Mula-Sem-Cabeça: Um Conto de Amor? De Suspense?... Ou de Terror?

Numa pequena cidade no interior de Santa Catarina, famosa por suas histórias surreais que ocorriam após a meia noite de todas as sextas-feiras de lua cheia, uma jovem e dedicada moça chamada Paula, ia fielmente todas as manhãs assistir as missas do velho padre Machado.

Na manhã do dia 13 de Agosto de 1982, padre Machado já debilitado pela cegueira devido ao avanço da idade, já não podia mais realizar as missas, motivo pelo qual naquela manhã veio um novo padre, padre Antonio, um jovem idealista que sonhava em mudar o mundo com sua mensagem de amor, fé e de esperança.

Assim que padre Antonio começou a ministrar a missa daquela manhã, Paula que como eu já havia dito era uma moça exemplar, não conseguia desfixar os olhos daquele belo rapaz moreno, alto, forte... Que lindo par de olhos verdes... Por que pensamentos pecaminosos se passavam em sua mente puramente convertida? Questionava a si mesma.

No fim da missa, não resistiu e foi puxar assunto só para ter a sensação de que, nem que fosse por alguns minutos, aquele homem era apenas mais um homem comum.

Comum? Comum que nada!

Antonio... Quero dizer, padre Antonio, na medida em que ia falando, de tanta convicção seus olhos brilhavam... E como brilhavam... Iludindo a pobre moça que os interpretava de maneira totalmente errada.

Ele falava tanto, e quanto a ela? Bem, com as mãos apoiadas no encosto do banco, com aquele ar de boba, apenas balançava a cabeça concordando com tudo.

Durante uma passagem de segundo, ele calou-se e ela desprevenida ficou meio que sem reação, deu que ia falar alguma coisa, respirou fundo, olhou para trás e avistou o relógio... Já havia passado do meio-dia.

-Meu Deus! -gritou ela- O almoço do meu pai.

Como num ritual, todos os dias, assim que o galo começava a cantar, Seu Marcondes, pai de Paula, levantava da cama, passava um cafezinho que ele mesmo cultivava em seu pequeno sitio, colocava na velha mesa de madeira uma bandeja recheda de pão caseiro que sua filha fazia, a manteiga eram eles mesmos que fabricavam para consumo próprio e revenda no pequeno armazém do seu Renato, e não podia faltar o leite que a velha Mimosa dava. Posta a mesa, ele acordava Paula para acompanhá-lo naquele humilde banquete. Assim que tomavam o café, ele ia cultivar a terra, ela cuidava de arrumar a casa, tomava um banho, pegava sua bolsa, seu terço e ia para a igreja. Por volta das nove ela já estava apontando na velha estrada de barro, de longe ele jogava-lhe um beijo, ela dava tchau, entrava em casa, ligava o velho rádio de pilhas e escutava músicas raízes.

Seu pai já estava ficando preocupado com o sumiço da filha, mas confiava nela, ela nunca dera motivo para ele se envergonhar.

-Tenho que ir embora.

Mas já?—respondeu padre Antonio—é cedo ainda.

Quando ele disse isso à garota, ela se derreteu como manteiga exposta ao sol. Acabou sugerindo que ele fosse almoçar em sua casa para conhecer o seu pai que não era lá muito religioso. Ele aceitou. E lá se foram os dois caminhando por aquela estrada deserta... Como ele tinha assunto pensava ela, pra tudo ele tinha uma opinião formada... Ah se não fosse padre!... Ah se deixasse de ser padre...

Quarenta e cinco minutos depois eles já estavam em casa, o pai estava sentado numa cadeira na varanda e não disse nada quando percebeu que o rapaz que a acompanhava era um padre. Tirou o chapéu:

-Boa Tarde seu padre! Sua benção.

-Deus te abençoe filho.

Feito às devidas apresentações, Paula entrou para preparar o almoço enquanto os dois ficaram conversando na varanda.

Cerca das três da tarde a mesa estava posta. Almoçaram, comeram a sobremesa e seu Marcondes voltou ao trabalho, pediu para que o padrezinho ficasse a vontade; a casa era humilde mais honrada.

Padre Antonio ajudou Paula a arrumar a casa, enquanto ela lavava a louça ele enxugava. Até que o assunto começou a seguir em sentido perigoso.

-Você já se apaixonou padre Antonio?

-Esse não é assunto que se deve ter com um sacerdote.

-Mas antes de ser padre, é homem não é mesmo?

