DESEJOS MORTAIS - PRÓLOGO 

Um Sonho Ruim

 

 

     Uma sala de estar, com um sofá de um estampado florido, duas pequenas poltronas do mesmo tecido, uma cristaleira com muitos jogos em cristais, de café, de chá, de licor, taças de champanhe e de vinho. Na entrada, havia um chapeleiro, em madeira, com espelho bisotê no centro, onde se dependurava chapéus, bengalas e, nos dias de chuva, os homens depositavam suas galochas enlameadas num aparato de metal, que recolhia a água acumulada nos guarda-chuvas. No canto da sala, havia uma cadeira de vime que ficava exatamente em frente ao relógio, cujo pêndulo parecia hipnotizar a garotinha que se sentara ali há um longo tempo aguardando, com muita ansiedade, a chegada de alguém.

      Não havia cor naquela sala, muito embora os estofados do sofá e poltronas sugerissem que sim, pois os tecidos eram floridos, mas só havia claridade e sombra, como um filme em preto e branco. A claridade não era intensa, os fracos raios do sol, que já se punha, penetravam pela cortina branca de tecido brocado; entretanto, a sombra era muito poderosa, engolindo toda a parte onde os fracos raios de sol não alcançavam. O som do tique-taque ecoava bem alto no cérebro daquela menina, mas nada, nem ninguém a tiraria dali. Não sabia, ainda, ler as horas, mas aprendera que, quando o ponteiro grande estivesse no doze e o pequeno no cinco, era chegado o momento tão esperado.

À primeira badalada do carrilhão, ela pulou da cadeira, correu para a porta e, alcançando a varanda, desceu os três degraus que a conduziram ao pequeno jardim que margeava a passagem até o portão da rua. Nesse exato momento, o portão rangeu e o seu coração disparou. A alegria estampada no seu rostinho demonstrava que a ansiedade, que tornara o seu semblante tão sério pouco tempo atrás, fora dissipada e correu em direção ao homem que acabara de chegar gritando com a voz estridente de criança:

     — Papai, papai, você chegou!

     — Sim, filha, o papai chegou. Vem, me dá o meu abraço e aquele beijinho doce, vem!

     — Só se o senhor me pegar.

     — Ah! Então vai me chantagear? Está bem, vou contar até três, vou te pegar e vou te dar tantos beijos que você vai ficar com as bochechinhas vermelhas. Um, dois e... lá vou eu... três.

     Quando ouviu o pai iniciar a contagem, ela correu em direção ao quintal e ao três ele começou a perseguição. Ela era magra e ágil, por isso conseguia imprimir uma grande velocidade obrigando ao seu pai fazer um enorme esforço para tentar pegá-la. No quintal havia uma horta e muitos pés de milho plantados. Ela correu para o milharal e gritava a plenos pulmões que seu pai não iria conseguir pegá-la. Ele era um fumante inveterado e consumia uma média de dois a três maços de cigarros por dia. Já quase sem fôlego, começou a correr por entre os pés de milho e ficou ofegante, mas não queria demonstrar a sua fraqueza para aquela garotinha que adorava aquele tipo de brincadeira. De repente, próximo ao abacateiro, sentiu uma forte dor no peito, que refletia para o braço esquerdo e faltou-lhe o ar. Escorou na árvore e pressentiu que o que estava lhe acontecendo era grave e tentou voltar cambaleante por entre o milharal apertando o peito. Afrouxou a gravata, o chão ondulava sob os seus pés e, assim, caiu de joelhos muito ofegante, tentando desesperadamente respirar, mas os seus pulmões não respondiam e não dilatavam para permitir a entrada de ar, então a vista escureceu, e apertando o peito, com o rosto contraído, deu um gemido alto e caiu por cima dos pés de milho, com o rosto afundado na terra fofa e úmida. A menina estava escondida próximo dali. Quando o viu cair, pensou que se tratasse de mais uma das brincadeiras do pai e ria alto e gritava:

     — Eu disse que o senhor não ia me pegar, não disse? – e voltou a gargalhar. Depois começou a chamá-lo:

     — Papai? Papai? Eu estou aqui. Vem me beijar. ¬– sem resposta ela ficou apreensiva      – Chega, papai. A brincadeira acabou!

