O Despertar de Mafalda


(Para melhor entender este conto, leia Mafalda.)
Mafalda, depois de ver o seu grande ídolo, doutor Rubião, em atitude altamente repreensível, com um dos meninos da Casa do Pequeno Anjo, teve um treco, e foi internada por ele em sua clínica particular, onde era mantida em coma induzido.

Após alguns meses, precisando ausentar-se para participar de um congresso de medicina, ele viu-se obrigado a delegar a medicação de Mafalda à sua enfermeira-chefe, que, por estar muito sobrecarrega, cometeu um engano, privando Mafalda de sua dose cavalar de sedativos.

Era o dia da visita de Irmã Lourdes. Como sempre, trazia lençóis limpos e flores para alegrar o quartinho da amiga. Era o mínimo que podia fazer. Afinal, Mafalda deixara um seguro para os meninos do Orfanato, caso lhe acontecesse alguma coisa. Certo é que não tinha sido por bondade, apenas para obter vantagens do banco onde fazia negócios, mas não importava. Na prática, esse dinheirinho veio a calhar para Irmã Lourdes resolver umas pendências que a afligiam.

Enquanto ajeitava os panos da cama, empurrando a amiga de lá para cá, pareceu-lhe ouvir um gemido vindo da boca de Mafalda. Prestando atenção, sacudiu-a novamente, e outro gemido, desta vez, mais claro.

Assustada, chamou a enfermeira que, radiante, comemorou:

- Está voltando! Está acordando!

Irmã Lourdes ajelhou-se ao lado da cama e, com as mãos postas, clamou:

- É um milagre de Deus, Nosso Senhor!

E pegando do terço, rezou uma Ave-Maria e um Pai-Nosso, em agradecimento.

Enquanto irmã Lourdes rezava, a enfermeira auscultava a paciente, checava a sua temperatura, pulso, media a pressão e tomava todas as providências para que ela tivesse uma volta tranquila. Desligou-a do aparelho que controlava a respiração, comentando:

- O doutor Rubião vai ficar contente! Ele era muito cuidadoso com dona Mafalda, ele mesmo fazia questão de aplicar a sua medicação.

A paciente olhava para tudo, em volta, com surpresa, sem entender onde estava:

- O que está acontecendo? O que é isto? - e, vendo Irmã Lourdes ainda ajoelhada, perguntou:

- Irmã! O que está fazendo? Onde estou?

- Ó, Mafalda! Você não sabe o que aconteceu?

- Eu fui ao orfanato consultar o doutor Rubião, por estar me sentindo mal e... Ó, meu Deus! Rubião! - lembrou-se ela, levando a mão ao peito, que apertou com força como se, com isso, conseguisse cessar a enorme dor que o comprimia.

- O que houve, Mafalda? O que está sentindo? - alarmou-se a freira.

- Oh! Irmã! Você não sabe... Onde ele está? Aquele monstro?

- Quem, Mafalda? - e, voltando-se para a enfermeira - Ela está delirando?

A enfermeira meneou a cabeça. Não parecia.

- Rubião, Irmã! Onde está aquele crápula?

- Crápula, Mafalda? O que houve, pelo amor de Deus?

- Oh! Irmã. Aquele dia, no consultório... Você não sabe o que ele estava fazendo com o pequeno.

- O quê, Mafalda? Pare com este suspense!

- Ele estava obrigando o garotinho a... Ó, irmã! Ele é pedófilo!

- Ora, Mafalda, por favor! Você deve ter sonhado tudo isso... - disse a freira tentando tranquilizar a outra, embora em seu íntimo, tudo agora fizesse muito sentido.

Não confiava no médico e sabia que ele, de alguma forma, fazia mal às crianças. Mas pedofilia era muito mais do que poderia imaginar. “Meu Deus!”, ela pensava. “Como pude ser tão tola, não ter observado nada?” E sentia-se mal, sufocada, angustiada, omissa no cuidado de seus pequenos anjos. Queria sair dali, queria ir ao encontro dos seus meninos. Queria levá-los ao médico para examiná-los, ver se havia vestígios que comprovassem essas acusações horríveis. Mafalda, porém, não parava de falar, contando todos os detalhes do que havia visto, cada mínimo e odioso detalhe. Irmã Lourdes tentava ordenar os pensamentos, abafar neles a voz irritante da outra com orações e cantos litúrgicos, mas ela falava e falava e falava, ignorando os sentimentos que dominavam a freira. Irmã Lourdes sentia ânsias, culpa, raiva... E só se controlava porque era uma mulher de Deus e nas mãos dEle colocava seu destino. A pobre enfermeira, porém, não possuía tanta força e, muito menos, fé. Chorava, pensando nas crianças, todos os pacientes que o médico atendia antes da internação de Mafalda, quando ele abandonou a pediatria; pensando nos pais dessas crianças, pensando em suas próprias suspeitas que nunca foi capaz de formular por julgá-las descabidas até para o desagradável doutor Rubião.