-Sim... Mas me porto de maneira diferente.

-Não digo agora, mas já chegou a se apaixonar por alguém?

-Se eu responder você muda de assunto?

-Sim.

-Uma vez, quando tinha quatorze anos, antes de entrar para o seminário, gostava muito de uma menina, mas ela foi embora e nunca me correspondeu.

- Ah mais isso acontece, todos temos uma primeira desilusão amorosa e você era muito novo.

-Mas isso que aconteceu foi bom, ao contrário, eu nunca teria encontrado a minha verdadeira vocação.

-Será?

Fez silêncio por um breve momento, escorregou um prato da mão de Paula, ela se abaixou para limpar e Antonio também, ela cortou a mão esquerda com um caco e começou a sangrar...

-Ai.

-Me deixa ver... Hum tem um caco me deixa tirar.

-Ai.

-Melhor fazer um curativo. Tem um pedaço de pano?

-Tem, está no meu quarto.

-Onde é?

-Eu te mostro, vem cá.

Ela segurou-o pela mão direita e o direcionou até o seu quarto, em seguida se sentou na beira da cama e apontou para a primeira gaveta da cômoda.

- Está ali, pode pegar.

Ele sentou-se ao seu lado e delicadamente enfaixou a sua mão... Ela estava adorando, parecia até que havia se cortado de propósito...

-Pronto.

Ela mirou bem os olhos nos dele, sorriu, beijou o seu rosto e agradeceu. Ele ficou meio sem jeito e se afastou um pouco.

-Que foi?

-Nada. Acho que está na hora de eu ir embora.

-Imagina, é cedo ainda. Que aconteceu?

Ele disfarçou, virou-se, respirou fundo, soltou o ar todo de uma vez e respondeu:

-Nada não.

Ela o virou de frente para ela, franziu um pouco a testa e disse:

-Você está sentindo o mesmo que eu, certo?

-Por favor, pare com isso.

-Eu nunca senti isso por ninguém padre, sempre servi de exemplo pra todo mundo, mas se o amor é algo divino, pra quê lutar contra isso?

Pela primeira vez ele ficou mudo sem ter o que falar. Ela o surpreendeu com um beijo, ele tentou contê-la, mas acabou correspondendo. Deitaram-se na cama e acabaram cedendo ao desejo ímpeto que os dominava. Nenhum dos dois havia feito aquilo antes. Depois de consumado o ato, acabaram pegando no sono.

Por volta das sete da noite, seu Marcondes entrou na casa e estranhou o silêncio foi até a cozinha encontrou cacos de vidro no chão. Caminhou mais um pouco e entrou no quarto da filha que estava aberto...

-Pela santa, o que está acontecendo aqui?

-Papai! Eu posso explicar.

-Explicar o quê? E o senhor em seu padre, se fazendo de santo...

-Papai... Eu...

-Você o quê? Você não é mais minha filha. Que vergonha meu Deus... Que desgraça.

-Mas papai...

Seu Marcondes interrompeu a filha dando-lhe um tapa na face direita que de tão forte acabou jogando-a no chão. Ela começou a chorar. Sem demonstrar nenhum tipo de arrependimento, mal deixou os dois se vestirem e aos xingos os expulsou de dentro de casa, jogando-os no quintal, apontando o dedo indicador direito para cima, mencionou as seguintes palavras:

-Filha desonrada, a partir de hoje, por ter se deitado com um padre, assim que aparecer no céu uma lua como esta, estará condenada a vagar pela noite como uma besta rodeada de terror, tentará se aproximar das pessoas, mas elas terão medo e horror de você. E quanto ao senhor, padrezinho, sofrerá o tormento eterno em vida por ter cometido tamanho pecado, nunca terá paz e destruirá aquela a quem o senhor tomou.

Aos prantos e completamente espantados, os jovens caminharam em direção à cidade, ele deixou a moça sozinha num banco na praça chorando e entrou na igreja para pedir perdão.

Após a meia noite, desorientada, ela começou a correr pelas ruas da cidade. De repente começou a perceber suas mãos e seus pés se transformando em patas, seu corpo ganhando forma de um animal e o seu rosto insuportavelmente queimando... Virando uma espécie de monstro por fora, mas por dentro era ela mesma, os mesmos pensamentos, os mesmos sofrimentos... A corrida agora era a galopes.