 Correu até onde ele se encontrava e começou a sacudi-lo chamando-o com sua voz estridente, mas ele não respondia.

   — Papai, eu disse que a brincadeira acabou. – e virando o seu rosto aproximou-se mais e viu o seus olhos esbugalhados e vidrados, era a visão da morte. Nesse momento, mesmo sendo ainda uma criança, identificou que não era uma brincadeira e pressentiu que algo de muito ruim tinha acontecido com ele. Sentiu um pavor tão grande, que começou a gritar histérica, chamando pela mãe.

     — Calma, Alvina, calma! – ela se debatia, e gritava muito alto. – Sou eu, meu amor, o Galdino. Calma, vamos, eu estou aqui com você. – e começou a acariciar o seu cabelo, beijando-lhe com doçura. Aos poucos ela acordou de vez e começou a chorar copiosamente. Ele a envolveu em seus braços e continuou falando baixinho e, carinhosamente, pedindo-lhe que se acalmasse.

     — Eu... gritei... muito alto? – perguntou entre soluços.

     — Sim, mas está tudo bem. Eu já estou acostumado. É o mesmo pesadelo de sempre, não é?

  — Sim. Essa lembrança vem me perseguindo desde aquele dia.

    — Alvina, meu amor, você ainda não conseguiu...

       — Me... perdoar? Não, não... consegui! – ainda soluçava muito.

       — Não me referia a perdoar e sim superar essa culpa. Não posso te pedir que esqueça, pois seria impossível. Mas se perdoar, por quê?! Afinal, não foi você quem causou a morte dele. Ele abusava muito, Alvina. Bebia, fumava e havia engordado bastante. Ele era uma bomba-relógio, meu amor. A qualquer momento ia acontecer. Então, tira, de uma vez por todas, essa ideia de que foi você quem provocou a morte dele. O seu dia chegou e foi isso!

     — Não é tão fácil assim, Galdino. Eu era muito idiota! Eu sempre fazia ele correr atrás de mim, só para valorizar um beijo, um abraço. Seria tão mais simples e mais amoroso, correr para os seus braços, abraçá-lo e beijá-lo no portão. Mas não. A garotinha mimada tinha de brincar de pique-esconde, ver o pai procurá-la em cada cantinho do quintal só para se sentir especial.

     — Chegou aonde eu queria! Como disse, você era apenas uma criança, Alvina, como poderia imaginar que uma simples brincadeira de pique-esconde pudesse causar um acontecimento tão ruim? Você e, talvez ninguém, além de um médico, é claro, poderia avaliar a saúde dele. Era impossível, creia em mim e tire esse peso de seus ombros, vai. – continuou afagando-lhe o cabelo e beijou-lhe a testa.

    — Para você e minha mãe parece fácil. Seria como desligar uma lâmpada e tudo desapareceria na escuridão. Venho desligando essa lâmpada a vida inteira, mas, de quando em quando, ela volta a acender sozinha e tudo aparece ali na minha frente. É como se estivesse assistindo a um filme. Só eu sei bem como é massacrante! Já repeti mil vezes para mim mesma que não fui a culpada, mas a minha afirmação não é como uma borracha apagando um grafite no papel. E os olhos dele, Galdino! – soluços – Só de me lembrar dos olhos dele, fico aterrorizada! Apesar de estarem sem vida, pareciam penetrar na minha alma, e me criou uma sensação de que me acusavam... deixa pra lá, é muito difícil falar sobre isso. Volta a dormir, eu vou até a cozinha fazer um chá de camomila, tomar um analgésico e, depois, tentar dormir novamente. Boa noite, querido. – beijou o marido com doçura e se levantou.

 

Saavedra Valentim
Enviado por Saavedra Valentim em 03/10/2023
Reeditado em 01/12/2023
Código do texto: T7900465
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