E foi ela que sugeriu, tomada por um súbito fervor:

- Temos que denunciá-lo. Ele vai pagar pelo que fez...

- Sim! Mas como? - interrompe a freira, interessada.

- Chamamos aqui o delegado de polícia e ele toma o depoimento de dona Mafalda.

- Sim! Sim! Chame a polícia! - agita-se Mafalda - Quero contar tudo o que vi. Quero que aquele monstro seja castigado, que apodreça na masmorra, pelo que fazia àquelas pobres criancinhas. - e desabou em soluços convulsivos.

- Acalme-se, dona Mafalda! Isso vai lhe fazer mal. A senhora acaba de acordar de um sono prolongado, e agora sei o que a mantinha desacordada. Era a medicação que eu me esqueci de lhe dar, hoje. Aquele maldito a mantinha sedada, para que não dissesse nada. Podia tê-a matado, com tanta droga.

A revelação caiu como uma bomba. Ainda mais essa! Não há dúvida, chamava-se a polícia, e pronto! Estava tudo resolvido. Ele ia para a cadeia, pagar pelos seus crimes.

Com a notícia de que o doutor Rubião era pedófilo, e havia uma testemunha ocular, o delegado não tardou em chegar, acompanhado do escrivão, que tomaria a termo as declarações de Mafalda.

Mafalda, radiante por ver a sua platéia aumentada, e pela chance de dizer tudo o que sabia, desatou a falar. Falou tanto, que, nem com taquigrafia, o pobre escrivão conseguia acompanhar as palavras que saíam aos borbotões de sua boca.

Já saíram dali para pedir ao MM Juiz que expedisse uma ordem de prisão contra o médico.

Dr. Rubião, já voltando da viagem, deu de cara com um policial que o aguardava na entrada da Clínica, para dar-lhe voz de prisão. O médico, perplexo, reagiu:

- Eu? E posso saber por quê?

- Pedofilia.

Rubião ficou branco, sentiu-se desfalecer, encostou-se à parede, para não cair. Ainda tentou retrucar:

- Deve haver algum engano... eu não...

Mas o policial não o deixou terminar a frase. Pegou-o pelo braço, e levou-o para a viatura, que os aguardava.

Da janela do quarto, no andar de cima, Irmã Lourdes e a enfermeira a tudo assistiam, aliviadas. Se houvesse justiça, esse aí não faria mal a mais ninguém. Mafalda, mesmo deitada, e ainda fraca por causa da longa internação, matraqueava sem parar.

Após examiná-la, um outro médico da clínica deu-lhe alta. Ao chegar em casa, porém, a pobre mulher começou a angustiar-se. Sentia-se sozinha naquela casa enorme, insone. Se já tinha distúrbios do sono antes, que dirá agora, depois de tanto tempo dormindo?

Ligou para o orfanato, indiferente ao velho relógio do corredor que acabava de tocar três badaladas.

Irmã Lourdes acordou, estremunhada, e foi atender:

- Lar do Pequeno...

- Irmã! - Mafalda não a deixou nem dar boa noite nem bom dia - Sou eu, Mafalda.

- O que foi agora, Mafalda? Está passando mal?

- Não! Ou, por outra, sim! Não consigo dormir... estou angustiada...

- Quer que eu ligue para a enfermeira?

- Ela não vai poder me ajudar. Eu estou com algumas coisas entaladas na garganta e preciso desabafar.

- Desabafe, Mafalda. - resignou-se a religiosa, já esperando o rosário de lamúrias da outra.

- Ah, irmã! Estou tão furiosa com o doutor Rubião!

- É, Mafalda! O que ele fez àquelas crian...

Mafalda a interrompeu, como era seu estilo:

- Sim, sim, foi horrível! Mas estou falando do que ele fez a mim!

- É! Terrível, mantê-la sob sedativos...

- Eu tinha pesadelos! - e Mafalda disparou a contar alguns deles, muitos deles, sem parar, ora heroína, ora vítima, mas sempre a protagonista de histórias épicas inacreditáveis, mesmo para alguém que ficou tanto tempo em coma.

Irmã Lourdes aproveitou para cochilar uns minutinhos, a cabeça mal acomodada recostada na parede.

- Irmã? Irmã? Dormiu? - berrou a outra de lá.

- Não, Mafalda, claro que não! - respondeu uma sobressaltada freira. - Estava só...

- Então! Eu estava lhe dizendo sobre o doutor Rubião! Como pode me enganar desse jeito?

- Bom! Acho que a menor preocupação dele era a nossa opin...

- Ai! Estou tão furiosa! Eu preciso desabafar!

- Bom... Eu estou aqui e...

- Com você, não, irmã! Com ele!

- Hein?

- Eu não consigo perdoar! Eu preciso dizer na cara dele tudo o que eu penso dele, o monstro que ele é!

- Mas, Mafalda! Ele já está preso...

- Mas é pouco!

- Pouco? Você sabe o que acontece com pedófilos e estupradores na prisão?