Passadas algumas semanas, Paula começou a sentir-se mal, sofrendo de constantes enjoos, tonturas e desmaios, foi até uma cidade vizinha e descobriu que estava grávida. Completamente sozinha e desorientada, passou a viver num casebre abandonado, todos na cidade acreditavam que ela havia morrido junto com o seu pai num incêndio que ocorreu durante uma tempestade noturna; um raio caiu bem em cima da velha casa, não dando tempo de seu Marcondes salvar nada, nem a própria vida.

Durante a noite, quando a cidade já estava dormindo, ela invadia os armazéns e furtava comida. Durante as luas cheias surgiam boatos de que um tipo de monstro em forma de mula tinha chamas de fogo no lugar da cabeça, com latas de alimentos amarradas em suas patas traseiras (diziam que eram dos alimentos que roubava dos armazéns). Toda a cidade, amedrontada pela besta, apagava-se às oito da noite, principalmente as luas cheias.

Seis meses depois padre Antonio pediu transferência da cidade, aquela cidade só lhe trazia imensa tristeza e infelicidade, não podia mais suportar aquilo.

Mais dois meses se passaram, e finalmente Paula entrou em trabalho de parto, sozinha trouxe ao mundo uma linda menina a qual passou a chamá-la de Luz.

Os dias, as semanas e os meses foram se passando e quando a pequena Luz já estava começando a engatinhar e falar suas primeiras palavras, Paula percebeu que não podia mais manter aquele lindo bebezinho isolado do mundo e numa determinada noite, com grande aperto no coração, colocou sua filhinha dentro de um cesto com um bilhete onde continham informações como o nome, data de nascimento e o quanto estava sendo doído para uma mãe fazer aquilo, mas que não tinha outra opção. Bateu numa porta, escondeu-se atrás de uma árvore até que viu uma mulher pegar sua filha no colo, dar-lhe um beijo e entrar.

Durante os dez anos seguintes, Paula de longe acompanhou o desenvolvimento da pequena Luz, já estava uma mocinha linda, parecida com ela e com os olhos do pai, era feliz e muito amada pelos pais adotivos.

Totalmente aprofundada no silêncio do isolamento, no dia 12 de Agosto de 1993, numa quinta-feira, tomou uma decisão que mudaria para sempre a sua vida: ir embora daquela cidade. Aos galopes percorreu encruzilhadas de sete cidades diferentes, tentando encontrar um novo rumo... Na sétima seguiu em direção esquerda. Encontrou um balcão abandonado nos fundos de uma velha igreja... Deitou-se ali.

Por volta das quatro já da madrugada do dia 13, um determinado homem percebeu algo estranho deitado totalmente encolhido num cantinho isolado, como estava escuro aproximou-se um pouco mais. Percebeu que aquilo não era algo humano, era uma criatura maligna, correu para a sacristia, pegou uma cruz, uma imagem e um punhal de prata (única coisa que encontrou para deter a criatura).

Voltou em passos leves ainda no escuro para não chamar atenção, levantou o punhal e realizando uma reza em voz alta, apunhalou bem no meio do peito esquerdo da criatura que estava dormindo que acabou acordando já golpeada.

Começou a se contorcer de modo que as chamas atingissem um pedaço de pau clareando o ambiente. Alguns segundos depois por ter perdido muito sangue, começou a enfraquecer e voltar a sua forma humana. Ainda com os olhos abertos ela olhou para aquele homem e...

-Padre Antonio... É você?

-Paula?

-Sim...

Assustado, rapidamente sentou-se ao seu lado, a pegou no colo e começou a chorar:

-O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? Paula, fala comigo.

-Padre, eu nunca fiz mal a ninguém, o meu único erro foi amá-lo...

-Eu sei, eu também nunca a esqueci. Eu... Eu... Amo você.

Ouvindo isso, já fechando os olhos, ela apenas agradeceu virou o rosto e morreu.

Desesperado, ele a beijou e tentou fazê-la voltar à vida... Tentativas em vão.

Carregando-a em seus braços, ele abriu um túmulo no local onde ela morreu, enrolou-a em um lençol branco e a enterrou ali mesmo, no fundo da igreja.

Vários anos já se passaram e aquela pequena cidade catarinense se desenvolveu. No entanto, ainda assim nos dias de hoje, corre-se o boato de que uma criatura estranha com pés de lata aterroriza a cidade e as redondezas, uma criatura horripilante que passaram a chamá-la de “Mula-Sem-Cabeça”.

Gabi Alves
Enviado por Gabi Alves em 29/07/2012
Reeditado em 03/06/2016
Código do texto: T3803024
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