Plano de Vôo - DTRL

Houve um suave apito quando o relógio no criado mudo ao lado da cama marcou exatamente nove da manhã. Guilherme se virou para olhar para os ponteiros fosforescentes formando um ângulo reto no despertador analógico e rolou pela enésima vez pelos lençóis e travesseiros brancos. Há horas que ele estava acordado, ficando na cama motivado pela sensação de dever em descansar até mais tarde, como deveria fazer em dias de vôo. Como piloto, sua rotina era basicamente longas outras pilotando jatos particulares a outros países, intercalados por alguns dias de repouso quase forçado. Geralmente o enfado da viagem passava em vinte e quatros horas, mas sua mulher insistia que ele dormisse até meio dia antes de outro vôo, evitando o risco de erro humano causado por fadiga. O problema é que ele não tinha paciência de ficar deitado, inerte como um defunto todo esse tempo. Guilherme se levanta, lava o rosto no banheiro do quarto, troca de roupa e sai para a cozinha onde o sua esposa tentava fazer uma receita que ele não soube identificar do quê.

- Bom dia, querida – Guilherme deu um beijo delicado em Catarina, que pôs uma xícara de café preto em frente ao marido, logo que ele se senta à mesa.

- Você deveria ainda está na cama. Precisa descansar mais.

- Você sabe que não sou muito de passar o dia na cama. E hoje tenho uma reunião com os diretores do aeroporto. Tenho que me preparar – ele falou, levando a xícara à boca. Após tomar seu café, ele deixou a esposa com suas batedeiras, massas e colheres e vai com seu notebook para a sala de estar onde se senta na poltrona de cor mogno ao lado da estante com fotos de família, medalhas e outras condecorações que ganhou como piloto. Ele começa a verificar seus e-mails, abrindo e lendo cada um. A maioria não era nada importante. Resumiam-se a promoções de cartão de crédito, notificações das redes sociais, um convite para comparecer a uma apresentação de balé da filha de um amigo, para a qual daria uma desculpa qualquer, informações de sua conta bancária e um recado da escola de Iasmim, sua filha, falando sobre a próxima reunião de pais e mestres. Esta ficaria por conta de Catarina, para quem Guilherme sempre empurrava os compromissos escolares. Ele viu um dos últimos e-mails de remetente desconhecido, clica para abrir e seus olhos se arregalam. O e-mail trazia uma foto tirada da janela de um prédio, focada nele beijando uma mulher. Uma imagem que não seria digna de atenção se aquela mulher fosse sua esposa e não a sua amante. Junto com a foto em anexo vinha um texto que dizia:

“Antes que pense em excluir essa mensagem, quero que saiba que tenho muitas outras fotos suas com sua amante e conheço blogs que adorariam exibi-las. Não é sempre que se têm fotos comprometedoras de um piloto conceituado. Isso sem falar na conta de seus familiares nas redes sociais. Não teria dificuldade nenhuma de enviar o material que tenho para todos se, claro, não estiver interessado em um acordo. Uma troca, para ser exato. Um favor em troca do meu sigilo. É só responder essa mensagem até amanhã há uma da tarde. Se estiver interessado.”

Guilherme lê e relê o texto, absorvendo a informação. Seus dedos nervosos percorrem o teclado sem, contudo, apertar nenhuma tecla. Responder ou ignorar? Ele já tinha lido sobre telefonemas anônimos anunciando falsos seqüestros e hackers que invadiam computadores para roubar dados, mas ele não sabia o que fazer naquela situação. Não eram ameaças vagas de um suposto seqüestro. Era algo contundente. Fotos comprometedoras suas com outra mulher que poderiam acabar com a reputação que tanto prezava, e gerar transtornos entre seus familiares que ele preferia não imaginar. Ele olhou na data da mensagem, vendo que ela foi recebida na noite anterior, o que significava que ele tinha até o início da tarde daquele dia para enviar uma resposta. Ele olhou para o teclado como se olhasse para uma arma. Não costumava ceder a chantagens, mas ele precisava saber mais. Assim, ele digita rapidamente uma única frase e envia.

“O que você quer?”

Ele ficou olhando fixamente para a tela, uma sensação gélida subindo o estômago e para sua surpresa a resposta veio imediatamente. Trazia uma foto diferente da anterior, mas que também o mostrava beijando outra mulher, sendo os dois fotografados através das janelas abertas de um prédio. Talvez para mostrar que o interlocutor realmente possuía o vasto material que tinha anunciado. O texto que vinha junto falava:

“Muito bem. Sei que você tem um vôo importante hoje à tarde. Você vai pilotar o jato com o embaixador. Só o que você tem que fazer é entregar um presentinho meu para ele. Uma lembrança. Não é nada que possa atentar contra sua vida ou de outra pessoa. Dou a minha palavra.” O texto terminou sem entrar em detalhes.

