A LUZ QUE SE APAGA

Em frente ao espelho a mulher encarava sua face com desprezo, sua pele flácida e rugas profundas indicavam a idade avançada, sentia que a vida chegava ao fim... Estava chegando a hora de encarar o seu destino, mas não conseguia reconhecer aquela imagem que via como sendo seu rosto, aquelas linhas, aquela expressão, aqueles olhos... Ela tinha visto há cinquenta anos, no dia em que sua vida tornou-se uma prisão e para sua alma restou apenas a luz entrando pelas frestas abertas pelo tempo e agora até isso estava se apagando.

...

A chuva fina caía sobre ela, a carroça dava solavancos ao passar sobre as pedras, a mente da mulher estava repleta de angústia e dor pela filha que deixara no hospital, sua única filha. A beira da estrada de terra avistou uma moça sentada com um gato ensanguentado sobre o colo, o animal tinha a cabeça esmagada e seu sangue tingia o vestido claro da menina que o segurava. A mulher parou a carroça e perguntou:

- Precisa de ajuda moça?

A menina de cabelos longos se levantou, ergueu a cabeça, apertou o gato contra o peito e olhou a mulher nos olhos, então devolveu a mesma pergunta:

- A senhora precisa de ajuda?

A mulher estranhou a atitude e percebeu que a chuva não tocava a moça, que seus cabelos e sua roupa estavam completamente secos, tirando as manchas de sangue do felino. Sem responder, mantendo um silencio de palavras engolidas, a mulher pôs a carroça em movimente diante do olhar fixo e perturbado da menina.

- Se a senhora quiser, só precisa pedir- ao falar a moça soltou o gato que saiu aos pulos com os pelos da cabeça ainda vermelhos, sumindo por entre o capim alto.

A escuridão da noite chegou engolindo a pouca luz daquele dia cinzento e a mulher, em sua solidão, pôs-se a trabalhar como fazia todos as noites, costurando sem descanso na tentativa de conseguir o dinheiro para o tratamento da filha, porém sabia que todo aquele esforço era inútil e logo teria que trazer sua menina para casa sem esperança de recuperação. Nada no mundo lhe causava tamanha tristeza.

Entretanto, naquela noite algo mais a perturbava, o estranho acontecimento não saia de sua cabeça... Talvez fosse apenas o cansaço. Então, sem saber realmente por que, mas abnegou sua fé e pediu ajuda ao senhor das trevas...

Na noite seguinte exatamente a meia noite, enquanto ela costurava, ouviu batidas na porta... Era uma senhora, muito velha, vestindo uma longa capa marrom sobre o vestido florido, ela trazia consigo uma caixa de costura, um banquinho de madeira e uma marmita coberta com um pano xadrez, disse que veio ajudar na costura. A mulher se assustou, teria seu pedido sido atendido. Olhou a velha nos olhos e sentiu que a conhecia de algum lugar, aquele rosto lhe era familiar, então novamente sem saber por que, permitiu que ela ajudasse na costura.

Nas noites que se seguiram a velha vinha sempre à meia noite para costurar, passava o tempo todo em silêncio, comia um pedaço de carne malcheiroso trazido na marmita e antes de amanhecer ia embora deixando apenas seu banquinho como sinal de que retornaria na noite seguinte.

Em uma noite, enquanto comiam, a mulher resolveu perguntar que carne era aquela que a velha trazia, a senhora corcunda com a boca engordurada levantou os olhos e ofereceu-lhe um pedaço, a mulher ficou tentada a recusar... Acabou aceitando por educação... A carne era dura, mas até que tinha um gosto bom, tanto que a mulher comeu dois pedaços. Ao parar o trabalho próximo do alvorecer a velha perguntou, com uma voz rouca:

- Minha filha, você sabe qual é o preço para o que fez?- mas a mulher não soube responder, ou novamente engoliu as palavras com medo do que sairia de sua boca.

Em uma semana a mulher tinha o dinheiro suficiente para pagar o hospital, mesmo assim a velha retornou pontualmente a meia noite com sua marmita e sua caixa de costura, dessa vez encontrou a porta fechada. Bateu, chamou e continuou até ser atendida.

- Vai embora, não preciso mais do seu serviço- disse a mulher do lado de dentro.

- Preciso que abra a porta minha filha, ainda não terminei o que vim fazer.

A mulher apavorada ficou em silêncio, rezando para que, se ignorada, ela fosse embora. Fechando os olhos na tentativa de esquecer os fatos estranhos que espreitavam os encontros noturnos das duas, mas uma risada amedrontadora veio de fora.

- Não adianta rezar minha filha, sua alma já está perdida... Você devia ter perguntado o preço... Banquinho abra a porta pra mim- a velha resmungou pelo buraco da fechadura. E por mais absurdo que possa parecer o banco trazido pela velha começou a andar em direção a porta, a mulher, aterrorizada, assistia paralisada, a cena grotesca do velho banco de madeira rangendo ao mudar os passos e bater contra a porta diversas vezes. A velha ria, e seu riso se tornava cada vez mais alto e ressonante.

- tudo bem minha filha eu vou embora... Mas vou deixar pra você minha última refeição...

O silêncio permaneceu junto com o terror da mulher, estática em um canto da casa vazia, o banquinho jazia imóvel do lado da porta que ela não tinha coragem de abrir. Somente com o sol já bem acima do horizonte é que ela criou forças para sair... O rosto inchado por chorar, o corpo ainda trêmulo, as mãos frias... Ela não pode acreditar no que seus olhos viam, sua boca se abriu e ela soube que estava condenada... Em frente à porta sobre uma bandeja decorada estava a cabeça de sua querida filha.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 17/02/2014
Código do texto: T4695082
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