Ceviche para a despedida

Ceviche para a despedida

Terminava de montar sua mochila quando era surpreendido por Antônio.

- Oi Jorge, já arrumou suas coisas? – Perguntava Antônio

- Sim, tentarei pegar o ônibus das treze – Respondia Jorge sendo direto.

- Mas vamos fazer um almoço para você!

- Almoço? – Perguntou Jorge com ar de espanto.

- Sim! Ceviche para a sua despedida. Você não vai recusar né? – Respondia Antônio com esperança em sua voz.

Apesar da estranheza do convite, Jorge aceitara para não aparentar que sua ida se parecesse com uma fuga.

- Beleza! Tentarei pegar o ônibus das quinze horas – Dizia Jorge sustentando a tranqüilidade.

A movimentação em torno do almoço da despedida de Jorge começara e logo Rayssa e Helena estavam na cozinha organizando algumas coisas no balcão. Jorge ainda se encontrava em seu quarto, ganhando tempo para não precisar mirar os olhos dos demais. Quando mais uma vez era surpreendido por Antônio, que desta vez solicitava por sua ajuda.

- Jorge! Eu e as meninas estamos fazendo o almoço, já compramos todos os ingredientes, mas infelizmente o nosso gás acabou. Eu to zerado, você pode comprar? – Pedia sustentando uma postura maleável.

- Eita cara! Eu até gostaria, mas não consigo. Só vou sacar o dinheiro lá na cidade quando for. – Essa era a condição de Jorge, por estarem em uma casa afastada da cidade.

- Tudo bem então. Vou dar um jeito aqui - Dizia Antônio com gratidão no tom de sua voz.

Percebendo que não conseguiria permanecer isolado até o momento do almoço, Jorge deixa seu quarto em direção a cozinha com a postura de quem precisa encarar seus fatos. O cheiro refrescante do limão se misturava com o ar da cozinha que além de iluminada pela luz do dia, também era sustentada pela luz ultravioleta que resplandecia da armadilha de moscas em cima da geladeira. Jorge vai de encontro com Rayssa e Helena anunciando sua chegada.

- Oi meninas! Bom dia! Como estão?

- Oi Jorge! Bom dia! – Respondia Rayssa aparentando um falso entusiasmo – Dormiu bem?

Cerrando um pouco mais de seus olhos que já eram miúdos, Jorge responde ostentando uma calma que não conseguiria ter naquela hora – Um pouco bem né! Ontem nossa noite foi bem agitada, acordei com a ressaca latejando meu cérebro.

- RÁ! – Helena soltaria um grito parecido com uma risada – Ontem a noite foi daquelas. Nossa! Jorge, você bebeu demais! – Terminava com internas gargalhadas que lhe saiam pelas narinas.

- Sim, sim... – Respondia Jorge sem emoção e mudando rapidamente de assunto para deixar aquela conversa de lado, pelo menos naquela hora.

- Então, vocês que vão preparar o Ceviche? O que vocês vão colocar? – Questionava sobrevoando com os apertados olhos sobre a grande bacia em cima do balcão.

- Então Agora está interessado em culinária é? – Afrontava Rayssa.

- Sim, sim! Gosto de saber das coisas que vou ingerir – Respondia Jorge.

Tomando a frente da conversa e ostentando o poder de seu conhecimento, Helena começa a indagação – Então anota! Filés de peixe fresco cortado em cubinhos, 500ml de suco de limão, o mais azedo. Cebolas roxas, Tomates, Rocoto, coentro, azeite, sal e é claro piruá para complementar o prato. Mistura tudo em uma bacia e deixe o limão “cozinhar” o filé de peixe – Concluía.

- Então o peixe não precisa ir ao fogo? – Questionava Jorge com ar de espanto.

- Não... O limão faz a cocção do peixe – Respondia Helena com simplicidade.

- Entendi – Proferiu Jorge ficando em silêncio.

