O diabo atrás da porta

O primeiro ano é sempre melhor. Depois, desmorona. Na casa, havia festas e algazarras de fim de tarde. As crianças, já com dois e três anos, brincavam com leveza sob o sol morno. Havia também risos, risos descontrolados que vinham não somente daqui, mas da casa ao lado — do Jorge, vizinho meu e de Lorena, minha esposa. As gargalhadas incisivas que atravessam a divisória e chegavam ainda audíveis por aqui, não me pareciam ser advindas de gracejos espontâneos e sim de escárnio. Zombarias. Ora, se as risadas cortavam paredes e o vento as trazia em direção à minha residência, certamente o escárnio era-me dirigido.

O Jorge. O que pode ser dito do Jorge? Nunca gostei do sujeito. Era um tipo alto, de ombros largos e barba bem afeitada. Chegava e roubava a atenção. Queria ser o centro da roda de churrasco: brincava, fazia piadinhas, constrangendo uns e outros. E era meu vizinho. Enquanto as crianças brincavam, os meus filhos e os dele, vez ou outra metia a cabeça por cima do muro e espiava. Olhava de soslaio, como quem não quer nada e ria. E ria descontroladamente. Nunca achei boa a ideia de ver nossos filhos brincando com os daquele lá, no entanto, Lorena, a quem sempre tem razão, julgou ser correto as crianças terem com quem brincar. Não fiz resistência. Deixei. Criança é criança, não tem culpa do pai que tem.

Outro dia, perto do Natal, O Jorge cismou em querer fazer amigo secreto. Sorteou o Lucca, meu mais velho. Deu-lhe um pula-pula gigante que deve ter custado caro. Caro para mim, não para o Jorge, que mexia com ações e investimentos. Parecia ser homem de negócios refinados. Vez ou outra eu observava em sua casa reuniões de homens engomados, de carros importados e relógios dourados. Nunca o vi com mulher. Cheguei a imaginar por diversas vezes que o sujeito tivesse tendência para o homossexualismo. Homem que mexe demais com aparência dá logo na pinta. Também nunca perguntei, não é da minha conta. Se investiguei além do normal foi por mera casualidade.

Um pula-pula gigante! Não me desce até hoje.

Sorteei a mãe do Jorge, a Greta. Tinha nome americano e parecia ter vindo mesmo do Mississipi ou daquelas bandas da América do Norte. Falava um bom inglês e tinha modos clássicos de aristocrata. Burgueses. O Jorge ia na mesma linha. Filho de peixe…

Dei-lhe um colar de madrepérola para fazer contrabalanço com o pula-pula. Gostou. Disse-me que foi um dos melhores presentes que ganhou na vida. Sei bem que é mentira, mas também não fiz caso. Não foi tão caro o colar. Adiantei metade do décimo-terceiro e pronto, comprei. Já lhe dei o presente olhando a expressão de Jorge. Como a mãe, também parece ter se agraciado. O agrado dele me desagradou. Dei o presente para não parecer mesquinhos aos olhos de Lorena, que estava sempre a me alfinetar nesse ponto.

O meu mais novo é o José. Nasceu dois anos depois do Lucca e eram bastante parecidos. Eles parecem ter sido gerados sozinhos, sem que eu fizesse parte. Puxaram tudo para o lado da mãe: cor, cabelo, boca e feições. Para mim, resta apenas contentar-me com meu último nome em suas identidades. Dou tudo. Casa, comida, brinquedos e amor. Nada lhes falta. A mãe recebe os mesmos termos. Nos últimos quatro anos é que parece não sentir-se agradecida com o que faço. Tudo é pouco. Tudo desagrada. Confesso que de um ano para cá também deixei de fazer esforço. Se um lado não cedia, fiz que não cedesse o outro também. E ficamos assim, fechando daqui e sendo obstruído por lá.

E o Jorge, do outro lado dos tabiques, por detrás da tinta, do chapisco e reboco, desatava a rir. Gargalhava vorazmente. E gargalhava alto. De que tanto ria-se o Jorge? Cada ponta de risada me fazia estremecer. Cada soluço entre os espaçamentos do riso parecia dizer, por entre as entrelinhas, o meu nome. Maldito. Caçoando de mim, às vistas e ouvidos da minha família. Eu discutindo com Lorena, ela dizendo-me o que não faço e deixo de fazer, que não limpo, que não me importo e que me dedico pouco e ele lá, zombando, no meio das suas reuniões e tirando sarro. Talvez não se gracejasse de mim, mas parecia. Com toda aquela pompa e marra a tirar-me a razão, o Jorge. Por dias ignorei, fingi-me de louco para amainar Lorena e não criar caso desnecessário.