“E o que seria esse presente?” Guilherme digitou. A resposta veio em seguida.

“É uma caixa coberta com papel de presente azul com um conteúdo para apreciação do nosso admirado embaixador. Você tem que entregar o presente durante o vôo. Isso é imprescindível. A caixa será entregue no quarto de hotel onde você se encontra com sua amante. Não abra a caixa e a entregue. Eu tenho meios de saber se foi feito como o combinado. Se não, sua mulher receberá algumas fotos do seu interesse. Mas sei que você vai fazer tudo direitinho. Afinal, o que pode custar fazer uma simples entrega?”

Guilherme pensou em algo para escrever, mas antes que possa digitar acaba fechando o notebook rapidamente com um gesto involuntário quando sua esposa passa pela sala para pegar uma revista na estante. Ele foi guardar seu computador portátil no quarto e voltou para a cozinha beber um copo de água gelada. Talvez devesse continuar a conversa com a pessoa do e-mail, mas ele não sabia o que dizer, nem se adiantaria. Fosse quem fosse parecia estar determinado em seguir com aquilo. O telefone de parede da cozinha toca e é atendido por Catarina. Guilherme aperta as bordas da pia de latão, tenso como um cabo que puxa um comboio.

- Quem era amor? – ele perguntou.

- Deve ter sido engano. Não falou nada e depois desligou.

A garganta de Guilherme ficou seca e ele bebeu outro copo d’água.

- Você usou a internet ultimamente?

Catarina franziu o cenho, em interrogação.

- Ontem à noite. Por quê? Algum problema?

- Não. Nada – Guilherme ignorou a tentação de perguntar se ela recebeu alguma mensagem ou foto específica de que gostaria de contar – Surgiu um imprevisto e tenho que sair agora mesmo.

- Você não vai almoçar em casa? – Catarina parecia ligeiramente decepcionada.

- Provavelmente não vai dar tempo. De lá vou direto para o aeroporto.

- Que pena. Estava preparando algo especial pra gente – Catarina mostrou a foto de uma torta na revista que pegou na sala como se quisesse deixar o marido com água na boca.

- Parece muito bom, mas eu realmente preciso ir.

- O que aconteceu?

- Nada muito preocupante, mas você sabe como são essas coisas, não é? É preciso está sempre de olho. – Guilherme saiu da cozinha e foi para o quarto, vestiu seu uniforme, arrumou sua maleta colocando seu notebook e foi para a sala. Catarina, sentada no sofá, se levanta e refaz o nó da gravata do marido.

- Telefone antes da viajem.

- Telefonarei – Guilherme deu um beijo na testa da mulher – Tchau, querida. Até segunda-feira.

- Tchau. Boa viagem – Catarina observa Guilherme partir pelo corredor antes de fechar a porta. Ele entra no elevador e desce até o térreo do prédio onde morava. No estacionamento, ele destrava seu carro a distancia com o controle junto à chave e dirige o automóvel para fora do condomínio.

Uma hora mais tarde, ele subiu as escadarias de um hotel e bateu na porta de número vinte e três. Ela é aberta por uma bela mulher vestida em uma camisola preta com babados, feita de um tecido macio que parecia escorrer por seu corpo como um vestido. Seus cabelos longos ondulados lhe caiam nos ombros como uma cascata, emoldurando o rosto. Antes que Guilherme dissesse qualquer coisa, ela pegou sua mão e o puxou para dentro.

- Preciso falar com você.

- Eu também – ela olhou para a cama com cabeceira espelhada e Guilherme seguiu seu olhar. Em cima do edredom vermelho-rubi jazia uma caixa relativamente grande, embrulhada com papel de presente azul claro com uma fita azul marinho que brotava em cima como uma orquídea exótica.

- Vieram deixar isso hoje mais cedo. Pensei que era um presente seu para mim, mas ele tem um adesivo.

Guilherme se aproximou cauteloso da caixa, quase como se ela fosse um animal que o pudesse atacar. O adesivo era um quadrado branco sobre o papel azul e nele estavam escritos com letras que pareciam feitas com uma antiga máquina de escrever os dizeres: “Para Guilherme. Remova o adesivo antes de entregar para a pessoa certa.”

- Você viu quem trouxe isso?

- Não. Deixaram na recepção do hotel e vieram me chamar. Perguntei quem tinha entregado e não souberam responder.

- Eles podem pelo menos descrever a pessoa?

- Eles me disseram que foi um homem de barba, óculos escuros e boné. Ele tinha uma roupa marrom que parecia farda de entregador. Pode ser qualquer um.

- Você tentou abrir?

- Não. Estava esperando você chegar. Pra quem é?

Guilherme passou a mão no rosto.

