o convidando a sair e segui-la. Acumulando as forças que não sabia que possuía, Humberto se levantou e foi em sua direção, passando pelas colunas e correndo pelo corredor, seguindo literalmente a luz no fim do túnel. De alguma maneira inexplicável, a falta de luz não o impedia de saber onde estava, ou para onde deveria ir, como se o efeito colateral daquela sensação fosse uma visão espiritual do mundo, a alma navegava pelo lugar sem se limitar aos sentidos do corpo.

Ele chegou a um par de portas e as abriu, entrando na biblioteca do convento onde a luz terminava. Fechou as portas, e arrastou uma pequena mesa encostada a parede ao lado, as bloqueando. Humberto se afastou de costas, a sensação diminuindo até cessar completamente, o devolvendo à completa escuridão. Instantes se passam e as luzes se acendem. O padre piscou os olhos, ofuscado, e olhou para as estantes repletas de livros empoeirados ao redor. Continuou dando passos devagar para trás, encostando-se a uma parede, sem desviar os olhos das portas, enquanto sua respiração voltava ao normal e as palpitações diminuíam.

Humberto não sabia precisar quanto tempo se passou, imóvel naquela situação, até que o primeiro golpe reverberou pelas portas. Aparentemente, Vicente o havia seguido e forçava inutilmente sua entrada. Sem conseguir abrir as portas, os golpes pararam. O padre cogitou em dar um passo para ver se ele ainda estava ali, quando a sensação voltou. Ele caiu de joelhos, curvando-se, e o fogo que apareceu lhe devolveu a visão do mundo, percebendo Vicente atrás da porta, sussurrando com a faca que tinha recuperado em mãos. As chamas envolveram Humberto, castigando sua alma. Silhuetas de feras começaram a aparecer em volta dele através das labaredas, seus rugidos eram ameaças de morte, avisos de que o fim havia chegado.

Mas elas se calaram. As chamas já não o tocavam mais, como se uma bolha de proteção aparecesse para excluí-lo do inferno. Humberto abriu os olhos, vendo o mar de um fogo um pouco mais vermelho que o natural por todos os lados, mas ele não lhe causava mais nenhum sofrimento. Olhando para frente, viu Vicente parado atrás das portas da biblioteca e do lado, estava a luz que o tinha guiado. Estava muito mais forte que antes e estava perto o suficiente para Humberto perceber uma figura nela, muito semelhante a uma pessoa, mais precisamente um homem um pouco mais velho que ele, usando uma espécie de hábito.

Humberto se levantou e tentou se aproximar dela. A luz aumentou de intensidade sem ser agressiva à visão e a figura humana sumiu quando ela expandiu, dissipando as chamas mais próximas e revelando uma parte da biblioteca. O padre caminhou e, chegando a um ponto, a luz como que indicou algo esquecido no canto. Era um grande baú, encostado à parede e com livros velhos em cima. Humberto tirou os livros e abriu a tampa pesada sem grandes dificuldades. Escavou por entre papeis velhos e no momento em que pegou um manuscrito brilhante, soube que era aquilo que procurava. O padre o tomou em mãos, lendo na primeira página os dizeres escritos em latim “Livro de Patrício Loreto para as revelações do Senhor”. Ao redor, as sombras monstruosas expressavam sua fúria contra o manuscrito, mesmo privadas de seus rugidos.

Humberto abriu, virando a capa, mas antes que conseguisse ler a primeira página ouviu algo chamar sua atenção. Olhou para trás e viu Vicente atrás das portas, levantando a faca e encostando a lâmina no próprio pescoço. “Não leia, se quiser que ele viva” veio uma voz, impossível dizer de onde exatamente. O sacerdote paralisou, olhando para o garoto que ameaçava a própria vida. Ele mal ousava olhar para o livro que carregava. “Não posso” pensou “Vicente não merece...” Porém, antes que fechasse o livro, percebeu seu erro. Não era Vicente que empunhava a lâmina, não era a vontade dele se matar, ou dos outros garotos que convidou e os trouxe para as aulas. A morte era desejo daquelas sombras, daquelas chamas, e ele não podia deixar que dessem a última palavra.

O padre olhou para o manuscrito e começou a ler as inscrições da primeira página. Se havia algo de verdadeiramente bom naquilo, seria mais forte. A luz tomou uma dimensão inimaginável quando as palavras foram ditas, e arrastou as chamas e as sombras, as dissipando, e ela alcançou um menino atrás das portas que empunhava uma faca, envolvendo absolutamente tudo em um imenso alvorecer.

Padre Humberto abriu os olhos. Estava de pé em um canto da biblioteca com um livro manuscrito aberto nas mãos. Ele virou algumas páginas, vendo rapidamente textos em latim escritos em uma caligrafia muito bela. Pareciam orações de exorcismo, mas ele não conhecia nenhuma. “Essas são as revelações que o Senhor confiou a mim, Patrício Loreto...” dizia a inscrição em uma página. Lendo isso, Humberto soube que estava com uma relíquia de um valor histórico e, principalmente, espiritual incalculável, que teria permanecido perdida para sempre, se ninguém a reconhecesse. Se ninguém soubesse latim.

De repente, ele se lembrou do aluno e coroinha. O sacerdote se virou e correu segurando o livro com extremo cuidado, afinal era uma antiguidade. Deixou o manuscrito na mesa que bloqueava a entrada, arrastando o móvel para o lado, abriu as portas e encontrou o menino desacordado no chão do corredor.

- Vicente! – o padre se abaixou e tentou acordá-lo – Vicente! – ele sacudiu o garoto pelos ombros.

O menino abriu os olhos, fitando Humberto e olhando ao redor, como se tentasse reconhecer onde estava e se lembrar de como chegou ali.

- Padre? – disse Vicente, soltando a faca que ainda segurava – O que aconteceu?

Humberto sorriu contente por ver o coroinha bem.

- Vou lhe contar – ele falou. E contaria sobre o bem que emergi do mal em um plano maior, sobre coisas perdidas e preciosas, escritas em latim e que tem muito a ensinar, coisas que o inferno, por mais que contentasse, não foi capaz de esconder para sempre.

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Tema: Suicídio.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 30/05/2014
Reeditado em 03/06/2014
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