O silêncio tomava conta da conversa e todos ali ficaram parados olhando Rayssa despejar o suco de limão no filé do peixe que aos poucos se esbranquiçara. O silêncio foi interrompido por um elétrico “teck” que vinha do mata mosca em cima da geladeira. Uma já fora.

- Adoro quando elas morrem – Dizia Rayssa – É muita mosca, e nesse calor, nem se fala.

Um barulho de motor invadia o espaço anunciando a chegada de Antônio. Saindo do veículo e retirando da porta traseira um botijão de gás, Antônio carrega o pesado objeto em direção à entrada da sala, deixando a porta de seu carro aberta.

- Jorge, me ajuda aqui – Solicitava Antônio – Isso ta muito pesado.

Jorge recorreu ao botijão das mãos de Antônio que o levou em direção ao fogão e o instalou na mangueira que estava pendurada e engordurada.

- Eu vou adiantando a mesa para não perdemos tempo – Sugestionava Jorge enquanto lavava suas mãos na pia.

- Tá bom! – Respondia Rayssa.

- Vamos almoçar na mesa aqui de dentro ou lá de fora? – Questionava Jorge.

- Acho melhor lá fora – Sugeriu Antônio – Ai deixamos a gatinha aqui dentro e ela não fica nos perturbando enquanto a gente almoça.

A gata peluda que estava deitada no sofá mirava Antônio com desdém.

- Ou então podemos comer aqui dentro, pois lá fora (na varanda) está ventando muito – Sugeria Jorge – E em questão à Celeste, a gente pode deixá-la em algum dos quartos.

- Eu prefiro comer aqui dentro – Dizia Helena – Essa hora já está ventando muito.

- Decidido. Vou arrumar a mesa aqui da sala – Firmava Jorge, que se direcionava à mesa.

Um elétrico “teck” ruía mais uma mosca.

A mesa posta ostentava o chão através de seu vidro nu sem qualquer pano de mesa, os pratos ansiosos e vazios refletiam a sua beleza por estarem limpos, uma bacia pequena guardava em si uma porção generosa de piruá e ao centro da quadrada mesa, brilhava com acidez o ceviche ostentando seus filés esbranquiçados com emaranhados roxos e vermelhos e bonitas folhas de coentro verde que complementava o prato. Os copos aguardavam o preenchimento da água gasosa preta. A sala e cozinha permaneciam fechadas impedindo o furioso vento das doze horas.

Com exceção de Jorge, todos se direcionavam a mesa. O chamado de Antônio ecoou pela casa.

- Jorge! Não podemos almoçar seu almoço de despedida sem você!

- Já vou! Estava guardando a celeste no quarto – Respondia Jorge surgindo do corredor.

Jorge lavava suas mãos e se encontrara com os demais na mesa. Ele se sentou no assento vazio de frente para Antônio. À sua esquerda estava Rayssa com sua cara de fome e a sua direita estava Helena, concentrada na bacia de ceviche sobre a mesa.

-Então, sirva-se primeiro. Meu grande! – Dizia Antônio em tom de irmandade.

- Só por que vou embora hoje? – Questionava Jorge servindo-se de uma tremenda colherada do suculento ceviche.

- Ai garoto! Depressa, estamos com fome! Já sabes que sentiremos a sua falta – Adiantava Rayssa.

Antes que Jorge conseguira se servir por completo, um forte ruído de vidros sendo quebrados vinha do corredor. Todos direcionaram sua atenção à fonte do barulho que vinha do quarto.

- Jorge, aonde você deixou a Celeste? – Questionou Helena.

- No quarto de vocês duas – Respondia Jorge.

Um elétrico “teck” matava mais uma mosca.

- Ai mano, Por que você a colocou lá? – Questionou Helena ferozmente.

- Meu quarto já está limpo e arrumado, pode ser que chegue algum hospede. Achei melhor deixá-la no quarto de vocês duas – Respondia Jorge dando de ombros.

- Eu vou ver o que ela quebrou – Levantou Rayssa fechando a cara após se pronunciar.