- Estou sendo chantageado – disse.

- Como? – Verônica, sua amante, parecia não ter entendido.

Guilherme pôs sua maleta na cama, abriu, tirou o notebook, acessou os e-mails rapidamente e estendeu o computador para Verônica.

- Veja você mesmo.

Verônica pegou o notebook, o colocando na cama e se ajoelhou no tapete para ler. Enquanto isso, o piloto se aproximou da janela da sacada, as cortinas esvoaçando fantasmagóricas ao sabor da brisa que entrava.

- Alguém tirou uma foto nossa do prédio vizinho quando a janela estava aberta.

- Nossa! Guilherme. Isso é muito grave. O que você pensa em fazer?

- Sinceramente eu não sei.

Guilherme se virou para olhar para Verônica ajoelhada perto da cama, seus olhos verdes o fitando com preocupação. Os olhos que tanto o tinham encantada há duas semanas em um vôo para Costa Rica, em uma das viagens de trabalho de Verônica, uma infectologista, pesquisadora de vírus e doenças raras em diferentes países do mundo.

- Pensa em mostrar isso às autoridades?

- Por enquanto não. Quero evitar um escândalo e não posso cancelar a viagem de hoje para cuidar disso.

- Então vai entregar a caixa?

- Eu não queria fazer isso.

Verônica se levanta e fecha as cortinas da janela.

- Não sei se seria bom desobedecer a essa pessoa. Ela descobriu sobre nós, onde nos encontramos e seu e-mail. O que mais essa pessoa pode saber? É muito arriscado contrariar alguém assim.

- Não tenho certeza se ela não vai espalhar as fotos na internet depois da entrega.

- De uma forma ou de outra você não pode arriscar. Eu sugiro que você pelo menos leve a caixa para o aeroporto e lá você pensa melhor.

Guilherme considerou a sugestão.

- Acho que você tem razão.

Verônica envolve seus braços por seu pescoço.

- Está com fome? Vou pedir um almoço para nós.

- Está bem.

- Gostaria de algo especial?

- Não – Guilherme ainda parecia bastante desanimado – Vou querer o que você pedir.

- Tudo bem. Tome um banho. Relaxe. Vou lá embaixo – disse Verônica. Depois que Guilherme guardou o computador na maleta e entrou no banheiro, ela trocou de roupa rapidamente e desceu para o restaurante do hotel. Minutos depois chega um empregado trazendo um carrinho de comida do hotel com os pratos sob bandejas prateadas. Guilherme e Verônica almoçaram no quarto, como sempre faziam para não serem vistos juntos em público. Em seguida, o piloto vestiu novamente sua roupa, pois estava só de roupão e pegou sua maleta.

- Não terminou de tomar seu suco – Verônica veio com um copo pela metade. Guilherme bebeu tudo e devolveu o copo para ela.

- Lamento que não possamos... Bem, aproveitar nosso tempo melhor. Não estou com cabeça para isso.

- Eu compreendo perfeitamente – Verônica falou.

Guilherme pegou a caixa de cima da cama com certa surpresa. Era um pouco mais pesada do que pensava, apesar de não saber o que exatamente esperava quanto ao peso dela. Ele caminhou com ela até a porta.

- Tenha uma boa viagem – Verônica disse abrindo a porta.

Guilherme meio que abraçava a caixa, envolvendo-a com o braço contra o peito o que dificultava Verônica de alcançar seu rosto para beijá-lo. Guilherme também não insistiu. Alguma coisa na postura da amante deixava claro que ela também não parecia está com muito clima para romance.

- Tenha uma boa tarde – ele disse e saiu. Ao descer com cuidado pelas escadarias até a saída, ele não parou de pensar o quanto tudo aquilo poderia está afetando Verônica também. Indiretamente, ela estava sendo ameaçando com ele de ter sua intimidade exposta e Guilherme se perguntava se o escândalo de se envolver com um homem casado poderia até repercutir em sua vida profissional. Ele pôs a caixa no banco de trás ao chegar ao carro e dirigiu rumo ao aeroporto.

Ele parou em frente a uma cancela fechada e abaixa os vidros do carro para o guarda alto e forte olhar para seu rosto.

- Boa tarde, Sr. Arantes – O guarda falou e o piloto o cumprimentou em resposta. A cancela subiu abrindo passagem pelo caminho asfaltado para o estacionamento privado do aeroporto de vôos executivos. Guilherme não deixou de sentir uma apreensão ao passar pela segurança com uma caixa misteriosa no bando traseiro e só o que ele queria era que tudo aquilo acabasse logo.

Ele saiu do carro e cortou caminho pelo saguão interior praticamente vazio de onde se podia ver através da vidraça a pista de decolagem e alguns jatos parecendo grandes pássaros brancos sob o sol da tarde. À distância Guilherme viu um homem vestido como ele, exceto que estava sem paletó sobre a blusa branca e a gravata azul escuro e não precisou se aproximar muito para que ele o reconhecesse.

