Cosedura Plantar

A moça acordou desesperada num pulo e sentou-se rapidamente, cruzou as pernas e puxou um dos pés para examinar, em meio a confusão mental jurou ter visto um fino fiapo vermelho saindo da planta do pé, apertando os olhos tentava pegar a linha ilusória e puxar. Qual não foi o susto ao sentir um repuxo coincidentemente vindo de um espasmo não percebido, ela levantou e correu para o banheiro abriu o chuveiro e meteu a perna embaixo da água, esfregou o pé contra o chão áspero, passou sabonete da sola até o tornozelo friccionou mais o membro inferior esquerdo contra o cimento até sentir doer. Aproveitou que já estava ali no banheiro e fez sua higiene matinal, o ritual que para alguns levava no máximo dez minutos para ela precisava do dobro, se não o triplo, esse comportamento de hiper higienização havia começado há exatamente duas semanas, desde o incidente traumático que viveu. Sempre que entrava no banheiro ela era levada para a noite fatídica. Se lembrava com muita clareza, estava voltando sozinha do trabalho, pois os itinerários de ônibus não estavam entrando no seu bairro por conta da constante violência da polícia contra os traficantes e em represália estes últimos estavam ateando fogo no transporte urbano.

Não gostava nada da ideia de ter que descer no bairro vizinho ao seu e ter de andar até em casa, o motivo para tal desgosto era a sensação de insegurança daquelas ruas vazias às onze horas da noite, até os pontos comerciais fechavam as portas antes das dez. Veio até metade do caminho com uma colega de condução que antes de despedir-se lhe orientou a acelerar seus passos e assim o fez. Passava tão rápido entre as casas da rua olhando a todo momento para os lados, e mesmo com a atenção redobrada não percebeu a emboscada armada por uma figura encapuzada num beco mais adiante. O homem a puxou derrubando lhe no chão, imediatamente ela gritou, mas foi silenciada quando sentiu o aço da pistola invadir sua boca, o homem deu-lhe um bofetão no rosto e mandou entregar o celular e o dinheiro. Tremendo e chorando de desespero ela levantou a bolsa e entregou lhe, pedindo que não a matasse, ela apoiou a mão no chão para tentar se levantar, mas ele pisou forte em seus dedos e chutou-lhe no estômago, ela tossiu engasgando-se entre a saliva, a dor e o choro. Ouviu a voz e sentiu o hálito nauseante dizer obscenidades em seus ouvidos enquanto as mãos avançavam blusa adentro por seus seios, na escuridão só conseguia observar pela luz fraca do poste a marca no braço nojento e cabeludo de seu algoz, uma tatuagem. Cristina foi arrancada do trauma quando teve a estranha impressão de já ter visto a marca antes, e o pior a sensação dela estar relacionada a alguém conhecido lhe deixava profundamente apavorada. Ao menos naquela manhã o episódio desceu ralo abaixo dissolvido nas espumas que eram removidas de seu corpo, mas eram insuficientes as tentativas de estar plena novamente, a cada banho reviveria a violação. Saiu do banho e foi arrumar-se para o trabalho, modelou os cachos em seu black, cobriu as marcas profundas de noites mal dormidas em seus olhos com maquiagem e tomou a condução. No caminho estava refletindo sobre o estranho sonho que insistia em se repetir de forma semelhante. No sonho ela estava sentada na porta de casa tomando uma cervejinha, conversando com sua vizinha de frente e outras colegas dali da rua. Estranhamente ao virar o último copo de cerveja então percebia que não era a bebida fermentada, mas, na verdade, sangue, não o sangue líquido, mas um fio vermelho que descia organismo adentro e na sola dos pés sentia uma agulha invisível coser-lhe a pele grossa escrevendo algo indecifrável o mais estranho era que a linha encarnada saía de seu pé e continuava a mensagem no pé da vizinha, que, seguia para os pés das colegas e a cada noite uma nova mulher preta recebia no membro a estranha mensagem costurada. Ainda no sonho elas levantavam e juntas iam em direção a origem o fio, mas nunca encontrava o responsável, apenas viam descendo de uma fenda no céu as mãos do estuprador com a tatuagem antes de tinta e agora em carne viva manobrando a fibra têxtil que as unia.