Antônio lançou para Jorge um olhar de “ o que você fez?”. Em seguida levantou-se e seguiu as duas garotas até o quarto.

A porta do quarto fora aberta e um cheiro doce e enjoativo escapava o local assim como Celeste que corria sorrateira pelo corredor.

- Meu perfume! – Gritava Rayssa em voz dramática – Ela derrubou. Poxa...

- O que é isso aqui em cima? – Perguntava Helena retirando de cima da penteadeira restos de espinhas de peixe.

Apresentando-se novamente na sala, Antônio questiona Jorge – Irmão, foi você que deu os espinhos para a gatinha?

- Não! – Respondia diretamente – Sabe que só coloco a comida dela lá fora.

- Sim, sim... Ela deve ter levado para lá antes – Deduzia Antônio.

- Sim... – Respondia Jorge desconcentrado.

- Meninas, venham, vamos começar nosso almoço – Chamava Antônio.

Rayssa e Helena deixavam o quarto com as caras semi-amarradas e voltavam aos seus lugares. Celeste se esfregava entre os pés de Jorge.

Um elétrico “teck” levava mais uma mosca

Todos terminavam de se servir, e agora os miados de celeste exigiam um pouco do ceviche – Não pode – Dizia Jorge – Está com bastante pimenta...

O clima sobre a queda do perfume impedia todos de se pronunciar. O aroma doce e embriagante invadia a cara de todos tampando suas bocas em silencio. Era meio dia e dezessete.

Após sua segunda colherada, Rayssa se pronuncia cortando o doce silêncio – Então Jorge? Você vai pagar meu perfume?

- Há, há, há! – Começava Jorge – Você não que mesmo falar em “pagar” não é? Se eu fosse você eu comeria logo, pois estou apurado e quero que minha ida seja tranqüila.

Rayssa Olhou com olhos semicerrados para Jorge e se manteve calada para não levantar os fatos. Todos comiam com muito apetite. Jorge comia com lentidão e observava toda a ocasião que estava inserido. Aquele almoço, aquelas pessoas, aquela mesa e aquele cheiro. Jorge comia e observava a todos. Mastigando e engolindo com saboreio. Jorge tentava imaginar o que se passava dentro de cada um. Um daqueles era seu inimigo, outros dois eram melhor amigo de seu inimigo. Por que depois de tudo eles queriam se despedir desta forma? Quem eram essas pessoas? O que era aquela mesa? Jorge olhou o pedaço de peixe quase cru que caia sobre o vidro da mesa. A mesa ficara suja, agora ela era de verdade. “A mesa da verdade” pensou Jorge. Era o momento de quebra o silêncio. Era o momento de falar da ultima noite.

Quando Jorge se intencionou sobre sua fala, fora interrompido por Rayssa que tossia reclamando da picância da comida – Uau! Helena, colocamos bastante pimenta! – E calou-se a tomar um gole do refrigerante.

- Então... Ninguém quer falar nada? – questionou Jorge.

- Sobre o que? – Perguntou Helena.

- É irmão, sobre o que? – Antônio deixou sua colher sobre o prato deu a atenção a Jorge em sua frente.

- Sobre ontem à noite! – Respondeu Jorge.

- Sobre a fogueira? – Perguntou Rayssa com a boca cheia de ceviche mal mastigado.

Um elétrico “teck” e mais uma mosca morria.

- Não é sobre a fogueira, você sabe, Rayssa! – Ameaçava Jorge – Por mais uma vez e em mais uma noite eu estranhamente apago e quando acordo tenho dificuldades de encontrar minhas coisas – Em estado de nervos e com os membros trêmulos, continua – Some dinheiro da minha carteira, Cartões desaparecem e depois reaparecem com seus saldos usados. Mas ontem, ontem foi pior – Falava olhando no fundo dos olhos dos três. Rayssa já deixava de mastigar.