- Boa tarde, comandante – disse Leandro, seu co-piloto.

- Oi, Leandro – Guilherme continuou andando e Leandro o acompanhou.

- O diretor vai querer nos dar uma palavrinha sobre a grade de horários antes de partirmos.

- É. Ele comentou comigo. Estou bastante aberto a negociações quanto ao horário.

- Não é o que parece.

- Por quê?

- Esse presente não é para o Sr. Moraes? Pensa em subornar nosso diretor? – Leandro riu, mas Guilherme não estava para brincadeiras.

- Não é para ele.

Os dois entraram na sala reservada para pilotos e Guilherme sentiu calafrios e uma irritação na garganta ao se deparar uma temperatura mais baixa devido ao ar-condicionado. Ele pôs a caixa na mesa de centro com o mapa do mundo desenhado e com uma pequena pilha de revistas sobre negócios e aviação. Leandro se sentou em uma das poltronas.

- Então para quem é?

Guilherme esperou alguns instantes. Outro piloto que estava tomando café da máquina de café no canto joga o copo plástico na lixeira e sai após os cumprimentar. Ele tinha olheiras e uma postura cansada. Provavelmente voltava de uma longa viagem.

- É para o embaixador.

- Para o embaixador? De quem?

Guilherme o fitou. Se ele quisesse prosseguir com aquilo teria que contar ao menos parte da história para seu co-piloto.

- A verdade é que ele é de uma pessoa anônima. Não sei de quem é?

- O que é?

- Não sei.

- Não sabe? Como assim não sabe?

- Não faço idéia do que tem aí dentro.

- Você não pode simplesmente pegar uma caixa e entrar no avião, mesmo sendo o piloto. Ainda mais assim, sem saber de quem ou que é.

- E você acha que eu não sei disso? Mas vou ter que levá-lo.

- Por quê? Não tem escolha?

- Não se trata disso – Guilherme mudou de posição na poltrona em que tinha se sentado, desconfortável com a mentira – É uma longa história.

- Comandante Arantes, você sabe o quanto admiro seu trabalho, não sabe? – disse Leandro, o que Guilherme não levou muito em conta. Ele via seu co-piloto quase como um estagiário, e como tal não seria nenhum absurdo em ele dizer que admira seu superior quando na maior parte do tempo almeja seu lugar – Mas o que está fazendo é um ato leviano. Levar um pacote misterioso a bordo e entregá-lo para uma pessoa influente é muito grave, principalmente hoje em dia em que se fala tanto em terrorismo.

- E você vem dizer isso para mim, com quinze anos de experiência? Acredite quando eu digo que... – Guilherme se cala quando Sr. Moraes entra na sala.

- Vocês venham na minha sala, tem umas coisas sobre o calendário que preciso dizer. Pouca coisa para dizer a verdade. O que é isso? – Moraes olha para o embrulho azul com laço sobre a mesa.

Leandro e Guilherme se entreolharam.

- Só uma coisinha que ganhei. Nada demais – disse Guilherme.

- Ah. Então vamos antes que o embaixador chegue.

- Já estaremos indo – falou Leandro.

Moraes deu uma última olhada para a caixa sem muito interesse e saiu.

- Duvido que te deixem entrar no avião com isso.

- Sei. E preciso que me faça um favor. Ponha isso no detectador de metais e raios-X junto com a bagagem do embaixador quando ele chegar. Se não for nada perigoso, embarcaremos com ele.

- Ok. Mas e se for?

Guilherme engoliu em seco. Só pensar no que poderia ter ali dentro lhe causava enjôo.

- Seja o que Deus quiser. Mas veja bem. É melhor sermos barrados agora que embarcar com uma bomba.

- Vai deixar isso aqui por enquanto?

- Sim – Guilherme pegou a caixa e a colocou sobre uma poltrona, arrancando o adesivo – Depois o pegamos. Pouca gente entra aqui. Não acho que alguém vá mexer.

- Não tem nenhuma curiosidade em saber o que é?

- Tenho, mas tento não pensar nisso – Guilherme falou.

Ambos saíram e foram para a sala do diretor do aeroporto. A reunião foi rápida, repassando poucas mudanças na programação de vôos e políticas do frete de jatos. Guilherme tentava focar no que lhe falavam, mas a caixa e os e-mails não lhe saíam da cabeça. Ele batia seus dedos no braço da cadeira, soando frio, e seu estômago revirava. Aquilo tudo o estava abalando muito mais do que gostaria de admitir. Depois, receberam o telefonema confirmando a chegada do embaixador e eles saíram para recebê-lo.