No trabalho ela acabou revoltando-se contra seu chefe que constantemente vinha lhe chamando preguiçosa e advertindo que a baixa eficiência resultaria em demissão e que ela deveria mudar a postura, pois duas semanas haviam sido tempo suficiente para superar o estupro. A vontade que tinha era de voar com a máquina de costura no rosto daquele cara e costurar “babaca” bem grande. Infelizmente ela teve de engolir esse e muitos outros sapos para continuar empregada.

Ao terminar o expediente foi ao shopping, ainda era cedo, pois trocara de turno com uma menina que deixou o emprego. Foi pagar alguns boletos e passar na livraria para comprar as novas obras das séries romanescas que tanto adorava, pegou os exemplares que faltavam e foi para o ponto de ônibus, a ansiedade a fez abrir o livro e começar a ler enquanto esperava o transporte público, ao passar das páginas não percebeu como o tempo havia mudado, o fim de tarde de céu limpo estava se tornando fechado e pela grossura das nuvens decerto haveria uma tempestade. Em meio ao vento que se tornava mais forte um estranho fio vermelho pousou sobre a página que estava lendo, aquela visão lhe fez arrepiar inteira e no céu um relâmpago clareou no início da noite. Quando a chuva caiu estava em pé no ônibus pensando nas roupas do varal e nas goteiras iriam molhar a sala, meia hora de viagem depois conseguiu se sentar no canto perto da janela e diante do longo congestionamento, Cristina fechou os olhos e dormiu, dormiu e sonhou novamente. Dessa vez não estava em frente de casa, mas estava na pracinha do bairro sentada lendo quando se aproximou dela uma mulher negra de estatura forte e vestida de vermelho, seus cabelos ornados com contas que brilhavam igual fogo estavam dançando numa brisa leve, a presença dela lembrava as fogueiras juninas, pois a quentura irradiada era muito semelhante, a mulher tocou o ombro de Cristina e pediu que levantasse, inesperadamente a senhora abraçou a moça que estranhamente se sentiu por um instante uma criança protegida no colo de sua mãe. Ela sentou-se de frente a Cristina tocou no pé da moça, a costurava parecia maior, estava subindo para o tornozelo, com o toque a linha começou a sair da sola do pé, enquanto se descosturava, o fio era enrolado pelas mãos da mulher que o foi puxando. Uma a uma as moças eram libertas do estigma escarlate das coseduras plantares, quando a última menina, uma adolescente foi livrada do fio Oyá começou a puxar a outra ponta do fio que estranhamente subia para uma grande massa obscura no céu, dentro dela havia alguém oculto medindo forças com a Deusa, ela empreendia cada vez mais vigor de modo que o vento começou a ficar forte e as nuvens tornaram-se carregadas, nesse momento todas as pessoas da praça entraram em casa temendo uma possível tempestade. Impaciente com o cabo de guerra, Oyá puxou do vestido sua espada e ergueu ao céu, no mesmo instante dezenas de raios cortaram o horizonte e o fio, os braços de quem estava ali escondido caíram fumegando, segundos depois a massa havia se dissipado revelando um rosto masculino muito familiar. Cristina acordou apavorada. Ela reconheceu o rosto daquele homem em seu sonho, era um dos policiais reformados que controlavam a milícia local. O capitão Alberto.

A tempestade havia piorado muito, parecia uma espécie de aviso, o céu noturno tornava-se claro dia a cada relâmpago que passava, os trovões estavam tão violentos que as janelas do coletivo tremiam. Quando chegou em casa estava ensopada, por sorte não molhou seus livros e seus documentos que estavam na sacola, o mesmo não ocorreu, porém, com a casa, as goteiras molharam a sala inteira, bem como os demais cômodos. Secou o chão e colocou panelas nos lugares estratégicos de onde gotejava, a moça foi tomar um banho demorado, já não sentia a aflição nas plantas dos seus pés. Após a ducha, Cristina esquentou as sobras de comida do dia anterior, sentou no sofá e ligou a televisão para assistir ao jornal, ao ouvir a notícia que o repórter terminou de dizer, deixou cair o prato da janta. " Acaba de falecer há poucas horas um policial reformado de nome Alberto, ele trazido às pressas para o hospital, testemunhas disseram que o militar foi atingido por uma forte descarga elétrica enquanto passava pela rua, alguns afirmavam que o homem fora vítima de um fio de alta tensão que caiu e outros disseram que foi um raio que lhe acertou.

Francisco Grandiel
Enviado por Francisco Grandiel em 11/04/2022
Código do texto: T7493101
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