Então chegou o ano novo.

Lorena quis festa e eu, para não desagradar-lhe, fiz que sim. Quis também convidar Greta e o Jorge. Assenti de novo.

No jantar, nos trouxeram vinho do porto. Casillero del Diablo. Vinho tinto, fino, de marca. Queriam me humilhar. Desvinculei-me da ideia absurda que me passou pela cabeça e bebi uma taça. Não bastando uma, já migrei para a terceira e as vistas turvaram. Não queria parecer fraco na frente de Lorena e muito menos do Jorge. Muito menos do Jorge. Se me derem licença, disse, irei retirar-me mais cedo. Vinho tinto me dá sono. Jorge floreou um discurso que, segundo ele, tornaria o ano que estava por vir gratificante, mas eu disse qualquer coisa e fui para meu quarto. Deitei-me. Lá embaixo, continuaram em festa. Dei-me conta da minha própria insignificância. A festa resumia-se ao Jorge: e eu era apenas parte dela.

E as risadas, sempre as risadas.

Se era coincidência, não sei, mas depois da festa a Greta passou a vir mais tempo para cá. Dia após dia atravessa o limiar entre as duas casas e vinha ter com Lorena. Tornaram-se próximas, quase confidentes. Eu chegava do trabalho e lá estavam as duas, com sussurros breves e olhadinhas de soslaio para mim. Viam-me e pareciam desconfiadas. Viam-me e paravam as conversas. Desconfiei também.

Pressionei Lorena no canto da parede e inquiri respostas. Disse-me que era bom ter com quem conversar. Sentia-se só e Greta era amiga fiel. Tinham idades distintas, isso é certo, e era até bom que fosse assim, pois sentia mais aconchego de mãe que de amiga. Por ora, relevei. Com o tempo, passei a não dar tanta atenção, confesso, e era até um alivio não ter de aguentar a tagarelice de Lorena ao longo do dia.

O que me incomodava mesmo era o Jorge.

Como a mãe vivesse lá em casa, era certo que ele viria ao menos algumas vezes ao dia chamar-lhe. Noutras, até se deixava ficar um pouco mais e conversavam os três em minha cozinha: Greta e Lorena a segredar no ouvido uma da outra e o Jorge de canto, a rir. Não sei que tanto assunto era esse que tinham para papear dia após dia — e por tanto tempo.

Eu passava pela cozinha e lá estavam eles a conversar. Sequer me notavam. Passei a ser um estranho em minha própria casa. Chegou ao absurdo de eu evitar ir beber um copo de água para não ter de cruzar caminho com o Jorge.

Um dia desses, não teve jeito: enquanto transitava para outro cômodo, nos deparamos um de frente para o outro. Cumprimentei e apertei-lhe a mão com força, para tomar nota de minha repulsa. Devolveu na mesma moeda, e pressionou com ainda mais força do que eu imprimi. E deu aquela maldita risada de escárnio. Segurei-me para não esfregar semelhante rosto repugnante no assoalho do piso. Fui educado e até cortês. Sorri de volta e perguntei como estava. Estava bem. Disse-me ainda, como se eu houvesse em determinado momento perguntado, que os negócios iam bem. A bolsa subiu e minhas ações também, disse-me. Tinha ações da Petrobrás e de outras instituições. Lembro que fiquei feliz na época dos escândalos envolvendo a empresa. Só pensava no Jorge perdendo tudo, vendendo a casa, negociando os carros com o banco, a mãe trocando o colar para pagar contas. Pensei e senti-me glorioso. Àquela época dos escândalos de corrupção as ações realmente baixaram. Porém, Jorge manteve-se forte. Agora, hoje, enquanto cumprimentava-me animado, as ações haviam tomado o ponto de inflexão e subido vertiginosamente. E junto delas, sua grana. Terminou de dizer-me isso e foi ter com Greta e Lorena na cozinha.