- Ponho a caixa no bagageiro? – perguntou Leandro.

- Ponha dentro. Onde fique de fácil acesso – disse Guilherme. Leandro confirmou com um aceno de cabeça e se afastou para pegar a caixa.

Guilherme caminhou sozinho até o jato. Tinha uma vontade imensa de esperar Leandro passar a caixa pelo detector de metais e pelos raios-X nem que tivesse que acompanhar de longe, mas tinha que se adiantar com a preparação do vôo.

Pouco depois, ele estava aos pés do jato, na pista. A porta estava aberta, dando acesso a uma escadinha de poucos degraus em suas costas. Talvez devesse está dentro, na cabine, mas estava com uma inquietação que não o deixava relaxar e a solução que encontrou foi esperar seus passageiros do lado de fora. Ele caminhava de um lado para o outro. Esfregou as mãos geladas e deu uma olhada nas turbinas do avião. O jato não era o modelo mais moderno que havia no aeroporto, ainda assim era impressionante. Guilherme olhou suas mãos suadas. Ele se sentia angustiado, seu coração batia forte em marteladas contra o peito. Não conseguia parar de pensar na caixa e em seu conteúdo, e aquilo o perturbava. Ele poderia colocar a caixa furtivamente dentro do jato, mas isso seria uma violência contra sua consciência. Transportar uma carga misteriosa e entregá-la para uma pessoa influente seria um ato muito leviano como Leandro falou e esse pensamento o faz lamentar em ter envolvido o co-piloto nisso, o que o faz ver que estava arrependido. Estava arrependido de ter traído sua mulher, de ter cedido à chantagem dos e-mails por medo, de tudo. Ele tirou o celular do bolso enquanto os outros não chegavam e se virou. Viu o nome da esposa na agenda e apertou para chamar.

- Alô, Guilherme?

- Sim, querida. Sou eu. Liguei apenas para avisar que já vamos sair. Queria ouvir sua voz antes de partir.

- Está tudo bem? Parece está com a voz embargada.

- Está tudo ótimo. Bem, tenho que desligar agora. Amo você.

- Boa viagem. Também te amo.

Guilherme desligou. Não dava para perceber se ela tinha visto as fotos na internet e ele preferiu não perguntar e despertar suspeitas. Olhou para a tela do celular, se perguntando se seria melhor conferir se estava tudo bem. Ele acessou a internet e seus e-mails e verificou as mensagens. Nenhum recado novo do e-mail desconhecido. Conferiu as redes sociais, lendo cada notificação no canto da página. Nenhuma foto ou texto comprometedor. Guilherme começou a achar que estava paranóico à toa. Para espalhar as fotos, essa pessoa poderia ser identificada mesmo com perfis falsos. Mas havia outras formas. Ela fez a caixa chegar ao quarto de Verônica, por que não poderia fazer as fotos chegarem às mãos de Catarina?

Guilherme tinha ficado tão absorto no telefonema e na internet que mal percebeu os funcionários colocarem as bagagens no avião e Leandro entrar no jato com a caixa. Ele se virou a tempo de ver seu co-piloto descer do jato. Guilherme desligou o celular e o pôs no bolso.

- Ocorreu tudo bem? Colocou a caixa lá dentro?

- Sim. Ela está no fundo, escondida atrás do frigobar.

- O que tem dentro?

- O embaixador.

- Como?

- O embaixador está vindo.

Guilherme olhou e viu chegar o embaixador, um homem baixo, de cabelo grisalho e óculos escuros, acompanhado de sua pequena comitiva formado por outros três homens de terno e gravata. Piloto e co-piloto bateram continência.

- Boa tarde, Dr. Campos.

- Boa tarde, comandante Arantes. Cá estamos nós de novo – Dr. Campos trocou um aperto de mão com Guilherme e Leandro – Espero que não estejam enjoados de mim. São meus pilotos favoritos – ele disse bem humorado.

- De forma alguma. É um prazer voar com o senhor – disse Guilherme. Os outros que estão com o embaixador não deram muito atenção e esperaram Dr. Campos subir antes de segui-lo. Leandro e Guilherme entraram após eles e a porta se fechou. Dentro do jato, o embaixador e seus assessores sentaram nos acentos acolchoados e os pilotos se instalaram em seus lugares na cabine. Ligaram os motores e as turbinas rugiram, se aquecendo. Logo mais, a aeronave estava taxiando pela pista, tomando posição. Os pilotos trocaram informações com a torre e esta autorizou a decolagem. O jato partiu veloz pela extensão da pista até que suas rodas se apartaram do solo e o avião subiu, partindo para uma longa viagem sem escalas de seis horas para a Espanha. De cima, era possível ver os prédios da cidade se distanciando, se tornando uma mancha cinzenta na medida em que o avião tomava altitude. Ele ultrapassou as nuvens e o que se via ao redor era um céu azul claro que fez Guilherme se lembrar de um pequeno compromisso. Ele acionou o piloto automático, estabilizando o avião na altitude e velocidade correta.

