DEPOIS DA LUA CHEIA - DTRL

O velho delegado chegou à margem do lago quando os bombeiros já haviam retirado o cadáver da água e o colocado sobre a maca improvisada na areia. Ele parecia possuir uma bússola interna que o levava sempre a chegar quando essas preliminares já estavam executadas. Não falou com ninguém. Perscrutou o entorno, absorto e ignorando o burburinho. Repentinamente estalou os dedos e todos se viraram em sua direção como autômatos. Fez as perguntas de praxe ao legista e reteve mentalmente o que o interessava. Deixou o local como chegara, sozinho; caminhou em direção à estrada e sacou as chaves do bolso do velho paletó, ligou o carro e guiou de volta à delegacia.

Passados dois dias, num final de tarde, apanhou o automóvel e retornou ao lago. Chegou quando já escurecia. Trancou o carro, procurou um tronco de árvore, sentou-se e esperou. Quando a escuridão dominou completamente, a lua começou seu espetáculo. Primeiro incidindo sobre a superfície escura do lago, e depois banhando o entorno, sua luz produzia um belo espetáculo. Mas o velho delegado não estava ali para apreciá-lo! Esperou que algumas nuvens cobrissem o excesso de luz, apanhou sua lanterna de bolso e caminhou até a areia. Aparentemente descobriu o que queria e então caminhou na direção da estrada, tendo a atenção voltada para as pegadas na areia. Calculou que eram de sapatos número 41.

Do alto de sua velha cadeira lia concentrado o caderno de esportes de um grande jornal. Batidas nervosas na porta permanentemente aberta de sua sala trouxeram-no de volta. Sem demonstrar surpresa convidou o visitante para que entrasse.

- Já esperava por sua visita. Vamos, sente-se.

- Obrigado – o visitante, visivelmente desconfortável, agradeceu e sentou-se.

O velho delegado apanhou água num copo de plástico, uma barra de chocolates e colocou tudo à frente do visitante.

- Vim confessar o assassinato de minha esposa, delegado.

- Pode começar.

“Éramos um casal comum e feliz até aquele maldito mudar-se para o apartamento ao lado. De início não desconfiei de nada, mas outro dia cheguei num horário fora da rotina e lá estava o safado na porta do nosso apartamento. Escondi-me. Minha mulher apareceu na porta e recebeu algo que lhe foi entregue pelo safado. Ela executou um gesto que me pareceu de agradecimento e ambos riram como se fossem íntimos e felizes. Aquilo me causou intriga e principalmente uma profunda irritação. Quando entrei em casa procurei disfarçar meus sentimentos. Encontrei-a na cozinha com a geladeira aberta para guardar uma travessa. Virou-se quando me viu. Trocamos o beijo costumeiro, mas algo já estava esquisito na minha cabeça. Então apertei a garganta dela com uma força que nem imaginava possuir. Quando soltei ela desabou no chão. Desmaiada. Apanhei a maldita travessa na geladeira e a espatifei contra sua testa. O estrago no seu rosto foi grande. Coisa feia de se ver. Levei o corpo até aquele lago e o resto acho que o senhor já deduziu”.

- Por que retornou até lá mais uma vez?

Agitado, ele continuou.

“Sinceramente, não sei. Remorso talvez? Não sei! Mas algo estranho aconteceu lá. Cheguei, já era noite. Muito escuro. Quando a lua despontou tudo mudou em volta. A superfície do lago ficou visível, a areia, tudo. Achei que estava enfeitiçado quando vi o que julguei ser o fantasma da minha mulher sair do lago e flutuar sobre o espelho d’água na minha direção. Corri para o vulto imaginando poder abraçá-lo, mas ela apertou minha garganta com muita força. Atirei-me na areia lutando contra aquelas mãos sufocantes e, embora não conseguisse agarrá-las, sentia que me apertavam mais e mais. Quando já parecia desfalecer, uma nuvem muito escura e enorme atravessou a luz da lua. Quando recobrei minha consciência o vulto já havia desaparecido como que por encanto. Estava sozinho e deitado de costas na areia. Levantei-me e saí dali.”

-Tome sua água e coma um pouco desse chocolate – disse o velho delegado – e depois volte para sua casa.

- O senhor não irá me prender?

-Não!

E mentiu na sequência:

- Vou efetuar mais algumas investigações e depois volto a procurá-lo. Por enquanto descanse. Se for para o senhor sentir-se mais reconfortado, abra as janelas de seu apartamento e deixe que a luz da lua banhe o ambiente.

Alquebrado, o homem agradeceu, cumprimentou-o com a mão úmida e retirou-se.

- Mais um café, delegado?

- Sim, dona Minerva. Ah, mas desta vez sem açúcar, por favor!

Quando ela saiu, voltou sua atenção para a crônica que havia numa das páginas do caderno de esportes e fixou sua atenção num trecho particularmente feliz do cronista. “A vida é sempre mais escorregadia e amante do acaso do que qualquer fiel marido cerebral imagina”. O desfecho que ele imaginava para aquele caso era uma questão de tempo. Bastaria mais uma aparição daquele fantasma, pensou.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 07/08/2013
Reeditado em 07/08/2013
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