***

Lucca e o José cresciam bem e dominavam a casa, que ia tornando-se pequena. Quis mudar. Talvez encontrar uma casa maior, em um bairro melhor, também com boas escolas. Lorena fez que não, a escola de Lucca era uma das melhores da região. Além disso, tinha os amigos dele, e como ficariam os amigos? Lucca não poderia sair assim sem mais nem menos, no meio do ano letivo. Fui taxado mais uma vez de péssimo pai. José era novo ainda e, nesse caso, não haveria de ter ainda opinião. Escanteada a ideia de mudança, me restou apenas ficar ali, enquanto os meninos cresciam, a casa diminua, a Greta se enfurnava aqui dentro e o Jorge ria. Parecia mais feliz que eu, o Jorge.

Um mês após minha ideia ter sido derrubada, Greta segredou à Lorena que estavam em reforma. Tinham a casa grande demais e não teria por que ter tanto espaço para apenas duas pessoas. Disse, ainda, que conversaria com Jorge para ver a possibilidade dele ceder um pedaço para nós. O terreno é enorme, Lorena, e quem precisa de espaço são vocês, disse. Como Lucca e José também crescessem rápido, aceitei. Forçosamente, mas aceitei.

O ruim era só ter de aceitar os pitacos do Jorge. Não bastando ser especialista em negócios, era, também, segundo ele, um amante da arquitetura. Ele mesmo elaborou a planta e fez o projeto. Achei que era só pabulagem, mas, no fim das contas, parece que deu certo. Em três meses saímos de setenta metros quadrados para quase cento e vinte de espaço livre. De graça. Como Greta afeiçoou-se tanto por Lorena, intimas semelhante a mãe e filha, calhou de não cobrar pelo terreno cedido.

***

Agora as duas casas eram ainda mais emendadas umas nas outras. Se havia um barulho, não tinha como saber se acontecia nas bandas de cá ou nas de lá. As festas e reuniões dadas por Jorge pareciam agora acontecer dentro da minha sala de estar. Lorena não achava problema algum, ainda mais depois de terem nos fornecido parte de suas terras. Seria até um pecado reclamar de algo, disse-me.

Ainda mais alto que o som, eram as gargalhadas.

Aparecia na borda da piscina, de sunga, copo com vodca e gelo, levantando a mão direita em minha direção, como convite. Eu fazia que não com a cabeça. Depois da noite do vinho, nunca mais me dei com bebida. Associei minha insignificância com ela e custava a colocar outro copo na boca. Álcool tornava-me fraco, tirava-me da realidade, emaranhava meu raciocínio.

Greta praticamente morava aqui. Acordasse oito ou dez da manhã, não tinha importância, ela estaria lá, no pé do sofá, conversando com Lorena. Se esta outra estivesse dormindo, brincava com Lucca, dava-lhe brinquedos e contava histórias. Dizia-se sua tia-avó. Parecia rato, entrando de fininho, beliscando aqui e ali, envenenando isso e aquilo, esgueirando-se por toda a casa fosse qualquer hora do dia.

Resolvi colocar ratoeiras.

Acordava cedo, antes de todos, e trancava as portas. Colocava aviso nas portas dizendo que não, que não queria ser importunado. Se perguntassem depois, eu dizia não era para ela e sim para os pedintes e os crentes. Não sei se acreditou, mas suas visitas diminuíram a frequência. Não achei bom. Como ela não viesse, Lorena quem ia e ainda me deixava cuidando dos meninos. Saia cedo e voltava tarde. Atrasava almoço, não estendia as roupas e acumulava louça. Sobrou para mim. Já trabalho fora, ainda teria a obrigação de fazer tarefas em casa? Não tinha, não, senhor! Ela que fizesse.

Outro dia chegou tarde das andanças na casa vizinha. Perguntei-lhe se não tinha casa e filho para cuidar. Uma mulher já velha, adulta, entocada na casa dos outros. Coisa feia! Repreendi. Não deu ouvidos e logo em seguida, no mesmo dia, estava lá, cochichando, sussurrando, a falar besteirinhas, a dizer coisinhas, passando informações para o inimigo.

A rapariga da Lorena. O veado do Jorge.

Com certeza estavam de caso.

Dia desses peguei os dois de conversa debaixo do pé de laranjeira, bem aqui no quintal de minha casa. Falta de respeito. Quando os vi, sorriram amarelo para mim e disseram venha, venha também conversar conosco. Não quis diálogo e os deixei ali, sozinhos, a Lorena mordendo os lábios para falar e o Jorge apoiado na planta, arrancando minhas folhas, dilapidando-as uma a uma com os dedos firmes.