- É pouco! Eu preciso ir lá, jogar na cara dele tudo o que estou sentindo!

- Mafalda! Não vá atormentar mais o homem. Perdoa!

- Ora, irmã! O que ele me fez, não tem perdão!

E desligou o telefone, sem dar chance à resposta. Irmã Lourdes meneou a cabeça. O episódio não ensinou nada a Mafalda. O mundo continuava centrado em seu próprio umbigo. É verdade que ele foi cruel em roubar dela os últimos meses naquela condição vegetativa, mas o que ele fez às crianças era muito pior. Temia que eles jamais viessem a superar o trauma.

Mas, enfim, aquela era a velha Mafalda, pensou a religiosa. Persignou-se, resignada, e tentou conciliar o sono, apesar de, pela janela já se vislumbrarem os primeiros raios de sol, e estar próxima a hora de ela se levantar.

Mafalda nem dormiu mais. Passou a madrugada ensaiando seu discurso rancoroso. Nem bem amanhecia, dirigiu-se ao presídio e, lá chegando, pediu licença ao diretor para visitar o doutor Rubião. Ele estava em cela especial, não só porque tinha curso superior, mas para sua própria segurança. Os outros presos já o vinham cercando, furiosos ao sabê-lo um molestador de criancinhas, já não saía para o banho de sol. Ali sentado, maldizia a própria sorte e a bruxa que o tinha denunciado. Ah, se lhe pudesse pôr as mãos! Ela ia ver com quantos paus se faz uma canoa... Seria capaz de fazer picadinho dela, e jogar os pedaços aos cães, para que os comessem.

Qual não foi a sua surpresa quando o guarda introduziu Mafalda em sua cela?

Encolerizada, mão na cintura, ela começou a repreendê-lo por tudo o que havia feito a ela. O guarda deixou-os a sós, com o aviso de que “Eram só dez minutos!”

“É mais do que eu preciso” - pensou ele, e aproximou-se dela, fingindo arrependimento. Esta postura submissa potencializou a fúria dela, que lhe desferiu um tapa no rosto. Ele segurou-lhe as mãos e, aproximando-se ainda mais, olho no olho, implorou, em desespero:

- Me perdoa, por favor!

- Seu nojento! - ela gritou, tentando soltar-se.

- Sou! Eu sou doente, Mafalda. Mas, eu podia magoar qualquer um, menos você!

Mafalda olhou-o confusa.

- Será que você não vê que tudo o que fiz com você foi por não suportar sua decepção?

Mafalda, finalmente calada, permanecia incrédula.

- Manter você ao meu lado, ainda que sedada, era melhor do que perder você, do que suportar o seu desprezo, o seu rancor.

Mafalda não lutava mais para soltar-se.

- Será que você nunca percebeu que eu te amo? - dirigiu-se para uma Mafalda ruborizada, tomada pela emoção de estar frente a frente com o homem que a perturbava há tantos anos, por quem se apaixonara secretamente. O coração lhe batia mais forte, sentia-o engasgar sua garganta. Pela primeira vez, era difícil falar. Ele a enlaçou em seus braços e aproximou o seu rosto do dela.

Mafalda não acreditava no que estava acontecendo. Ele a queria, tinha-a em seus braços, e chegava cada vez mais perto... ela ofereceu a sua boca entreaberta, sedenta por aquele primeiro beijo de amor, e esperou, com os olhos fechados, imóvel, com medo de acordar do sonho.

Então, ele a beijou. Foi quando ela sentiu uma fisgada, uma dor horrível. Só foi compreender o que tinha acontecido, quando ele cuspiu alguma coisa, e ela viu o sangue escorrer da sua boca. No chão, no meio de uma poça vermelho brilhante, jazia sua língua.

Rubião se vingara dela do jeito mais doloroso, mais cruel! Ele pagaria por seus crimes, mas sua delatora não sairia impune.

Quanto Irmã Lourdes soube do ocorrido, lamentou pela pobre mulher. Porém, intimamente, ao saber Mafalda definitivamente muda, chegou a ficar aliviada. Aflita pelo egoísmo desses pensamentos, foi procurar o padre, para se confessar. Sem querer expor a amiga, procurou omitir seu nome. O padre, após ouvi-la calado por alguns segundos, interrompeu-a:

- Mas, esta mulher é a Mafalda?

- Sim, padre. Como sabe?

- Ah, minha filha! É comigo que ela se confessa... Quer dizer que ela ficou muda?

- Sim, padre! É horrível! Mas eu não consigo deixar de sentir-me aliviada...

- Bem... É compreensível...

- Padre!

- Faça assim, irmã: reze dez Pai-Nossos e dez Ave-Marias. - disse ele, concluíndo os ritos penitenciais.

Ela levantou-se para ir ao genuflexório, enquanto ele ficou matutando: “Mafalda... Muda!... Minha Nossa!”

Em seguida, levantou-se, saiu do confessionário e caminhou até onde estava a freira:

- Chegue um pouquinho para lá, irmã! Também tenho uma penitência a cumprir.