- Aonde vai? – perguntou Leandro vendo seu comandante se levantar de seu posto.

- Eu vou... – Guilherme tossiu – Eu vou falar com o embaixador. Leandro permaneceu sentado e observou o comandante sair da cabine e ir até onde estavam seus ilustres passageiros. O interior do jato lembrava vagamente uma sala de estar, uma acolchoada e bege sala de estar. Os assessores estavam sentados em um dos cantos, seus acentos voltados um de frente para o outro. Dois deles liam revistas e o terceiro parecia está cochilando com o rosto apoiado nas mãos. No outro lado, Dr. Campos olhava distraída pela janela, para a paisagem vasta do outro lado, como se divagasse sobre o sentido da vida ou sobre sua agenda política. Ele desviou o olhar por um momento quando percebeu o piloto se aproximar e caminhar para os fundos. Guilherme tirou a caixa coberta com o papel de presente azul de detrás do frigobar e voltou, ficando em frente ao embaixador com a encomenda. Dr. Campos levantou a cabeça, lançando um olhar que mesclava surpresa e curiosidade sobre o piloto.

- O que significa isso?

Sentindo o papel de presente grudar em suas mãos suadas, Guilherme tinha a impressão de que a caixa estava um pouco mais pesada.

- Para você?

- Para mim? – Dr. Campos olhou para seu assessor como se quisesse fazer uma pergunta silenciosa se havia algo de que ele estava se esquecendo. Não era seu aniversário e não se lembrava de um motivo especial para presentes. Vendo que ele estava tão surpreso quanto ele, o embaixador pegou a caixa e a pôs nas pernas.

- De quem é?

O rosto de Guilherme estava pálido, deixando transparecer sua apreensão.

- Abra.

Sem mais palavras, Dr. Campos começou rasgar o papel azul, revelando a caixa de papelão e o laço caiu aos seus pés. Ele tirou a tampa e virou um pouco a caixa para ver seu conteúdo. A expressão dele ficou séria, até mesmo tensa. O sangue de Guilherme gelou. Ele não ousava se aproximar.

- O que tem aí dentro? – o assessor perguntou.

- Lembranças – disse o embaixador – Somente lembranças.

Ele continuou olhando para o dentro e hesitou antes de colocar sua mão para tirar um falcão empalhado do interior da caixa. As suas asas estavam semi-abertas como se estivessem prestes a voar, as penas brancas e cinza estavam mais claras com a luz que entrava pela janela do avião e os olhos amarelos vidrados olhavam o nada.

- Onde conseguiu isso? – disse Dr. Campos, com um ar severo.

- Peço desculpas, Dr. Campos, mas tive que entregar isso. Fui chantageado pela internet para entregar essa caixa para o senhor. Claro que tomamos as providências para ter certeza de que não era algo perigoso. Nunca embarcaríamos sem checar. Passamos a caixa pelo detector de metais e pelos raios-X, como não era nada, não vimos porque não entregar.

- Você disse que foi chantageado.

- Sim.

- Essa gente é capaz de tudo.

- Sabe quem mandou isso? – perguntou o assessor. Os outros dois sentados perto dele apenas ouviam a conversa.

- Há alguns anos tive um amigo. Um político – disse o embaixador – O hobby dele era criar e treinar aves de rapina como falcões e águias e essa ave era uma de suas favoritas. Ele infelizmente morreu de forma trágica e a família tem ressentimento de mim, como se me culpassem por sua morte. Talvez pensem que eu deveria ter evitado. Eles, especialmente os filhos, não perdem a oportunidade de me afrontar. Já tentaram atrapalhar minha candidatura inventando mentiras sem provas e até me ameaçaram. Agora me enviam isso.

- Por que essa ave especificamente? – perguntou outro homem.

- Uma vez eu e ele fizemos uma aposta para eu treinar um falcão. Ele tinha me dado esse de presente. Depois eu o devolvi treinado. Menezes estava com ele na hora do acidente que o matou. Eu não sabia que tinham empalhado o pássaro. Acho que eles querem me enviar uma mensagem nada positiva me mandando isso.

- Mais uma vez peço desculpas que isso causou algum transtorno.

- Poderia ter biscoitos com veneno – repreendeu o assessor.

- Eu não comeria nada de estranho, com todo respeito comandante – disse Dr. Campos.

- Eu também não lhe entregaria nada se desconfiasse que tivesse veneno, mesmo com ameaça.

- Quer que nos livremos disso?