Tive insônia. O pouco de sono que tive, sonhei com Lorena a roçar de leve a barba grossa do Jorge, a encostar perto de seu corpo, a dizer-lhe que sim, Jorge, que você pode tudo e que eu podia nada. Que eu era nada. Seis anos para ser trocado por um animal desses!

Passei dias a fio, encolerizado, sentindo ciúmes. Se brotasse na mente qualquer imagem dos dois, a vontade era desmantelar a socos, ou até pior, matar um por um e depois matar-me. As crianças ficariam com a Greta ou iriam para adoção. Não pensei nos filhos do Jorge, a ex-esposa lhes tinha a guarda e eles só perambulavam por lá aos sábados ou domingos, nunca nos dias de semana. Nos dias de semana o Jorge é que perambulava por aqui. Trabalho era esse que o deixava em casa o dia todo? Canalha!

Resolvi fazer testes e, de propósito, saia para comprar coisas que não me faltavam. Inventava de buscar papel, sacos para lixo, somente para sair e deixar os dois se satisfazerem. Meu plano era chegar de surpresa e dar o bote, pegar no flagra. Sempre que voltava, não encontrava qualquer suspeita de traição e tornava-me mais agressivo. Batia boca com Lorena e dizia que sabia das suas andanças com outros homens, que trazia doença para dentro de casa. Taxei-lhe de puta, mentirosa e tudo que viesse à cabeça. Como ela revidasse, tive que me defender e sentei-lhe a mão nas faces. Mereceu. Mentia e era descarada, a Lorena.

Escondeu os machucados e passou quase semana sem colocar o pé fora — nem à casa vizinha atreveu-se a ir. Greta vinha, todo santo dia, perguntar-me sobre minha esposa e eu só dizia que estava tudo bem, é só virose, Greta, no mais tardar ela está de volta. Jorge não se atreveu a vir. Claro que cismava com minhas desconfianças e mandava sempre perguntas capciosas por intermédio da mãe. E não sai por que a Lorena? Não quer que eu leve uma sopinha para ela? Deve estar com fome a pobrezinha. Neguei-lhe todos. Disse que estava bem cuidada, precisasse de algo eu mesmo forneceria.

***

Os roxos dos machucados cessaram, o rosto desinchou, e como a vergonha amainara, decidiu sair. Greta quis fazer bolo para comemorar a melhora e assentimos que sim, podia trazer. Vieram todos. Jorge trouxe seus filhos, pois era sábado. Lucca e José também quiseram participar — devido à presença dos seus amigos — e Greta, sussurrando baixinho, tentou colher algo de Lorena. Aproximei-me para interceptar qualquer espasmo que saísse por ali, e escutei a velha fazendo a cabeça da amiga, dizendo-lhe que, se precisasse, era mãe dela e haveria de dar-lhe o melhor. Lorena quisesse sair, e me deixar, estaria amparada, disse Greta. Velha imunda, saiu do seu palacete para vir aqui em minha residência encher de tolices a cabeça vazia de minha esposa. Na frente de meus filhos, na frente de Jorge, me desrespeitando, me tirando a autoridade.

Enquanto as duas conluiavam, o Jorge ria, lambuzando-se com minha desgraça.

Meti na cabeça a ideia de que Greta, Jorge e Lorena estariam acomunados, de trato já feito, só esperando o momento para tirar-me da jogada. Iam-se embora e deixariam os filhos, a casa e o chifre para serem cuidados por mim. Para que eu guardasse tudo enquanto eles se aventurassem pelo mundo, divertindo-se, pulando de cidade em cidade, a fazer conchavos com meu nome, a rir-se da minha cara. Talvez fossem para o Mississipi, terra Natal da mãe, viajar como Rolling Stones pelos shows de música country do estado. Depois seguiriam para Alabama e, por fim, aportariam na Geórgia, pulando como Mickeys na terra do Tio Sam. Eu permaneceria aqui, em João Pessoa, com o sol quente a açoitar minha fronte, maldizendo a praia de Cabo Branco e esperando, pacientemente, feito pateta.

Ainda permaneciam todos aqui, na sala de estar, o bolo ainda por cortar, maculado apenas pelos dedinhos ariscos dos rebentos.

A cabeça fervilhava.

A vontade era pegar o álcool e tocar-lhes fogo ali mesmo. Só sentiria pelas crianças, que teriam de presenciar tão desgraçada cena.

