Promessa de Morte

...

A madrugada chegou como sempre nas cidades grandes. Translúcida e barulhenta. Hoje veio com chuva. As gotas na vidraça me viam escorrer pela parede, as mãos no rosto e cabelos, os olhos inchados pelo choro. Ele deveria ter ligado há duas horas, mas não houve chamada alguma. "Sempre estarei com você", dizia. Mas estou só novamente nesse apartamento. Eu, a madrugada e a chuva.

Não há porque esperar ou adiar. O mundo inteiro não iria mudar isso, a não ser eu, ninguém estará comigo. Nem ele. No início era um sonho. Ah! como os sonhos são perfeitos quando se iniciam. Éramos duas almas reunidas, duas partes de uma rocha. A ausência de um retirava o ar do outro. Nosso amor existia e nos bastava. Não houve planos que não tivéssemos feito ou viagens longas demais. Mas os sonhos não se sustentam muito tempo, por mais que tentemos voltar a dormir para revivê-los. Uma palavra mais rude, um esquecimento antes impensável, olhares enviesados e a rachadura na rocha está exposta. Não há conserto, apesar de insistirmos em não olhar. Não há porque esperar ou adiar. O telefone segue mudo.

Levanto-me e vou ao banheiro. Ensinaram-em que um banho quente ajuda bastante. Então deixo a água depurar todo meu corpo. No espelho grande me enxergo e sorrio satisfeita. Seios rijos, coxas firmes, nem sinal de barriga. Os cabelos molhados moldam minha face sem maquiagem e um observador menos atento não encontraria rugas. Sou jovem e bonita.

No quarto, visto a camisola pérola que ele tanto gosta em mim. "Faz de você um anjo", e eu ria ao mesmo tempo que a retirava.

A cama é grande e estou nela como se imersa numa ilusão. Os comprimidos já estão separados. Não há mais em que se pensar. Eu avisei, eu pedi, eu implorei que me impedisse. "Estarei sempre com você, vou ligar para impedir isso". Esperei, e só a chuva veio testemunhar. Eu decidi, ele decidiu. Que seja ! Ingeri as pílulas com meio copo de suco de laranja.

"Não demora quase nada", "Praticamente indolor", "A melhor saída", eram frases usuais de muitas pessoas. Eu confiei e me acomodei da melhor forma esperando o resultado.

Talvez tenha adormecido um pouco, mal vi o tempo passar, mas a dor se tornou quase insuportável e me despertou completamente. Quando tentei me sentar, o quarto entrou em rodopio, os móveis estavam em disparada. Amparei-me no criado-mudo para erguer-me e ao fazê-lo fiquei de frente para a vidraça molhada e escura da noite. Um fantasma me olhava de volta no reflexo do vidro. Na camisola, símbolo anterior do nosso amor, uma mancha vermelha se alastrava, silenciosa, mas decididamente, vindo dentre as pernas e tomando minhas coxas. Uma grande nódoa púrpura escarlate que ameaçava me tomar por inteira. Não suportei essa visão. Desmaiei.

Na vertigem do desfalecimento pareceu-me ter visto meu pai com os olhos marejados, os braços abertos me esperando: "Minha princesinha, papai está aqui". Por mais que tentasse, não conseguia ir ao encontro dele. Após um instante, sua figura desapareceu e me senti mais sozinha ainda. O que eu fiz? Ao longe ouvia um zumbido insistente que me irritava, que me acusava. Não, não era um zumbido, parecia uma melodia. Sim, tinha que ser uma música.

"Eu sei que vou te amar, por toda minha vida... vou te amar"

E repetia:

"Eu sei que vou te amar/

Por toda a minha vida eu vou te amar/

Em cada despedida eu vou te amar/

Desesperadamente..."

Quando firmei a mente, o som desapareceu. Sem música, sem dança, sem nada. Recobrei as forças o suficiente para me levantar do chão, retirar a camisola rubra do corpo e o lençol ensaguentado. Estava feito, precisava de outro banho.

Atirei as roupas sujas no cesto. O chuveiro fez o mesmo comigo e atirou minha alma no ralo. Nosso filho estava morto, finalmente compreendi isso ao verificar meu corpo outra vez no espelho. Vazio.

Espere, há algo no quarto me chamando. Será?

Meu smartphone tocava assim quando ele me ligava. Eu era romântica. Preciso atender, necessito contar que não existe mais nenhum problema, na própria definição dele quando soube. Não desligue, estou indo.

"Eu sei que vou te amar

Por toda a minha vida eu vou te amar

Em cada despedida eu vou te amar

Desesperadamente..."

- Alô ... Alô ... Alô ...

FIM

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 24/10/2020
Reeditado em 24/10/2020
Código do texto: T7095281
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