DESENCARNADO VIVO

Os vinte metros de galão estavam estendidos no meio da barriga do açude. Domingos, cinquentão encruado, sabe que vai ser uma boa noite de pescaria. Os tucunarés, os curimãs estão afoitos.

É fim de novembro, as ventanias cessaram. Só um vento brando aqui e ali. A lua cheia reina no céu, soberana, nesta sexta-feira. O sertanejo acomoda-se a favor do vento, afastado do açude, no meio das touceiras de capim-açu. Tira o cachimbo do bisaco, arrepia o fumo, toca fogo, dá uma chupada longa para sentir, em forma de fumaça, o gosto do tabaco na boca. Já beira pela meia-noite. Um açoite de vento tange uma catinga de bicho podre, enjoenta, invadindo suas narinas. “Esses fi-duma-égua, já tão começano a jogá bixo morto na bêra do açude.” Resmunga baixo. O pescador corre a vista pela beira das águas. Divisa, vindo do nascente, um vulto negro andando lerdo, vagaroso. “Deve ser um cavalo ou alguma rês extraviada,” sussurra. Uma nuvem negra engole a lua. Domingos dá umas chupadas forte no cachimbo, raspa a garganta e com uma cusparada joga longe uma plastada de baba com sarro.

A lua reaparece sobranceira. O matuto levanta a vista, a catinga está mais forte, o vulto mais perto, mas este não se afasta da beira do açude. O animal passa na sua frente chapinhando na água em seu passo lento como se estivesse à cata de alguma coisa. Domingos excomunga: “mai qui diango de animá é esse, num tem rabo, é maió qui uma vaca, ti iscunjuro”. O bicho para, a podridão se espalha como uma nuvem baixa. O beiradeiro apaga o cachimbo, prende a respiração. Sente os cabelos da cabeça ficarem de pé. Ele não acredita em visagem, não sabe nenhuma reza. “O homem é o bicho”, é o seu credo. Sempre diz o chavão quando se sente em apuros. O ser peçonhento segue seu rumo, descendo, seguindo a orla dágua. Uma nuvem franzina esconde a lua mais uma vez, e ao vulto negro. Domingos sente um arrepio subindo do fim do espinhaço, alevantando o que é de pelos. O saco escrotal engelha, fica menor, aperta-lhe os testículos. Começa a suar frio. Mete a mão na bolsa de palha, apalpa o terçado, o cacete de jucá. Estremece. Está dentro da podridão. A catinga torna-se insuportável. A lua devolve-lhe a claridade, como um dia e, à sua frente, ela lhe apresenta o terror. Uma massa peluda, negra, enorme, disforme, dois olhos vermelhos queimando dentro dos seus olhos. Domingos, em estrebuchos, sente um cipó negro, liso, saído do ventre da massa gosmenta, invadindo sua boca, descendo garganta abaixo se misturando às suas tripas, deslizando pelo reto, saindo no seu cu. Uma dor traspassa-lhe as carnes, as entranhas. Sente que o vergão apodrecido está fazendo o caminho de volta. Outra pontada de dor, agora, na beirada do cu. Uma unha está sendo encravada como uma barbela de anzol, furando-lhe o anel de couro. O canoeiro se lembra, sabe que precisa despescar, recolher o galão, voltar para casa antes da meia-noite. Sabe, também, que aquela noite não é uma noite qualquer. Ele está sendo virado pelo avesso.

Sagüi
Enviado por Sagüi em 28/03/2011
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