Deixei o tempo correr para tomar luz aos pensamentos. Resolvi aguardar, esperando o momento que o Jorge, assim como Judas, beijasse minha face e a Greta, impiedosamente, sendo carrasca e também juíza, lançasse-me direto à cruz. Por fim, Lorena — maldita Lorena — chegaria para liquidar-me. Afastaria minhas mãos em direções opostas e, em júbilo, as pregaria com toda a força no tabique mofado do calvário.

Via Jorge não só como Judas, mas também como o diabo. Era um sete-pele, a roubar-me a esposa, a tirar-me a masculinidade, a engendrar em mim o ciúme que nunca tivera. Não suportava vê-lo sequer perto da Lorena. Era tortuoso. Aquela mão firme no pescoço de minha mulher, a barba arranhando o rosto incólume, a brutalidade substantiva que exalava me fazia ter raiva. Imaginar me dava raiva.

Como tudo ficou tranquilo por quase um mês, decidi anuviar a cabeça, pensar em outras coisas e talvez, só talvez, confiar de novo em Lorena. Afinal de contas, era minha esposa. Fez o que fez, mas ainda assim era minha esposa.

Era aniversário de Lucca e fizemos festa. Antecipando-me a pula-pulas malditos para livrar-me de madrepérolas, decidi que não teria presentes. Os convidados bateriam uma palminha, comeriam um docinho, filariam um ou dois salgados e pronto, todos para casa que o santo não é de ouro.

Mas o Jorge quis esbanjar.

Para jogar um peso nas costas do pai do aniversariante, comprou-lhe não um, mais dois brinquedos de montar. Para os convidados, que olhavam admirados a lembrança dada por ele, soou melhor que eu, o censurador de festas, o fiscal de brinquedos. Ainda sorriu para mim, com todos em redor a olhar-nos, e disse-me que desculpa, que não fez por mal, tinha Lucca como filho e não deixaria de presenteá-lo. Sorri amarelo de volta. Rodeado por pessoas, tive de sorrir, parecer simpático.

Peguei fama de fiscal de brinquedos. Não bastava os outros três a me infligir gozações, ainda tinha de ser chacota para os ali presentes, envergonhando-me na frente de todos. É só brincadeira, diziam-me, e sorriam, gargalhavam. São apenas piadas, diziam, não há por que levar caso. Eu ria de retorno, amarelo, sem graça, bobo.

Já era noite e todos iam saindo, uns levando pedaços de bolo, outros levando apenas mãos vazias. Sentei-me na cadeira de balanço e passei a admirar o laranjal. Crescia grande, imponente, já fazia semelhança à minha altura o pé de laranja. Lembrei dos primeiros anos, o pé ainda curto, a flor brotando, hortaliças ali em redor, Lorena também a germinar uma plantinha dentro do ventre. Àquela época a vida era boa. O sol queimava pouco, a brisa do vento batia forte nos nossos cabelos e as tardes de domingo eram sempre felizes. Eu segredava juras de amor no ouvido de Lorena, ela me abraça de volta, sem rancor, sem labuta, sem o disse me disse das velhas fuxiqueiras a intrometer-se nas vidas alheias. E, principalmente, sem o Jorge. Culpo-o por tudo.

***

No outro dia, de manhãzinha, chamei Lorena de canto, para apaziguar. Lembrei-lhe das tardes de domingo, dos primórdios de nossa casa, do amor, do pé de laranja miúdo. Ela esquivou-se, depois afastou-me e não quis diálogo. O que fiz não tinha perdão, disse. Eu era doente, não sabia me portar, era desvairado, agressivo e chulo. Faltou só me cuspir a cara. Segurei-me para não descer a mão de novo. Por vezes escutei meu pai dizer, em roda de amigos, que mulher era igual massa, quanto mais a gente bate, melhor fica. Era um grosso, não sabia das coisas, tinha pouco estudo. As mãos, diferente das minhas, tinham calos, eram grossas, fruto da enxada que toava a terra firme do solo de Sapé. Sou diferente. Se fiz aquilo, se me descontrolei por segundos a ponto de tornar-me agressivo, foi por culpa de Lorena. Me obrigou. Com suas mentiras, traições e insinuações para com o Jorge, me obrigou.

Acho-me melhor que papai. Tenho estudo. No entanto, ele, apesar das palavras impróprias, ditas para impressionar seus pareas, nunca levantou dedo para minha mãe. Era bronco, sei, mas em mulher nunca bateu. O braço era sempre apto à roça, ao campo, às derrubadas de plantações de abacaxi, nunca disposto às barbáries.

