CEMITÉRIO DE AUTOMÓVEIS

Foi uma ação rápida. O carro estava parado no farol fechado e era ocupado apenas pelo motorista. Os dois, de armas em punho, aproximaram-se um de cada lado e gritaram para que o motorista pulasse para o banco de trás. O da esquerda assumiu a direção e o da direita o banco do carona. Assim que se acomodaram, o carona desferiu uma potente coronhada na cabeça do ocupante do automóvel fazendo-o tombar no banco traseiro.

Mergulhei num túnel escuro sem fim. Pareceu-me que flutuasse ao longo dele. Sem medo. Era como se uma corrente suave me guiasse pelo mais absoluto breu sem roçar paredes ou reentrâncias. Repentinamente vi-me sentado numa cadeira de plástico dentro do que me pareceu um escritório muito acanhado, tanto em tamanho quanto em mobiliário. Fechei os olhos e apalpei minha cabeça. Nenhum sinal de corte, fratura ou sangue. Nenhuma dor. Quando os abri, havia do outro lado da mesa gasta um sujeito muito magro e de aparência comum; trajava um blazer puído e uma camisa de aspecto encardido. No rosto esquálido, uma barba cheia de falhas. Mantinha um riso cínico como se dissesse “escarnecer é meu passatempo preferido”. Cumprimentamo-nos.

Cofiei minha barba rala num gesto teatral enquanto observava o rosto dele. Não notei reações de contrariedade. Puxei a bandeja com uma garrafa de conhaque, dois copos de vidro, alguns charutos e uma caixa de fósforos. Enchi generosamente os copos, apanhei um e empurrei o outro na direção dele. Acendi um charuto. Ele recusou fumar. Apaguei o fogo do palito e ambos observamos a fumaça bruxulear até desfazer-se pela sala. “Prazer revê-lo”, disse-lhe. Fez um gesto de ombros demonstrando surpresa, ao que complementei sem querer alongar a pantomima “fui vitima da sua imprudência” e apontei para a página de jornal fixada na parede atrás de minha cadeira. A interrogação pareceu sumir de seus olhos, quando viu a fotografia do automóvel que ele guiava naquela noite. Todo retorcido, mais parecia um feto desfigurado de um laboratório de anatomia. (Parêntesis para esclarecimento: quem lesse a matéria seria informado de que havia alguns automóveis disputando um racha alta madrugada numa avenida movimentada de ... e que um deles atropelara um pedestre. Houve morte imediata. O motorista desaparecera, provavelmente resgatado por outro participante, e até aquela data não dera entrada em nenhum hospital investigado pela polícia.

Milagrosamente não sofri um arranhão sequer, disse ao barbicha. Ri alto. Fui resgatado por um amigo e apresentei-me posteriormente na delegacia. O processo se arrastou longamente e no fim das contas tive apenas que indenizar a viúva. A VIÚVA! Minha descontração desapareceu rapidamente. Olhei para o barbicha. Passei a vê-lo como um fantasma, embora ambos permanecêssemos de carne e osso. Quer dizer que já estou morto a esta altura? Ele balançou a cabeça negativamente. Ufa, suspirei aliviado!

Puxei delicadamente o jornal da parede e o segurei; entornei o copo de conhaque, tomando cuidado para manter a barba seca. Traguei fundo o charuto e com a ponta dele incendiei o jornal. Bestamente ele pareceu achar que nossas contas estavam devidamente acertadas. Fez um gesto de levantar-se, mas pedi que se mantivesse sentado. Com o charuto entre os dedos apontei na direção da janela que havia às costas dele.

Virei-me na direção indicada num misto de medo e curiosidade. Havia pilhas imensas de automóveis meticulosamente sobrepostos. Entrei num pânico incontrolável quando notei que o meu estava sendo estacionado naquele pátio. Havia dois sujeitos nele. Os que haviam me rendido. O carona ergueu um corpo desacordado puxando-o pelos cabelos. Meu pânico cresceu mais, se isso ainda fosse possível, pois era o meu. Displicente, deixou que caísse de volta no banco traseiro. Saltaram e travaram as portas. Um guindaste surgiu e o içou até estar alinhado no alto de uma das pilhas. Escutei um barulho forte de outra máquina. Dela descia uma plataforma de aço que achatava os carros reduzindo-os ao formato de plataformas. A próxima pilha... claro, era a minha! Escutei apenas o baque surdo e profundo e me vi novamente num túnel escuro sem fim.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 12/12/2013
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