A FROTA DO MAR NEGRO

Surgiu da frota do Mar Negro, imponente, o naufragado navio de guerra, ele já não reluz como antes, mas ainda representa o mesmo perigo, da mesma retirada que não foi capaz de concluir, do seu tumulo marítimo resolveu emergir. De incomparável grandeza, atrai até mesmo não simpatizantes, o marco histórico horripilante.

Cada dia mais visível, menos enterrado, cada dia mais perto de ser libertado.

Há quem ouça pela noite um uivo forte dos ventos, em direção ao navio porta adentro, Há quem ore para que a seca acabe sem o navio revelar, há quem diga que já não precisamos com isso nos preocupar.

As munições e explosivos são temidos, porém o mais assustador está no medo mais antigo.

Naquela noite Velemir estava voltando da casa de sua namorada, era bem tarde, a noite estava estrelada e quente, a brisa era levemente refrescante, ele passava perto do rio e avistou o majestoso gigante, o mastro quebrado chamou sua atenção, ele estreitou os olhos tentando visualizar completamente o navio, estava bastante escuro no meio do rio.

Reluziu um pequeno ponto de luz em algum local dentro do casco retorcido, seria possível ainda existir algo de valor que tenha resistido ao tempo e a correnteza?

Movido pelo instinto mais puro do Homem, a curiosidade, ele resolveu se arriscar.

Após se certificar que não estava sendo observado por ninguém, ele desceu até o rio, estavam enfrentando uma seca terrível então o rio estava bem abaixo do seu nível normal, o suficiente para que não fosse difícil nadar, alguns locais estavam tão secos que era possível até caminhar.

Enfrentou certa dificuldade em um determinado trecho, mas era jovem, forte e exímio nadador, seria difícil se afogar no rio praticamente seco.

O cansaço, no entanto foi um pouco maior do que o esperado, Velemir não havia percebido que teria de nadar tanto, estava prestes a ter cãibras quando tocou no casco do navio.

Ele sentiu a superfície envelhecida nos seus dedos, seu coração parecia congelar, um sentimento desolador consumiu todo seu corpo.

Mas ele estava cansado demais para voltar naquele momento.

Tomando um pouco de coragem ele se segurou em um pedaço contorcido de metal e conseguiu subir no navio.

O arrependimento era maior do que o imaginado, sob seus pés uma energia magnética pareceu prendê-lo ao chão. Havia uma neblina densa surgindo sobre as águas, ele mal enxergava suas próprias mãos, estava imobilizado e sentia cada vez mais frio.

Percebeu uma movimentação um pouco mais a frente, ouviu barulhos, novamente o brilho que o atraiu até aquela armadilha mortal surgiu diante de seus olhos, lembrava um relógio.

Velemir queria perguntar se havia alguém ali, mas era impossível que outra pessoa pudesse ter passado por ele, também era muito difícil acreditar que outro seria tão tolo de nadar até aquele navio nestas horas.

Um gemido de dor começou baixinho, foi aumentando, parecia crescer por se aproximar, Velemir passou a ouvir também um som rítmico como se algo batesse e puxasse, como se alguém se arrastasse pelo chão fazendo muito barulho enquanto isso.

Ainda incapaz de se mexer ele viu o brilho crescer, rente ao chão, uma mão arroxeada sem o dedo indicador bateu no convés, apertava os dedos entre os buracos e se arrastou revelando o resto do braço, um uniforme cinza escurecido impossível de se identificar rasgado em vários lugares, a cabeça com o rosto virado para baixo, os cabelos pretos molhados que sobraram no couro cabeludo estava em mechas, o braço esquerdo não havia, apenas uma manga vazia manchada e rasgada do uniforme, do tronco para baixo o corpo era apenas uma lembrança, era visível parte da coluna vertebral e só.

O soldado batia, com todas as forças que sobravam, a mão pútrida no convés e arrastava o resto do corpo até Velemir.

O cheiro crescente era indescritível, algo que era podre e gelado, algo que queimava as narinas, o cheiro da morte. Velemir começou a sentir seu pé esquerdo, a adrenalina subia rapidamente, o medo tomou o lugar da curiosidade.

O gemido pareceu duplicar, o som veio agora de outra direção atrás de Velemir, o som do passo e um arrastão, o som de outro passo e mais um arrastão, sabia que algo se aproximava, outro soldado certamente.

Os gemidos passaram a vir de varias direções, sons de passos, sons de corpos sendo arrastados. A mente de Velemir foi tomada de medo, a loucura crescia!

O navio não havia gostado de ser violado, um túmulo deve ser respeitado, mas agora era tarde para pensar em respeito, em arrependimento. Agora só sobrava cheiro de morte e medo.

Velemir conseguiu sentir suas pernas e chegou a conclusão que poderia correr, mas não tinha segurança em nadar, seus braços estavam dormentes. Ele deu um passo tímido para o lado direito, o primeiro soldado estava prestes a tocá-lo.

Aquele desvio o fez esbarrar em algo, gelado, alto e de cheiro forte.

Era um corpo, mas não um corpo antigo, alguém que parecia estar vivo até alguns poucos dias atrás, seus braços estavam presos para cima por uma corda, sua barriga estava completamente aberta e as entranhas para fora, alguma coisa voou para fora do buraco que um dia foi seu estomago.

Velemir gritou, se virou para tentar nadar, mas uma pequena multidão de homens uniformizados estava em seu caminho.

A densa névoa baixava, os homens estavam de pé, firmes, inteiros e arrumados, o dia estava claro, o mar estava cheio novamente, estavam navegando pelo rio.

O homem falou alemão, mas Valemir foi capaz de compreender. Ele deu ordens para retirada, pois o exercito soviético estava atrás da Frota, ao horizonte mais navios também batiam em retirada, os homens corriam pelo convés, puxavam cordas, faziam sinais.

Ele caminhou tranqüilo enquanto os homens se preocupavam com a situação, um pouco mais distante um navio inimigo surgiu, ele sabia o final daquela história.

A frente um soldado familiar segurava um relógio de bolso com firmeza, ele apertava os olhos e parecia estar fazendo uma oração, uma pequena confusão começou na parte interna do navio, Velemir ouviu um som de tiro, a confusão se tornou generalizada.

Alguns homens mergulharam no mar, os navios inimigos começaram a atirar, um dos tiros atinge o convés principal, o lugar onde o homem do relógio estava.

Ciente de que aquilo não era real, Velemir fechou os olhos e ignorou o som dos tiros, o som dos gritos, ignorou o cheiro de sangue e do fogo, ignorou até mesmo quando caiu no chão por conta da inclinação que o navio estava fazendo.

Uma parte metálica se soltou em meio à confusão e caiu sobre o homem, empalando-o, Velemir não conseguiria ignorar aquilo.

Não sentia dor, não sentia mais cheiro, não sentia nem mais medo, pois já não sentia mais nada.

As chuvas vieram não muito tempo depois, cobrindo novamente o navio que permaneceu em seu solo sagrado, nas águas escuras, como o túmulo silencioso que era. Mantendo o respeito devido, se tornando apenas uma lembrança perigosa de tempos sombrios.

Rosa de Almeida
Enviado por Rosa de Almeida em 03/10/2022
Código do texto: T7619354
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