Me sinto triste. Desde que ele morreu, jamais pisei de novo em Sapé. O que diria ele se me visse a bananar perante Greta, ou pior, perante Jorge. Meu pai jamais permitiria um homem da roça curvar-se diante de criaturas da cidade grande. Veja só o sujeito, que dorme de meia e com vento feito em máquina, assomando por cima de um cabra que revira terra, diria ele.

Sou a vergonha. Não só por ser fraco, mas também por bater em mulher, por curvar-me a outro homem. Por deixar-lhe entrar em minha casa, comer de minha comida, causar-me ciúmes e ainda rir às minhas custas.

***

Passaram-se semanas e as casas pareciam comprimir-se mais e mais: as paredes aninhadas, tabique a tabique, tinta com tinta, as conversas soltas, os cochichos mansos, os segredinhos que não eram nada aqui e ali, as discrições, e as vidas avizinhando-se. Duas casas unidas, uma tentando tomar o que havia na outra. A primeira, com quatro pessoas estranhando-se. A outra, com duas, tentando pular cerca, criar território. Chegando-se, de mansinho, aos poucos, para derrubar o rei, tomar a rainha e desestabilizar o reino.

Para mim, caberia como rei, para eles, sei bem, sou bobo, aquele faz graça para rirem, aquele se humilha diante do povoado, com guizos barulhentos a chocalhar. As roupas brilhantes e coloridas do ultraje, dançando, batendo os pés, tentando fazer-lhes rir. Nesse cenário, o Jorge estaria em sua habitual postura, postado como líder, imponente, impiedoso, e a Lorena de lado, Rainha, serviu, apta a fazer tudo que o outro pedisse, sendo submissa. Greta ficaria de lado, seria conselheira, a mestra dos sussurros, saberia tudo que ocorresse no reino e guiaria todos em direção à estrada que quisesse. Não teria o poder de um líder, mas teria o poder das palavras, da inteligência. Colheria de bocas de um lado e plantaria em ouvidos do outro. Poderia, fosse de seu querer, pegar uma frase solta aqui e passar como história completa para lá. Tinha gabarito para tal.

Tenho medo da intimidade que Jorge e Lorena possuem, da amizade íntima engendrada sem meu entendimento. O que possuía o outro de tão especial que fazia Lorena correr para tão próximo dele? Eu nunca saberia. Saberia apenas se me colocasse em seu lugar, transportasse meu corpo para o dela, entrando-lhe na mente, tornando-me outro ser que não fosse mais eu, não fosse o homem que sou, e sim mulher. Imaginei-me agora no meio dos súditos, sendo outra individuo além do bobo, agora um de importância, sentando ao lado do rei, somente para saber o que tanto aquela outra mente possuía. Queria saber-lhe os segredos mais íntimos, suas façanhas, seus trejeitos não externalizados pela mente, o que realmente achava de mim, se quando ria, ria por me achar tolo ou por ter sentimentos felizes à minha presença.

***

Traçar a mente do meu antagonista passou a ser uma obsessão. Quase um vício. Esqueci Lorena, ignorei Greta e passei a focar naquilo que me tirava o sono, o Jorge.

