Sobre o menino da varanda...

A primeira vez que vi o menino daquela varanda, de cara colada contra as grades do portão, quase o cumprimentei, mas um impulso secreto recolheu minha mão e meu olhar de aceno e me fez seguir meu rumo, quase fugindo. Depois de um tempo, já distante, uma dúvida de remorso me apunhalou: “o que custava dar um oi?”

Eu ainda estava me acostumando com a chegada naquele novo lugar e sempre que podia, cumprimentava todos, intencionando conhecer e ser reconhecido naquela estranha vizinhança. Mas notei as pessoas daquela casa, a que antes ignorei, eles também me ignoravam e meu remorso virou um “bem-feito”.

Apesar da curiosidade e sem jamais ter conversado com os vizinhos sobre o menino da varanda, um dia me dei conta, ele não era assim tão menino! Na verdade, era um adulto com rosto infantil, tocado por algum tipo de deficiência mental, talvez um acidente, era uma incerteza sutil e difícil de notar. No passado, nunca gostei do termo “deficiente”, mas não sabia explicar. Hoje, acho que é porque ele parece um jeito fácil da sociedade se eximir da responsabilidade de cuidar de pessoas com necessidades específicas. Nunca descobri o motivo deles me ignorarem...

Um dia, passando por lá, vi o senhor estranho, ela parecia sem rosto e o saudei, mas ele nunca me respondeu, nem mesmo um olhar de desprezo. Imaginei que fosse surdo, mas depois o vi conversando com os vizinhos, então… Imaginei muitas explicações de ser ignorado, mas com o tempo, também passei a ignorar. Aquela varanda se tornou um ponto cego de minha passagem, ignorar parece sempre ser mais fácil, mas, na verdade, nunca é...

Outro dia, ouvi o menino emitir um murmúrio baixo e ritmado, mas só ele parecia entender. O som atraiu minha atenção e pela primeira vez e sem querer, olhei bem nas profundezas de seu olhar e o que vi, não compreendi de imediato, mas era como se houvesse alguém preso lá dentro, pedindo ajuda para sair daquele olhar distante; isso me fez sentir enterrado vivo!

Passei dias preso em pensamentos, de como seria viver daquela forma, vendo pessoas e apenas acenando e murmurando, sem nunca ser correspondido. Sendo limpo, alimentado, cuidado por outros, privado de uma vida autônoma. E quanto mais pensava, mas me atormentava, pois não conseguia não me imaginar no mesmo corpo, aprisionado nos recônditos de uma mente distante.

Certa vez, até sonhei que conversávamos e era como se ele fosse um antigo amigo, ele tinha acabado de acordar dum sono profundo. Aos poucos, ele se lembrava das coisas, mas ele não sabia explicar. Era como se aquela sua “demência” indeterminada fosse um cobertor de dormência sobre sua lucidez, com camadas pesadas e escuras e a cada parte retirada, mais e mais sua consciência emergia das sombras, até seu despertar. Nesse dia, acordei sobressaltado com uma imagem congelada de um riso perdido, e fiquei mais reflexivo...

Desde a primeira vez que o vi na varanda, a rua estreita do ponto cego parecia nunca mudar, sempre luminosa, mesmo quando as chuvas lavavam as pedras de entulho acumuladas pelo tempo e mesmo depois do sol as polir com luz, fazendo delas camadas de quebra-cabeças brilhantes, como pedaços coloridos de açúcar cristalizado. Eu sempre perdia o equilíbrio enquanto, ao mesmo tempo, olhava e andava naquele chão, porque as bordas do arco-íris sempre mudava a cada passo.

Até um dia, quando senti eu mesmo abrindo os olhos com enorme dificuldade, como se o peso do mundo estivesse aos poucos sendo retirado de cima do meu corpo, sem dor. E uma luz opaca atingiu minhas retinas, eu abria os olhos num mar de puro leite e só aos poucos, tudo transparecia como água. Tentei abrir a boca, mas não sentia nada, tentei emitir sons, mas me sentia incapaz de fazer coisas simples, até um vulto de aparência humana começar a ganhar forma diante de meus olhos, era uma pessoa desconhecida, porém familiar e de sua boca saía um ruído distante de alguém falando das profundezas de um lago escuro.

Nesse misto de indecisões, comecei a ouvir meu coração descompassar em minhas costelas, um eco se amplificando na minha cabeça num ritmo crescente, despertando o meu corpo aos poucos, comecei a sentir minhas pernas e um leve incômodo nos quadris e coluna, um formigamento nos braços e uma tensão crescente na nuca, enquanto a voz e a imagem do desconhecido familiar ganhava nitidez e me pedia calma.

- Onde estou? Pensei ter perguntado, mas, na verdade, apenas murmurei baixo e ritmado como se tivesse acabado de aprender a falar, tão fraco, nem eu mesmo conseguia me ouvir.

- Calma, está tudo bem, … ouvi como resposta a voz difusa da silhueta, ela soava cada vez mais familiar.

Com um susto, senti meus ouvidos destamparam e comecei a escutar sons que os penetravam como pregos besuntados em manteiga, lentos e rápidos ao mesmo tempo, sirenes de alerta e ao mudar a atenção do meu olhar, percebi uma máquina monitorar meus batimentos cardíacos enlouquecida a cada respiração ofegante soprada do meu peito; então me dei conta: usava sondas e estava no leito de um hospital! Tudo girava!

Me esforcei para tentar lembrar de como cheguei lá e a cada esforço, mais angustiado me contorcia, por não conseguir lembrar; era tudo confusão. Até sentir a figura familiar se aproximar e me segurar contra a cama, por um segundo que pareceu se perder na eternidade. Então enxerguei meu próprio reflexo na lente de seus óculos, era o senhor sem rosto e o que vi, fez todo o meu corpo enrijecer de súbito: eu era o menino de cara colada na grade, da varanda, da rua estreita, do ponto cego!