- Não. Deixa – Dr. Campos deixou a caixa de lado e pôs a ave empalhada no acento vazio em sua frente que ficava voltado para ele – Eu até gostei. Pensam que me intimidam, fazendo isso chegar até mim dessa forma. Ledo engano. Vamos para a Espanha. Não vamos dar muita atenção para isso.

Guilherme juntou os pedaços de papel azul, deixando a caixa de papelão ao lado de Dr. Campos, para quando ele quiser guardar o falcão. O piloto se sentia bem melhor agora que a história tinha se esclarecido e até poderia dar um suspiro de alívio se não fosse por uma pequena irritação na garganta que fazia o ar arranhar dolorosamente quando tomava fôlego.

- Fico feliz que esteja tudo bem – ele disse, se retirando.

- Comandante – Dr. Campos o chamou e Guilherme se deteve.

- Sim?

- Se quiser prestar queixa por chantagem eu posso lhe ajudar.

- Eu agradeço, mas não. Contanto que isso não se repita pretendo esquecer essa história.

- Você é quem sabe – Dr. Campos falou antes de voltar a encarar a janela.

Guilherme se afastou e jogou os pedaços de papel na lixeira perto da entrada para a cabine. Definitivamente estava contente por tudo ter acabado. Ele entrou e Leandro olhou para ele.

- E então? – ele perguntou e não precisava muito para saber do que ele falava.

- Tudo certo – Guilherme falou e tossiu novamente – Maldita gripe.

Ele esperava estar bem melhor quando chegasse, mas nas duas horas que se seguiram os sintomas da suposta gripe somente pioraram. Ainda assim ele tentava ignorar os calafrios que aumentavam significativamente e o suor em seu rosto. Ele queria se concentrar apenas no painel rico em botões, luzes de displays a sua frente e acima de sua cabeça e entre eles o oceano de nuvens que se estendia para todos os lados que fazia se pensar na forte chuva que estava caindo abaixo da rota do avião. Guilherme sentiu uma leve dormência no pescoço, mas preferia não dar atenção. Seria apenas um mal estar ocasionado pela gripe que logo passaria. Veio uma dor de cabeça e sua visão começou a ficar turva, fazendo as luzes do painel se misturar e se tornarem uma só coisa com o céu e as nuvens que via. E foi no último instante de consciência no qual veio a certeza de que aquilo não seria uma simples gripe que Guilherme desfaleceu, empurrando o manche quando seu corpo pendeu para frente. O avião se inclinou para baixo obedecendo ao comando involuntário e um display piscou indicando perda de altitude sem que o piloto desmaiado ou o co-piloto totalmente pego de surpresa tivessem tempo de tomar qualquer atitude.

Poucos minutos antes, Dr. Campos estava em sua cadeira, observando o falcão empalhado no outro acento a sua frente. Se haviam coisas de que ele havia se arrependido, matar Menezes não era uma delas. Ele não era propriamente seu inimigo, mas era um grande obstáculo para sua ascensão política, ou pelo menos tudo ficaria mais fácil sem ele por perto. Dr. Campos tinha vivido boa parte de sua carreira à sua sombra. Ele era um mero vice e Menezes um político influente que não dava o braço a torcer nem para os empresários e banqueiros que o pressionavam para aprovar leis de incentivos fiscais que os favorecessem. Dr. Campos sabia que se ele tomasse o lugar de Menezes como governador ele teria muito que ganhar com os interesses dos empresários e algumas das personalidades mais ricas do país. Muita gente ganharia com ele no governo e rios de dinheiro correriam por baixo do pano direto para o seu bolso. Então, nas eleições ele se candidatou concorrendo ao cargo contra seu amigo, mas Menezes estava sempre em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, e Campos em segundo. Prevendo a iminente derrota, Dr. Campos resolveu ele mesmo tomar as providências necessárias para garantir que Menezes não ganhasse. Afinal mortos não ganham eleições. Conhecendo muito bem o hobby dele de treinar aves de rapina, uma delas tinha até se tornado seu símbolo de campanha, Dr. Campos mandou comparsas sabotar o carro do então governador enquanto ele estava no aviário. Curiosamente, na hora do acidente ele estava com o falcão que Dr. Campos tinha entregado poucos dias antes, depois de cumprir a aposta de treinar a ave. Uma aposta ridícula que só mostrava a dúvida de Menezes em sua capacidade. A família de Menezes sempre teve uma suspeita de que aquilo não foi um acidente e começaram a falar que o culpado era ele. Quase arruinaram sua campanha, mas não tinha como provar. Desde então os filhos de Menezes nutriam um ódio ferrenho contra Dr. Campos, que os tratava com desdém. Aquilo não importava mais. Ninguém tinha como provar nada que o comprometesse. Ele tinha vencido as eleições. Tinha ficado rico. Tudo bem que as acusações mesmo sem provas dificultaram sua reeleição e após o término do mandato, o que restou para sua carreira política foi assumir uma embaixada no estrangeiro, mesmo assim ele tinha subido na vida, alçado vôo para fora do alcance de detratores medíocres.