Decidi que agora seria a hora de me aproximar, fingir de amigo, com o único objetivo de colher informações. Na semana seguinte, comprei uma caixa de cerveja e sentei-me no quintal, próximo ao meu pé de laranja, e fingi estar ali por casualidade. Aparentei ser casual. O Jorge, do outro lado do muro, dava festa para seus amigos, gargalhava, estava feliz com sua sunga vermelha e seu copinho de gim com tônica. Olhou por cima da mureta e me viu. Perguntou se queria juntar-se a eles, beber uma cervejinha e até, por que não, trocar a roupa e pôr uma mais adequada para o banho. Como estava propenso, no momento, a aceitar tudo, deixe-me levar para as bandas de lá com pouca resistência. Fui para passar poucos minutos, somente para estudo, mas, percebendo que poderia extrair algo da valioso daquela social, deixei-me ficar. A cerveja era boa, as conversas também. São amigos de longa data, você e o Jorge? Perguntaram-me. Sim, quer dizer, mais ou menos, somos vizinhos há algum tempo, rebatia e entornava o copo. Não bebia desde o réveillon, de modo que no segundo virote a bebida subiu à cabeça e meus pensamentos tornaram-se disformes. Jorge gargalhava, mas dessa vez senti que não me eram dirigidas. Ria dos amigos, brincava, mergulhava na piscina e subia de volta, sempre brincalhão, a fazer piadas. Comecei a achar que era proposital, sabia do meu desagrado por ele, sabia que não o tolerava, e agora, para provocar, dirigia as risadas aos outros homens ali presentes, risadas que, por anos, suportei sozinho nos muros que separam os quintais. A raiva já subia à garganta, quanto mais intimidade dava aos outros, mais a cólera irradiava no meu peito. O sangue fervia, quente, as veias pulsando, prontas a saltar-se fora e irromper minha pele. Queria isso mesmo, minha pele cortada, o sangue pingando na beirada da piscina, fundindo-se com aquela água suja. Meu ódio era tanto que imaginei meu sangue adentrando a água azul e indo, de pouco em pouco, misturando-se às químicas do cloro, tornando-se uma só coisa, passando a ser irreconhecível na imensidão azul. Seria a simbiose de minhas entranhas e da água que está, agora, a escorrer ao longo da pele do Jorge. Ninguém haveria de saber que parte minha estaria ali. Toda vez que entrasse e saísse da piscina, a fazer graça aos amigos, sairia fundido com algo meu, com algo externado de meu corpo. Desejaria que se afogasse, batendo perna para sobreviver, puxando a braçadas o fôlego que nunca viria, talvez até engolisse aquele líquido salobre, e aí seria minha glória, minha reparação por anos de sofrimento, vê-lo com algo meu dentro de si, a definhar na frente de todos. Para sacramentar, ainda me pediria ajuda, implorando, por favor, que eu o salvasse, fosse o seu salvador, e eu, com rosto altivo, esticaria as mãos estoicas e lhe tiraria de lá.

Jorge seria meu submisso, pois precisou de mim. E eu, seria seu salvador.

***

Fui para casa e desisti de estudá-lo. Estar-lhe próximo era ainda pior que vê-lo gargalhar de longe.

Em casa, Lorena perguntou o que fazia na casa da Greta, e se, realmente, era eu a estar de amiguinho com o Jorge. Cortei-lhe logo as asas e mandei tomar conta dos filhos, varrer um chão, procurar o que fazer. Era difícil a relação com mulher entrona. Sei que é esposa, mas teria de saber tudo? Escondo bem quando quero e Lorena não haveria de saber o que penso ou deixo de pensar. Não daria esse gostinho a ela. Às vezes, nem eu mesmo sei das minhas pretensões.

No mesmo dia veio o baque: peguei as duas, Lorena e Greta, falando de paternidade, de testes de DNA e pensão alimentícia. Dizendo que nos Estados Unidos não sabia, mas que no Brasil atrasar a mistura do filho dava cadeia. As duas pareciam discordar e achei estranho. Eram sempre coladas, como mãe e filha, como duas menininhas a darem as mãos, brincando e cochichando, e agora estavam de mal uma da outra.

Uma semana depois, peguei-lhes de novo discutindo no canto da cozinha: Lorena estirava o dedo na cara de Greta, apontava, gesticulava, as expressões do rosto da outra também não pareciam nada amigáveis. Passando de acaso, ainda tive tempo de escutar as ameaças que Lorena fazia, falava em contar tudo, dizer a verdade. Greta enlouquecia, comprimia o corpo, mordia a mandíbula, parecia ter raiva. Regozijei-me do imbróglio e quis ir a fundo, saber mais. Fui ter com Lorena e não obtive nada, sequer uma palavra em resposta. Se o silêncio dela fosse o preço pelo afastado de Greta, não iria insistir. As duas que se entendessem.

***

Greta parou de vir. Apartaram.

Alcoviteira fora de cena, afastava também o filho. Depois que decidi não me importar mais com Jorge, vê-lo longe seria bom. Sentia-me melhor, a testosterona aflorada, o rosto para cima, sendo alfa de minha própria zona. Fui tomando conta do território, mudando isso e aquilo, impondo regras, exercendo minha autoridade para com Lorena e, principalmente, para minha casa. Sou o dono de tudo, e homem nenhum do mundo tornaria a rondar minha área. Os urubus que rondassem para outro lado. Aqui, não, pois estava cuidado.

***

Tudo ia bem, as brigas cessaram, Lucca e José cresciam com saúde, fortes, embora sempre apegados para o lado da mãe.