- Ontem! Ontem, vocês me drogaram, pegaram minhas coisas e me deixaram lá fora – Jorge soltava em forma de alivio – Lá fora. E como já não bastasse todos os abusos e situações que vocês me meteram ou me causaram. Paguei por passeios que não queria fazer, Jantares que não queria comprar.

- Jorge... – Antônio tentava um espaço.

- Não. Antônio! – Interrompia Jorge – Olha para você, seu carro. Se aquele carro tem gasolina foi por eu ter colocado, porque em mais uma vez, você chegava com esse seu papo mole, tentando utilizar de meu cartão ou até mesmo pedindo emprestado. O que sou para você, cara? Somos de fato amigos ou todos vocês só me vêem como uma maneira de obter dinheiro? – Terminava Jorge.

Antes que algum dos três tentasse responder a pergunta retórica de Jorge. Rayssa mais uma vez tossia com a comida e com a desculpa de estar apimentada, tomava mais um gole da bebida no copo. Mas a tosse de Rayssa já não era mais por conta da pimenta rocoto do ceviche. Era meio dia e vinte e dois.

- Gente, gente, eu não estou me sentindo bem – Dizia Rayssa em tosse.

Antônio se levantou com objetivo de ajudar a jovem. Nesse instante, Helena também começara a tossir e com dificuldades indagou – O que você fez com a gente? seu filho da Puta!

- Acho que você esqueceu um ingrediente crucial no ceviche, a pimenta do reino. E é claro, eu não poderia deixar de acrescentar o escuro pó na receita – afirmava Jorge.

De um sobressalto, Antônio largou Rayssa que já estava espumando em convulsão no chão e agarrou com as mãos o pescoço de Jorge, se projetando contra o amigo e caindo os dois no chão – O que você fez com elas? Me responde! – Encima de Jorge, Antônio que continha mais força se prepara para dar um murro na cara lavada de Jorge, mas fora interrompido por um aperto no peito.

Antônio caiu para trás e Jorge se Levantou. Olhando a cara dos dois que supriam por piedade Jorge disse – Vocês acharam mesmo que mais uma vez eu cairia nesse papo de vocês? Eu espero ser o ultimo de seus hospedes.

Um elétrico “teck” fazia mais uma vítima.

Helena já tinha seus olhos vazios e Antônio se tremia e ainda espumava pela boca. Jorge se direcionou a estante e pegou o telefone fixo. Digitou alguns números e aguardou a chamada.

- Oi boa tarde! – Falava ao telefone – Gostaria de pedir uma tuc-tuc. Isso, aqui para o Hostel Monte Pirineus. Certo, estou aguardando.

Após finalizar sua solicitação, Jorge ligou o som que se localizava ao lado da TV. Ele selecionou a FM e apertou o botão de “próximo” e sintonizou na primeira rádio que aparecera. Uma música de heavy metal de voz e guitarra eletrizadas soavam por aquela sala aromatizada. A letra dizia:

On my sweet revenge

Will be yours for the taking

It's in the making, baby

Ah-ah-ah, ah-ah-ah-ah

Jorge voltou até a mesa, terminou de comer seu ceviche, buscou sua mochila em seu quarto, foi até o pesado botijão da cozinha e o deixou emborcado. Logo a gravidade cuidaria daquela falta de vazamento. Era meio dia e meia.

Com a mochila nas costa, pegou a gatinha celeste, saiu da casa, fechou bem a porta e enquanto aguardara a tuc-tuc, bateu a porta do carro de Antônio que ainda estava aberta.

A tuc-tuc buzinava na porta e com celeste em suas mão Jorge montou no curioso veículo.

- Rodoviária, amigo! – Disse Jorge.

- Rodoviária? Você vai pegar o ônibus de que horas? – Perguntou o senhorzinho que conduzia aquilo.

- Das treze horas! – Respondeu.

A tuc-tuc seguira seu caminho, e assim como esperado, Jorge conseguira pegar o ônibus das treze horas.

Um elétrico “teck” matava a várias moscas.

João Paulo Ramos
Enviado por João Paulo Ramos em 25/11/2023
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