A ave empalhada olhava para ele com seus olhos de vidro. Parecia repreendê-lo por tudo, mas Dr. Campos não a via como um símbolo de sua culpa. O falcão era o seu troféu. Um sinal de sua vitória. O embaixador ainda fitava a ave quando ele parou de sentir suas pernas e surgiu um frio na barriga, com se estivesse em uma montanha russa ou em um elevador que caía rapidamente dando uma ligeira sensação de levitação. Ele olhou pela janela vendo as nuvens que antes estavam muito abaixo se aproximar, o avião se inclinou e mergulhou na tempestade que castigava o oceano no trecho que eles sobrevoavam e ironicamente foi justamente quando o avião caía e todos os pequenos objetos soltos ficavam suspensos no ar que o falcão empalhado que outrora pertencera à Menezes parecia voar novamente.

* * *

No quarto quase que completamente escuro, a sombra de uma pessoa se levanta da cama e estica o braço para acender o abajur. Ela pega um tablet de cima da mesa de cabeceira, o liga e acessa os e-mails que tinha enviado para Guilherme no dia anterior. Olhou mais uma vez as fotos que havia mandado tirar do prédio vizinho e releu o texto mais uma vez. Por algum motivo ela gostava de ficar revendo aquilo. O plano que tinha arquitetado era delicado e tudo precisava ser realizado com cuidado cirúrgico. Ela enviara as mensagens durante a noite sabendo que o piloto sempre verifica seu e-mail pela manhã quando acorda. Pensando que cara que ele teria feito ao ver as fotos, ela quase podia sentir pena dele. Guilherme Arantes era uma peça fundamental em seu plano e foi um grande golpe de sorte o ter conhecido em uma de suas viagens a trabalho. Na ocasião, ela descobriu que ele pilotava o jato que o embaixador usava em suas viagens freqüentes da Espanha, onde ficava sua embaixada ao seu país de origem e soube desde o início que ele seria uma oportunidade de se vingar do homem que havia matado seu pai e arruinado sua vida. Seus dedos deslizam pela tela apagando cada e-mail, depois acessa as configurações da conta e a exclui. Ela abriu outra página e pesquisa a meteorologia mundial. Teria uma chuva forte sobre o oceano atlântico, na rota usada por aviões em vôos para a Europa. Isso poderia causar alguma turbulência, nada muito preocupante para um jato que passaria por isso sem nenhum perigo, a não ser que o piloto simplesmente caia desacordado sobre os controles. Claro que ela faria que isso acontecesse e não seria difícil. Ela usurpou uma amostra de um vírus raro que circulava em alguns países asiáticos do laboratório em que trabalhava e o colocou no suco de Guilherme sem que ele percebesse, quando almoçavam. Após infectar o indivíduo o vírus causava uma leve sensação de mal estar e depois de determinado tempo levava repentinamente a pessoa a um coma que podia durar horas ou dias. Se seus cálculos estiverem certos, Guilherme desfaleceria enquanto sobrevoaria o oceano, fazendo o avião perder o controle e dando ao miserável do Antônio Campos o final que ele merece. O plano era o melhor que podia pensar sem deixar rastros que a pudessem incriminar, mas havia um detalhe. Ela estava com algo que pertencia ao Dr. Campos. O pássaro que seu pai o tinha dado de presente para cumprir uma aposta. Ela fazia questão de devolvê-lo e essa seria até uma forma de lembrá-lo do que ele tinha feito. Ela até se divertia imaginando a cara que ele teria feito ao abrir a caixa e dando de cara com o falcão. Infelizmente teve que recorrer à chantagem para não despertar suspeitas em Guilherme e o obrigar a levar o pacote, ainda assim valia à pena. Ela pagaria para olhar em seus olhos quando o avião perdesse o controle e falar que não importava o quão alto ele tinha ido, ele sempre poderia ser derrubado. E ela faria tudo para que isso acontecesse. Há pessoas que a poderia chamar de psicopata, mas ela se via apenas como uma pessoa que tinha objetivos claros e não pouparia esforços para atingi-los. Ela assoviou baixinho no silêncio do quarto a canção de um pássaro que seu pai a ensinou a imitar e desliga o tablet, o pondo de volta na mesa de cabeceira ao lado dos manuscritos de um artigo de sua autoria que ela revisava antes de se deitar. O artigo que era cheio de tabelas e estatísticas falava sobre os desafios da epidemiologia moderna e vinha com seu nome assinado no final da página: Verônica Menezes.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 20/09/2013
Reeditado em 30/09/2013
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