Então veio a notícia, desvelando os detalhes do bate-boca entre Greta e Lorena. Dessa vez, atingiu-me forte. Acertou-me em cheio a ponto de prostrar-me ao chão, pedindo Deus, pai de todos os homens, leve-me para junto dos céus, pois não aguento tanta desordem, tanta mentira e iniquidade. Os homens são mentirosos, pai, e eu estou em seu redor, tomando tapas e pontapés, sofrendo com feridas em meu âmago. Chorei. Chorei igual menino quando apanha com cipó de erva-cidreira; igual empresário às voltas com o banco em seu encalço, tentando tomar-lhe os bens. Igual pai, vendo seu filho tomado de suas próprias mãos, e sendo entregue a outrem, indo a juízo social. Se Deus existe, acredito bem, não deixaria cidadão de bem passar por semelhante desgraça. Sou bom pai, boa pessoa, pago minhas contas em dia, errei e ainda erro com Lorena, é certo, porém não sou mau. Cresci enveredado pelos caminhos certos, disso tenho certeza. E mesmo assim, sendo homem de estirpe, sofro os flagelos. Humilham-me, como cachorro sendo chutado enquanto revira o lixo. Para tais, sou o próprio chorume, o verme que rói as carnes podres dos restos fecais. Seria uma honra ser ao menos o cachorro ferido, cujo momento trágico ainda desperta empatia em alguns. Afago, abraço amigo, uma palavra de conforto, nem isso haveria eu de merecer. Pelo contrário, sequer se aproximariam de mim fosse ao menos para sangrar a pele, para infligir-me alguma desgraça.

Como ninguém fizesse, conclui que o correto seria eu mesmo dar cabo de minha existência, de minha solidão. Quando for-me embora, os segredos que fiquem com Greta, Jorge e seus amigos, para que discorram às risadinhas enquanto me viro dentro do caixão.

Morrer seria minha libertação.

Poderia, agora, jazer livre dos meus devaneios e desejos contidos ao longo da vida. A morte libertaria minha alma, que flutuaria por sobre os ventos mornos de João Pessoa, e percorreria em êxtase as ruas disformes dos bairros coloridos do centro Histórico, apinhados de gente cuja vida sempre me foi distante.

Julguei que a morte seria a liberdade da alma, do cansaço de uma vida engaiolada, presa, petrificada e sem cor. Minhas vontades reprimidas vieram fazer sentido apenas nos últimos anos, com a cólera produzida pelo sorriso vizinho. A morte, seria o grito dos desiguais, dos lazarentos fúlgidos, quem sabe até dos covardes. Se a tirar a própria vida fosse ato de covardes, o que seria viver então? Viver a uma vida que não era minha, com gostos que também não eram meus, não poderia ser considerado vida. Podia não, Deus, ainda mais tu que enjeitas esses filhos de sete meses, à margem da sociedade, nascidos em ventres secos de famílias usuais.

Meu pai do campo e minha mãe interiorana jamais compreenderiam. Lorena também, jamais assimilaria pontos que discorro. E dei sinais, bem sabe que dei pistas do que sou, do meu jeito. É tanto que buscou outras camas para deitar, outros lares para apoiar-me. Gerou vida e, mesmo assim, criei, como meus, como saídos de mim, embora não soubesse do engano.

Olhando agora, por sob panos limpos, acho que somente o Jorge me compreenderia. Talvez alguns de seus amigos, aqueles que iam e vinham por entre as madrugadas de forte calor. Aqueles que Greta não gostava, maldizendo-lhes, chamando-os por nomes fortes, os sujos, dizia ela. Essas palavras também me atingiam. As ouvia do outro lado do muro e também sentia a angústia, e descontava em Lorena, como se esta fosse a causadora da dor, como se esta tivesse algo a ver com tudo. Pobre da Lorena, meteu-se em terreno lamacento, em águas turvas que os próprios cavalos-marinhos desconhecem, embora vivam dentro do oceano, dia após dia, carregando o fardo pertencente às outras espécies, trocando os papeis.

Tirar uma vida ilusória seria mais fácil que uma verdadeira, pois estaria certo da desgraça que seria viver no duplicado.

Sou um homem duplo, com duas vidas distintas, concomitantes, correndo na mesma direção e que, tão logo partem, partem cada uma à sua maneira, por vezes unindo-se, por vezes digladiando-se até a morte.

Antes de ir, deixei-lhes uma breve carta:

“Batalhei duas vidas. Não houve vencedor.”

JS Marinho
Enviado por JS Marinho em 27/03/2024
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